Vol.1 – O Motoqueiro do Sertão

© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: Má-Criações em Duas Rodas

OS MOTOQUEIROS DO SERTÃO – VOL.1: O MOTOQUEIRO DO SERTÃO
Fábio Magnani
[publicado originalmente em agosto de 2009]

Parte 1

A vida de Jessé tinha sido boa até os 26 anos. Então, de repente, perdeu tudo em uma seqüência de causa e efeito. Sua mulher o abandonou. O que o deixou triste a ponto de perder o emprego. O que o fez esquecer o portão aberto pelo qual fugiu o seu cachorro. O que por sua vez foi a gota d´água para abandonar tudo. Só sobraram duas coisas: os móveis da casa e sua moto. Vendeu os móveis por 2 mil. O plano era simples. Sairia pelo país com a sua moto até acabar o dinheiro, então venderia a moto, última lembrança de uma vida fracassada. Com o dinheiro da moto, que não valia muito, começaria alguma coisa. Talvez comprasse roupas para vender de cidade em cidade.

No dia da saída acordou cedo, tomou café e montou a bagagem. Algumas peças de roupa em uma mochila e uma barraca. Escondeu parte do dinheiro no quadro da moto, ligou a moto e partiu. Sem amigos, sem família, sem casa e sem cachorro.

Assim que pegou a estrada se sentiu puro e livre como um anjo. Não havia mais cobranças. Sem planos, sem expectativas, sem um lugar para voltar. Iria só para a frente. O vento morno do litoral nordestino envolvia o seu corpo como que em líquido amniótico. A estrada era uma seqüência de cidadezinhas, barracas, carroças, crianças indo para a escola, paus-de-arara e bodes pastando. Indo para o oeste, a vegetação ficava cada vez mais seca. Foi flutuando pelas estradas, sendo atraído pelas curvas, hipnotizado pelas retas. Parava apenas para abastecer, tomar um copo de água, um cafezinho e um bolo de milho. Depois subia na moto para se sentir em êxtase novamente.

Só percebeu como estava cansado quando olhou para o céu já cheio de estrelas. Tinha andado o dia inteiro de moto, como um gavião satisfeito que plana sobre seus domínios. O nome da cidade era Serra dos Albuquerques, bem no meio da caatinga. Há muito tempo atrás a cidade era Tatutuba, mas desde a chegada dos Albuquerques, há 100 anos, o nome havia sido riscado de todas as placas.

Jessé foi até um posto de gasolina para perguntar se podia armar a barraca por ali. O guarda, desconfiado, inicialmente disse que não. Mas depois que começaram a falar sobre motos, carburadores, velocidade máxima e encontros, passou a confiar no motoqueiro. Seu nome era Antonio. Disse que poderia dormir por ali, mas só por uma noite. Às quatro da manhã teria que pegar a estrada, pois o dono do posto chegaria.

– Se você quiser um lugar para comer, vá até a Bodega da Carminha. Ela faz uma cabidela de primeira. E o preço é muito bom.

– Vou sim, não como nada de “sustança” desde manhã. Quem sabe não encontro um serviço por lá?

– Só se for serviço de matador, porque por essas bandas não empregam gente de fora para outra coisa não. Desconfiança das brabas, sabe?

Deixando a moto no posto, Jessé foi andando pelo caminho mostrado por Antonio. Mesmo que quisesse atravessar a cidade toda não demoraria mais do que 20 minutos. A bodega era um lugar pequeno, de teto baixo. Cheio de mesas de madeira pintadas de verde. Um balcão onde os trabalhadores tomavam pinga e uma mesa de sinuca vazia. A própria Dona Carminha, gorda e sorridente, atendeu Jessé.

Enquanto esperava a comida, Jessé viu uma mulher muito bonita e confiante entrar na bodega. Vestido curto, pernas torneadas, cabelo limpo e muito perfumada. Devia ser a mulher de algum coronel. Só assim para não ter medo de andar vistosa daquele jeito em um ambiente masculino como o que estavam. A mulher cochichava com dois homens no balcão, que abanavam negativamente a cabeça. De tempos em tempos olhava para Jessé, de uma forma intrigada. Sendo que a conversa deles não tivesse surtido efeito, a bonita mulher foi sentar-se sozinha em uma mesa, de onde encarava Jessé.

Jessé, por sua vez, evitava olhar de volta. Isso era coisa de mulher querendo provocar de ciúmes o marido ou amante. Confusão na certa. Jessé só olhava para o prato de comida. Mas não conseguia deixar de sentir o perfume gostoso da dama. Quanto tempo fazia que não estava com uma mulher? Desde um bom tempo antes de ser abandonado.

Distraído pela satisfação da comida e o feitiço do perfume, não percebeu a mulher vindo até a sua mesa.

– Posso me sentar?

– Claro que sim, respondeu surpreso.

– Antes de mais nada, deixe me apresentar e dizer o meu intuito. Meu nome é Thaís Albuquerque, viúva do finado Luizinho Albuquerque. E eu tenho um trabalho para você.

(continua)

Parte 2

Jessé acordou na manhã seguinte de ressaca, em uma cama desconhecida. Pela decoração devia ser algum hotel. Ao ouvir um barulho na porta, levantou-se para colocar a roupa. No corredor estava Thaís, mais linda ainda do que na noite anterior, com uma xícara de café

– Bom dia, Thaís.

– Bom dia. Eu trouxe esse café para você acordar mais rápido. Lembra daquele trabalho que te falei? Pois é, interessado?

– Não podemos pelo menos comer alguma coisa antes?

– Não dá tempo não. Mas o serviço é coisa fácil e rápida. Você vai lá, resolve tudo, depois nos encontramos para almoçar. Pode ser?

Aquele sorriso era irresistível. E o serviço era realmente simples. Thaís tinha prometido ao seu chefe, o juiz da cidade, que iria arranjar um motorista para levá-lo do banco até a sua fazenda para fazer o pagamento dos seus empregados. Como não tinha conseguido ninguém,  estava com medo de perder o emprego. A companhia era só por formalidade, já que por ali ninguém teria coragem de fazer nada contra o político mais amado da região.

– Mas porque então eu preciso ir armado?

– Agora não dá para te explicar, amor. Depois de conto tudo. Fofocas de cidade pequena. Coisa com a ex-mulher dele.

Thaís continuou então com os detalhes, dizendo para não se esquecer de nada. O juiz estaria já dentro do banco. Chegando lá, Jessé deveria se apresentar aos seguranças. Eles já sabiam que estava indo para lá, que estaria armado e que, portanto, deveriam desligar o detector de metais.

– Que complicação, hein?

– Também acho, meu amor. Mas vai logo resolver tudo isso para nos encontrarmos de novo. Já estou morrendo de saudade.

O perfume de hoje era mais envolvente que o de ontem. Como fazer uma mulher daquelas esperar? Jessé pegou a sua moto no posto e rumou para o banco. Estacionou na calçada, desceu, chegou até a porta de vidro e chamou o segurança.

– Oi, eu sou o motorista do juiz.

– Tá certo, pode entrar, ele já está fazendo o saque.

– Mas você precisa desligar o detector, porque eu estou armado.

– Legal. Espera só um pouco que já vou desligar o treco.

Jessé ficou aguardando alguns instantes enquanto o segurança ia ao fundo do banco. Como demorou um pouco, voltou até a calçada para ligar o motor da moto e examinar um barulho na corrente de comando. De repente, ouviu a maior correria vinda de dentro do banco. Só entendeu o que acontecia quando o segurança apareceu de novo na porta do banco, gritando:

– É o bandido da moto! Bem que avisaram a gente! Manda bala!

(continua)

Parte 3

Jessé teve sorte da moto já estar ligada. Pulou no banco e acelerou. Podia ouvir os tiros e o cantar dos pneus dos carros da polícia que vinham em sua perseguição. Sua moto era boa para trilhas, mas não poderia fugir dos carros em uma estrada aberta. Assim que saiu da cidade, entrou no meio da caatinga por um caminho de animais. Correu por mais de meia hora no meio dos espinhos, protegido pela jaqueta de couro. Quando se sentiu seguro, desligou a moto, respirou fundo e falou para um mandacaru que tomava sol por ali:

– Isso foi armação. Como sabiam que apareceria um bandido por ali? E os carros da polícia já preparados para me seguir? Aquela Thaís armou tudo. Mas por que?

O que deveria fazer agora? Fugir ou tentar descobrir o que aconteceu?

– Deu tudo certo para eles, seja lá o que queriam comigo. Mas cometeram um erro: nunca mexa com alguém que não tem nada a perder.

Continuou pilotando pela trilha até chegar perto de outra cidadezinha. Escondeu a moto, tirou a jaqueta de couro e vestiu a roupa que estava guardada para os futuros dias de vendedor: camisa branca, calça social e sapato de verniz. Entrando a pé na cidade, procurou com os olhos alguma opção. O cabelão e a barba sempre foram motivos constantes de discussão com a ex-mulher e de gozação no trabalho, mas seriam a sua salvação. Sem hesitação, pediu um corte bem tradicional na cabeça e para passar a navalha na barba. Pronto, agora ninguém o reconheceria.

Não queria perder o elemento surpresa. Pensariam que estava fugindo naquele momento. Pegou um ônibus de volta para Serra dos Albuquerques. Não foi difícil achar a casa de Thaís naquela cidade tão pequena. Assim que ela entrou na casa, Jessé pulou o muro e olhou pela janela para estudar o local. A mulher estava sozinha. Linda como sempre, mas não era momento para pensar naquilo. Thaís não teve tempo nem de esboçar um olhar de surpresa ao ver Jessé entrar pela porta do fundo. Levou um soco na cara de primeira. Caída no chão, com o nariz sangrando, perguntou:

– Mas, o que…

Um forte pontapé na coxa da mulher fez com que entendesse que os jogos tinham acabado. Jessé pegou-a pelos cabelos, jogando-a em uma cadeira.

– Agora fala tudo o que você sabe. E rápido!

– Eu juro que não sabia de nada. O juiz mandou eu arranjar um desconhecido para fazer aquele serviço. Só isso. Só depois que ouvi os tiros é que percebi o golpe.

– E agora você vai morrer por causa da besteira que fez! Ameaçou Jessé.

– Por favor, não faça nada comigo. Eu prometo que te ajudo. Eu juro! Eu não sabia de nada!

Jessé, acreditando na mulher e precisando de um tempo para organizar o seu plano, amarrou-a na cadeira, amordaçada. Ligou o rádio para descobrir alguma notícia.

– Prezados ouvintes. Acabamos de receber uma notícia da polícia. O assaltante já foi reconhecido. O imbecil assaltou o banco com uma moto registrada em seu próprio nome, que é Jessé Jemisson do Nascimento. Ele era consultor de segurança predial na capital. Antes tinha sido especialista em demolições no exército. Uma pessoa com todo o treinamento necessário para um assalto. O seu ex-empregador já reconheceu as fotos tiradas pelo sistema de segurança. Disse que o meliante estava desesperado, largado pela mulher e sem emprego.

Thaís olhava incrédula para o rádio, que continuava:

– Conseguiu roubar 50 mil do cofre, matando dois seguranças e o secretário de finanças do município. A cidade está em luto. Mas o vagabundo não vai fugir. Dizem por aí que o juiz está oferecendo uma recompensa de 2 mil para quem trouxer o cabra. Detalhe: morto ou morto.

(continua)

Parte 4

No outro dia pela manhã, Thaís, ainda amarrada na cadeira, foi acordada com um copo d´água jogado em seu rosto.

– Acorda! Pronto, mulher safada. Escondi a minha moto lá na sua fazenda. Também encontrei a 12 do seu marido. Agora vamos para o seu carro que nós temos um serviço.

– O que você vai fazer? Você acha que sozinho vai conseguir alguma coisa? Está todo mundo junto. O juiz, o gerente do banco e a polícia. Roubaram o dinheiro, colocaram a culpa em você e ainda mataram o secretário de finanças. O cara estava ameaçando denunciar a quadrilha.

– Eu fiquei pensando a noite toda. Já sei como sair dessa. Você vai ver. Agora vai lá ligar o carro. E não tente nada, porque te queimo na hora.

– Pode ficar tranquilo, amor. Eu estou do teu lado. Mas como você vai fazer para mostrar que é inocente e recuperar o dinheiro?

– Cala a boca e assiste!

Thaís dirigia o carro enquanto Jessé se escondia no banco de trás. Chegando na casa do juiz, Jessé desceu rapidamente do carro e atirou com a 12 sobre a cabeça dos dois seguranças da porta, que rapidamente jogaram suas armas no chão. Jessé prendeu os dois com suas próprias algemas. Correu para o gabinete do juiz, abrindo a porta com um pontapé. O político na hora trocou a expressão de medo por um daqueles sorrisos de negociata, com o qual sempre se saíra bem de qualquer situação.

– Calma, meu amigo. Vamos conversar. Vamos dar um jeito de livrar a sua cara.

Jessé olhou para o juiz, sem demonstrar qualquer emoção em seu rosto. Levantou o cano da 12 e estourou a cabeça do velho. Nem esperou o corpo cair no chão para dar meia-volta e caminhar lentamente até o carro. Ficou surpreso em ver Thaís ainda por lá.

– O que você fez? Desse jeito nunca vai provar a sua inocência.

– Eu sabia que não podia recuperar o dinheiro ou provar que era inocente. Também não procurava vingança, isso é besteira. Mas já que vou viver fugindo pelo resto dos meus dias, pelo menos quis fazer o meu nome. Agora vai ser fácil montar o meu bando.

– Então foi isso que ficou matutando a noite toda?

– Não me deixaram outro caminho, respondeu calmamente Jessé.

No carro, Jessé, mesmo que por apenas um segundo, mostrou preocupação com a situação de Thaís:

– E você, vadia, como vai viver agora sem o seu juiz?

– Já estava na hora do broxa descansar. Agora eu quero só você. E ficou cantarolando a música do Fábio Jr., para total irritação de Jessé.

Não muito mais tarde, Thaís viu Jessé partindo em sua moto pela caatinga. Acreditava na promessa de que voltaria assim que tivesse dinheiro para comprar armas e equipamentos. Precisaria de uma base para se esconder e uma pessoa sem ficha criminal para lavagem de dinheiro. Além do mais, quem teria a idéia de procurá-lo exatamente na cidade em que havia praticado uma chacina?

Sem mais nada a fazer do que esperar, Thaís voltou para casa, com o rádio do carro ligado:

– E não percam amanhã o especial sobre o assassino do juiz. Com 4 mortes nas costas e 50 mil no bolso, o bandido da moto conseguiu fugir. Mas não por muito tempo. A recompensa da família subiu para 5 mil.

Thaís riu com a notícia. O dinheiro todo já devia ter sido dividido entre o restante da quadrilha. Já sobre as mortes, Jessé não era tão inocente assim. Mas tinha respondido fogo com fogo.

E não ficou surpresa quando o seu amante apareceu na manchete dos jornais da capital no próximo dia:

“Jesse James, o motoqueiro do sertão: quando será o próximo ataque?”

(continua, algum dia, com as novas aventuras de Jesse James)

 
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