Motoqueiros em Crise

© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: Um Motoqueiro Existencialista

MOTOQUEIROS EM CRISE
Fábio Magnani
[publicado originalmente em agosto de 2009, dezembro de 2012 e agosto de 2017]

Com a proximidade do meu aniversário resolvi ser autocomemorativo. Para isso escolhi como desculpa escrever sobre o livro Uneasy Rider, do Mike Carter. É um livro alegre, tem a ver com duas rodas, e fala de transformação, de renovação, e de aceitação, mas de um jeito engraçado. Por isso acho que cai bem neste dia festivo do meu aniversário. Embora não seja nunca bom um motoqueiro usar a palavra cair.

O título de Uneasy Rider é uma brincadeira com o mais famoso dos filmes de moto, Easy Rider, que conta a estória de dois amigos que rodam pelos EUA conhecendo comunidades alternativas, experimentando sexo, drogas e rock’n’roll. Um filme bem revolucionário e muito marcante. Um filme que simboliza tanto os motoqueiros como o movimento hippie. Até a própria música tema, Born to be Wild é considerada o hino dos motoqueiros. Só que o livro que vou comentar não é “easy” (fácil), é “uneasy” (difícil, complicado).

Antes de falar sobre o livro, um pouco sobre algo do qual não tenho nenhum mérito. O ano em que nasci, 1969. Fiz uma pequena pesquisa no que acontecia pelo mundo enquanto eu nascia. Parece que foi um ano bem agitado. Sobre o dia em particular, 11 de agosto, há duas coincidências muito significativas para mim. É o dia do aniversário da universidade onde trabalho e vivo há 20 anos, a UFPE. Também, 11 de agosto é o Dia do Estudante. Embora eu seja um professor, me considero muito mais um aluno. Não contem para ninguém, mas eu passo a vida estudando, que é o que eu gosto de fazer, e ainda recebo um salário para ir na sala de aula contar o que aprendi.

Quanto ao ano de 1969, é o ano em que começa a modernidade de fato. O ano anterior, 68, tinha sido um ano de destruição das bases tradicionais. O novo ano seria de proposições para o futuro. Em janeiro, os Beatles – que não se apresentavam em público há vários anos – fizeram sua última aparição, na cobertura do prédio da sua gravadora. As cenas filmadas para um documentário são clássicas, com os Beatles tocando no telhado, os pedestres olhando para cima sem compreender o que estava acontecendo e a polícia tentando impedir tudo. Em julho, Neil Armstrong deu o primeiro passo de um ser humano na superfície da lua. Embora eu goste de brincar que não acredito que o homem tenha ido para a lua, na realidade eu sempre achei a coisa mais natural do mundo. Somente há alguns anos atrás, lendo por acaso sobre o assunto, eu compreendi a magnitude deste feito. Muita gente comprou aparelhos de televisão só por causa disso. O mundo todo parou a respiração para ver um sonho da humanidade ser realizado. Quantos milhares de anos não foram necessários para que o homem pudesse chegar até ali? Pessoas que cresceram depois disso podem achar tudo normal, mas para quem viveu aquele dia deve ter sido uma emoção difícil de conter. A chegada do homem à lua culmina todos os sonhos de todos os poetas e de todos os cientistas de todos os tempos. Em agosto teve o festival de Woodstock, onde reinaram o rock, a liberdade e o amor. Um bando de românticos que servem até hoje como símbolo das grandes mudanças de comportamento que ocorreram naqueles tempos. Houve exageros? Sim. Houve bobagens? Sim. Na minha visão aqueles jovens foram anjos que se sacrificaram para abrir um novo caminho para os que viessem atrás. Não estamos mais no caminho que eles propuseram, mas certamente também não estamos mais no caminho traçado antes da sua vinda. Em outubro morreu Jack Kerouac, autor do livro On the Road. Símbolo máximo dos beatnics. Lançou a estética dos “sem destino”. É difícil saber se um livro causa um movimento ou apenas o expressa. Não sei, então, se On the Road influenciou os hippies vagantes mundo afora ou apenas contou a sua história. Provavelmente não foi a causa, mas é legal pensar que tudo veio da cabeça de apenas um autor. Os motociclistas do tipo “riders” – que rodam incansavelmente pelas estradas pelo simples prazer de andar de moto -, também são filhos de Kerouac.

Outro fato importante em outubro foi a primeira mensagem enviada pela Arpanet, a precursora da internet. Ainda me lembro da primeira vez que mexi na internet, provavelmente em 1992. Não entendíamos muito bem como a coisa funcionava, mas, ao notarmos que não havia hierarquia no conhecimento ali disponível, era possível sentir o gosto da revolução que chegava. Ali estava o instrumento que daria a mesma importância para uma foto de uma tribo na África ou de um novo produto da Microsoft. Hoje podemos receber informações sobre o mundo todo, vindas dos mais poderosos ou dos mais humildes. A escolha do que acessar é de cada um. Eu uso a internet para conversar com pessoas de lugares distantes, para ter acesso a livros que eu não teria de outra forma. Tem gente que diz que a internet é alienante, mas eu não acho. Acho que ela permite que você conheça pessoas muito interessantes, pessoas que não teria a sorte de encontrar no lugar onde você vive. Claro que de vez em quando é bom conversar com pessoas reais, mas nem sempre.

Talvez o mais grandioso sobre 69 seja o fato de ser o único ano que homenageia uma posição sexual. Isso não é para qualquer ano – com perdão do trocadilho. Isso tudo sem contar o lançamento do filme Easy Rider, o primeiro álbum do Led Zepelin, crise no Vietnam, prisão de Jim Morrison, lançamento do Boeing 747, do Condorde e a premiere de Vila Sésamo. Ufa! Arpanet, homem na lua, Woodstock, último show dos Beatles e uma posição deliciosa. O ano que você nasceu consegue superar 1969?

Voltando ao livro Uneasy Rider, o tema é a crise de meia idade, algo que talvez se mostre de forma diferente nos homens e nas mulheres. Como toda crise, é algo repentino. Quais são os sintomas dessa crise da meia idade? Fácil: idade entre 35 e 60 anos, o cara faz uma nova tatuagem, namora uma mulher mais nova, descarta amigos superficiais, tem mais cuidado com a saúde, passa a usar roupas mais práticas, recria sua carreira profissional, perde fácil a paciência com as tradições e, sintoma-rei, clássico dos clássicos: o cara compra uma moto. Concordo que esses sejam os sintomas. Também concordo que sejam sinais de crise. Agora, só não concordo que exista apenas um tipo de crise da meia idade. Na verdade, acho que há duas: a psicológica e a filosófica. As duas têm os mesmos sintomas, a mesma fonte (o cara descobre que não é mais jovem) e destinos completamente diferentes. Na crise psicológica, o cara quer voltar ao passado e reviver a sua juventude – ele tem medo do futuro. Ele está triste que seus sonhos de juventude não tenham se realizado, sofre ao comparar a sua vida com a de pessoas mais bem sucedidas e tem medo da morte. Ele quer voltar para a juventude porque lá se sente protegido, em uma época em que tudo era possível. Assim que passa a crise da meia idade psicológica, o cara volta à mesma vidinha de sempre. Já na crise filosófica o cara quer reavaliar os seus objetivos, sonhar sonhos novos e descobrir o que realmente tem valor na vida – ele busca o futuro. Nesse processo, descobre que alguns de seus objetivos da juventude eram externos, não alinhados com sua essência e por isso não tão importantes quanto ele acreditava. A crise da meia idade filosófica produz um novo indivíduo. Um indivíduo que sabe o que quer da vida e que tem a coragem de transformar o que deve ser transformado. Durante esse processo, claro que o carinha passa por uma fase de paradoxos e confusões, mas no final cria uma personalidade muito mais harmônica, com uma autoconsciência mais arraigada e objetivos de vida mais claros.

O ápice da vida de um homem ocorre aos 42 anos de idade. Pelo menos é o que dizem as revistas. Dali em diante vem a degradação, o rebaixamento, o fracasso, o desespero e o fundo do poço – é o começo do fim. Aos 42 anos, ainda segundo essas revistas, o homem passa por uma grande crise de autoconfiança. Ao completarem 42 anos os homens se divorciam mais, bebem mais e têm mais ataques cardíacos. O grande Elvis morreu aos 42.

Mike Carter, o autor do livro Uneasy Rider, estava prestes a completar 42 anos quando acordou de ressaca após a festa de fim de ano do jornal onde trabalhava. Recém divorciado e entediado pelo trabalho, torcia para não ter passado muito ridículo. Com uma dor de cabeça infernal, tentou refazer os passos que o levaram até a sua casa na noite anterior. Parecia não ter feito nada de irreparável. Tudo bem que havia um branco em sua mente entre a meia noite e a tomada do táxi, mas pelo menos não havia nenhum sentimento de culpa. Bom, aparentemente podia voltar ao trabalho sem grandes medos. O alarme começou a tocar quando o seu chefe perguntou quando partiria. Partir para onde? A dúvida piorou quando, momentos depois, Mike recebeu um grande abraço de admiração de um colega que em geral o olhava com desprezo. Admiração pelo que? O pavor surgiu mesmo quando o editor da seção de automóveis veio com o papo: “Vai dar uma grande matéria! Perigoso, claro, mas que viagem. Eu queria poder ir com você”. Sim… Mike ia viajar para onde? Por que estava sendo admirado? Coragem para fazer o que? Será que tinha falado demais depois do décimo whiskey? O que ele tinha prometido naquela festa? O que ele tinha feito? Oh, meu Deus! Não foi difícil descobrir. No meio da bebedeira, Mike tinha simplesmente anunciado em discurso formal que sairia em uma viagem de seis meses. Em uma moto. E não uma moto qualquer, mas uma moto gigante, uma BMW R1200GS – o que não tinha requerido muita imaginação da sua mente alcoolizada, pois isso era exatamente o que ele tinha assistido Ewan McGregor e Charley Boorman fazerem no Long Way Round. O que ele não tinha falado para os seus colegas era que ele não tinha andado de moto desde um remoto período de três meses na sua adolescência. Com uma Lambretta. Só que agora não tinha mais volta: seu editor já programara as matérias que publicaria e seus colegas já o tinham transformado em mensageiro dos seus sonhos. Mas, principalmente, Mike Carter sentia que, por mais tolo que parecesse, na realidade ele tinha que fazer aquilo. Por alguma razão, sua vida dependia daquilo.

Pensando bem, por que não? É assim que começa o livro Uneasy Rider, que Mike Carter publicou em 2008. Ele viajou por seis meses, 30.000 km e 27 países. A viagem não tem nada de mais do ponto de vista motoqueirístico, já que se passa quase toda em países desenvolvidos da Europa. Mas a viagem interior é boa e a escrita é ótima. E é isso que importa para quem vai ler. Confesso que não gosto muito de livros repletos de humor autodepreciativo, coisa que me cansa depois da terceira página. Isso já fica claro no título do livro, que é uma brincadeira neurótica com o filme Easy Rider. Mas sei que é um estilo bem popular. Além disso, se você tirar essa camada superficial, encontrará bem fácil o que está por baixo, que é a transformação pessoal do autor. Como Mike Carter trabalha para um jornal, dá para conseguir mais informações na internet, como um texto bem engraçado sobre Os 10 Passos da Crise da Meia Idade, onde ele fala sobre algumas coisas que aprendeu durante essa sua viagem de moto. O que me assusta é que depois da moto parece que ele evoluiu (?) para uma fase de bicicleta, o que se percebe pelo título de um livro mais recente: One Man and His Bike. Ainda não li. Isso porque, no meu pós auge, aos 43 anos de idade, estou meio preocupado com o que me espera, já que estou passando pelos mesmos passos: primeiro a volta da moto, depois o retorno da bicicleta, a vontade de escrever sobre tudo e a recriação da vida profissional. O que virá depois? Uma grande viagem de bicicleta? Será que essa transformação filosófica nunca acaba? Mas… quer saber de uma coisa? Tomara que não.

Por isso, ao saber que seu amigo comprou uma moto, não faça julgamentos apressados. Pode ser que o cara esteja passando apenas por uma fase de abestalhamento, e portanto logo retornará a ser exatamente o que sempre foi. Mas pode ser que ele esteja saindo para uma viagem interior de onde voltará completamente diferente – mais sábio e em paz consigo mesmo. Nunca se sabe. Nunca se sabe. Talvez esse seja o momento da crise que ele precisa viver.

No final, se você quiser viver uma grande crise da meia idade, é fácil: renove sua coleção de tatuagens, compre uma moto, prepare-se para ser visto como retardado e mude completamente a sua vida. Meia idade é isso. Você passa a se divertir mais, fazer o que realmente importa e a não dar bola se parece ridículo para os outros. Claro que a moto é só um símbolo externo de algo que se passa por dentro de você. Ela representa o seu individualismo, a sua procura e a sua predisposição para tomar certos riscos. O segredo é não se apegar demais à moto como um objeto, porque daí você corre o risco de virar mais uma vítima consumista do marketing das fabricantes. O que é perigoso. Como por exemplo essas pessoas que “amam” essa ou aquela marca, que precisam sempre possuir o último lançamento do mercado, ou que andam em grupos de pensamento único. Isso é uma armadilha psicológica. Pense bem, amar uma marca de moto é como amar o McDonald’s. Patético. Ao invés disso, se apegue apenas ao que a moto representa: liberdade, descoberta e risco. Isso sim vai te dar uma crise da meia idade das boas. Da filosófica.

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