Setenta Anos em Cima de Uma Moto


© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: Motoqueiros Famosos

SETENTA ANOS EM CIMA DE UMA MOTO
Fábio Magnani
[publicado originalmente em julho de 2012]

Em 2002, aos 83 anos de idade, o professor Herbert Foster Gunnison publicou suas reminiscências. Desde o início. O que é curioso, já que não é qualquer um que sabe o dia em que foi concebido. Os seus pais contaram que foi quando anunciaram o fim da Primeira Guerra Mundial. Muita gente foi concebida naquele dia, porque as pessoas estavam muito aliviadas depois da matança na guerra. Mas, ao invés de tomarem cuidado com as máquinas, dali em diante as pessoas passaram a buscar mais ainda sua felicidade na tecnologia: um carro novo, um eletrodoméstico novo, um computador novo, um software novo. Com isso veio a uniformidade do pensamento, a angústia, a bomba atômica e a dívida no cartão de crédito.

O livro de Gunnison, Seventy Years on a Motorcycle (“Setenta Anos em Uma Moto”), faz um alerta sobre as consequências de tentarmos nos esconder da vida sendo escravos da tecnologia.

Mas não é um livro simples, já que boa parte da vida de Gunnison passou sobre uma motocicleta, que, claro, é um produto tecnológico. Desde os 13 anos até o dia em que terminou de escrever o livro, ele sempre andou de moto, em enduros, trilhas, viagens e no dia a dia. Portanto, não é só uma questão de ser rabugento contra alguma coisa. O negócio é aproveitar a tecnologia, mas sem ser escravo dela, sem se meter em um monte de dívidas só para consumir consumir consumir.

Quase desisti de ler logo no começo. É que não se trata de uma autobiografia, com uma história com começo, meio e fim. São reminiscências, com memórias vagas que pipocam do inconsciente, que por sua vez comandam mais memórias e mais reflexões. Depois percebi que esse aparente caos era a melhor forma para defender a sua posição. Afinal, porque ele usaria uma narrativa simplista de engenheiro se era exatamente contra essa mediocridade que nos alertava?

O mais inspirador do livro é a coragem de tratar tabus: doença mental, desprezo ao trabalho e riscos em viver de verdade. Depois de 18 anos trabalhando como vendedor, Gunnison teve um piripaque tão forte que teve que ser internado em uma clínica psiquiátrica. Os médicos diagnosticaram o seu problema como a luta do indivíduo, que queria ser livre e feliz, contra as vontades do sistema, que quer que todos sejam iguais. Dali em diante resolveu voltar a estudar, fazendo pós-graduação. Outro assunto que ele comenta no livro é a sua falta de ambição por dinheiro além de um mínimo para comer, morar, ter acesso à arte e rodar de moto. Para ele, o trabalho não dignifica porcaria nenhuma, é só mais uma prisão. Trabalho é aquilo que você faz quando gostaria de estar fazendo outra coisa. Mas o tabu mais fascinante é a morte que espreita o motoqueiro. Claro que é perigoso andar de moto. Só que andar de moto não é coisa de suicida. Muito pelo contrário, o risco é uma manifestação da vida. Andar de moto é perigoso, viver é perigoso. Motos foram feitas para cair. Nós bípedes fomos feitos para cair. Caiu? Levanta, sacode a poeira e volta a andar.

Dizem que uma das principais razões da Honda ter conquistado o mercado nos EUA foi sua campanha publicitária. Naquela época, os motoqueiros eram vistos como marginais vestidos de preto. A Honda, que queria vender suas motos pequenas, queria mudar essa imagem, para poder vender para adolescentes, mulheres, trabalhadores e idosos. Ela então encomendou uma campanha publicitária famosa até hoje pelo sucesso de vendas, que dizia mais ou menos assim: “Você encontra pessoas legais em uma Honda”, com fotos bem fofinhas de pessoas confortáveis.

O que Gunnison pensava desse slogan? Bem, ele já teve todo tipo de moto, inclusive de outras marcas japonesas. Mas uma Honda nunca. Por que? Porque ele não queria conhecer ninguém legal, ele queria conhecer pessoas interessantes!

Eu não respeito a opinião de um velho só porque ele é velho. Claro que eu tenho respeito pela eventual dificuldade de locomoção, de fala e de raciocínio que a idade traz. Também tem a carência emocional e a segregação social que eles vivem. Isso é uma grande violência, que tem que ser resolvida. Agora, nada disso me faz achar que um velho seja necessariamente mais sábio do que um jovem.

O que me deixa muito confortável para elogiar a opinião de um velho. Não porque é velho, mas porque é inteligente, sábio e corajoso. Em geral, quem chega bem à velhice não é porque foi corajoso, mas porque foi muito cuidadoso. Os bons morrem cedo. Ainda bem que volta e meia esquecem de levar um Gunnison da vida.

Depois dos 60 anos, devido à uma queda de moto de vários anos antes, ele passou a ter uma doença degenerativa no quadril, ficando praticamente aleijado, só andando com a ajuda de uma bengala especial. Quais as implicações disso? Bem, teve que modificar a sua moto. Agora a moto tinha um comando manual para engatar a primeira e Gunnison tinha que andar mais para trás, ocupando o espaço da garupa. Mas, e sua mulher que sempre o acompanhara nas viagens? Simples, ela aprendeu andar de moto e agora viajavam em dupla.

Como professor, Gunnison se sente à vontade para fazer críticas à educação oficial, que nos prepara para termos um pensamento único, amarmos o trabalho acima da vida, buscarmos a felicidade na compra de produtos tecnológicos e nos atolarmos em dívidas. Sim, mas e os nossos instintos para aprendermos coisas novas, e nossa curiosidade natural para o novo? Simples, ligue a Discovery Channel e passe a vida sonhando que você está realmente descobrindo algo, não apenas digerindo o vômito alheio.

O mote principal do livro é uma viagem de moto que ele fez para comemorar os seus 75 anos de idade. Foram 7.500 milhas, 100 milhas por cada ano. Durante essa viagem ele foi lembrando de tudo o que viveu, dos moinhos que enfrentou e dos dragões que derrotou.

A lição que ele nos deixa é de que vale a pena ter a coragem de fazer o que dá prazer, mesmo que você seja visto pelos outros como improdutivo. Pode parecer egoísmo, mas não é. Quem deixou algum legado sempre estava fazendo algo que lhe dava prazer, não se preocupando em seguir o check-list do sucesso profissional.

Gunnison escreveu o livro em 2002, quando tinha 83 anos. Eu não sei se ele já morreu ou não. Também não quero saber. Não importa. Como ele mesmo disse, ele sempre estará vivo nas últimas páginas do livro que escreveu, enquanto alguém estiver lendo. É verdade. Eu o encontrei por lá.

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