A Ciência do Ciclismo


© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: Bicicletas em Equilíbrio

A CIÊNCIA DO CICLISMO
Fábio Magnani
[publicado originalmente em julho de 2012]

David Gordon Wilson nasceu na Inglaterra em 1928. Com pouco mais de 30 anos ele se mudou definitivamente para os EUA. Como o Bank of England não deixou que tirasse suas poucas economias do país, Dave decidiu usar esses fundos para um prêmio destinado a melhorias em bicicletas e veículos de propulsão humana. Esse prêmio acabou sendo muito divulgado, o que fez com que conhecesse gente legal do mundo das bicicletas. Uma delas foi Frank Rowland Whitt, que lhe entregou o manuscrito “Bicycle Motion” na tentativa de que fosse publicado nos EUA. Após um par de anos de rejeições, o livro finalmente foi publicado em 1974, com muitas adições do próprio Dave Wilson. Era nascida a bíblia do ciclismo: Bicycling Science. Uma segunda edição foi feita em 1980, já sem a presença de Frank Whitt, que tinha tido um derrame e morreria logo depois. Finalmente em 2004 saiu a terceira edição, com a participação de Jim Papadopoulos. Hoje em dia Dave Wilson é professor emérito de engenharia mecânica no MIT.

O livro é denso, com mais de 450 páginas. É dividido em 12 capítulos. Começa com uma pequena história do ciclismo. O capítulo 2 fala sobre geração de potência humana, onde o corpo humano é visto como um motor. Dave confessa que esse assunto em particular não é sua grande especialidade, mas faz um grande levantamento bibliográfico sobre as formas de medir a potência humana, tipos de fibras musculares e fontes de energia. A figura abaixo mostra uma estimativa da máxima potência que pode ser sustentada por um ser humano em função do tempo. Quer dizer, o cara pode gerar 400W por um minuto, mas se quiser pedalar por uma hora, o máximo será 250W. A partir dessa curva é que devem ser projetadas as bicicletas para cada um dos seus usos. Segundo Dave há uma certa discussão sobre qual é a grande limitação para uma maior potência humana: oxigênio, glicogênio ou aumento da temperatura. Em outras palavras, o ciclista cansa porque não consegue respirar mais, porque não tem combustível nos músculos ou porque não consegue resfriar o corpo? Se for a terceira hipótese, essa informação é muito importante para o uso da bicicleta no Brasil, já que nossa temperatura e umidade são bastante altas, o que dificulta o resfriamento. O fenômeno da transferência de calor durante a pedalada é apresentada no capítulo 4.

O capítulo 5 discute o arrasto aerodinâmico, um dos maiores absorvedores dos esforços do ciclista. Depois segue um capítulo sobre a energia gasta na rolagem da bicicleta, usada principalmente para deformar o pneu. O capítulo 7 é sobre frenagem e o oitavo fala sobre a ciclística. Dave assume que gostaria que esse último material tivesse ficado melhor. Tudo bem, já que temos o Cossalter exatamente sobre esse assunto. O próximo capítulo apresenta a transmissão, focando principalmente em descarrilhadores e engrenagens planetárias de cubo. O capítulo 10 discute os materiais usados nas bicicletas: aço, alumínio, madeira, bambu, titânio, magnésio, materiais compósitos, plástico, níquel e berílio. Cada material tem características diferentes em relação à resistência, densidade, ductilidade, resistência a fadiga, soldabilidade, usinabilidade, resistência à corrosão, custo e dureza. Nesse capítulo ele também fala das dificuldades em estimar as cargas que a bicicleta será submetida.

Os dois últimos capítulos são dedicados a outros veículos de propulsão humana: cortadores de grama, removedores de neve, ônibus, veículos de carga, barcos, aviões e helicópteros. Bem, esses são os que já existem, mas os do futuro também aparecem. Mas aqui, ao invés do Dave propor um monte de maluquices, ele discute dois assuntos muito sérios. Primeiro, a evolução do que já existe: uso de materiais compósitos, correntes protegidas, garfos de lâmina única, pneus sem câmara, freios a disco baratos, bicicletas recumbentes e esteiras para auxílio de bicicletas em subidas. Ele não acredita muito na mudança automática de marchas, pois no caso da propulsão humana dificilmente um computador ou um mecanismo poderão prever a marcha ideal melhor do que o próprio ciclista.

Mas o principal assunto para o futuro das bicicletas são as ações governamentais. Enquanto o governo subsidiar os carros e as estradas, as bicicletas nunca terão regras igualitárias para competir no mercado. Hoje em dia as montadoras e as construtoras é que ganham dinheiro, enquanto os motoristas de carro ficam presos nos congestionamentos. Simples assim.

Falando em linhas gerais do livro, ele é todo embasado por trabalhos científicos. Quando não há consenso, isso é deixado muito claro. Dave Wilson ataca fortemente o amadorismo presente no mundo das bicicletas. Segundo ele, as fábricas não usam boas práticas de engenharia. Ao invés de fabricarem produtos eficientes, as fábricas inventam “novidades” só para vender mais. O problema é que nessa miopia elas vendem bicicletas de baixa eficiência, fazendo com que as pessoas desistam do ciclismo.

Aliás, essa questão da eficiência é fundamental, porque o corpo humano tem uma potência muito baixa. Um ciclista médio “gera” cerca de 100W. Isso é 100 vezes menor do que uma moto 125cc simples. Se a bicicleta não for extremamente eficiente, uma fração muito grande é desperdiçada. Essas perdas ocorrem principalmente na aerodinâmica, rolagem de pneus e transmissão para a roda. Por isso, toda vez que uma fábrica promove uma mountain bike para andar na cidade, ela está cometendo um crime lesa bicicletismo.

Outra crítica é sobre os jornalistas de revistas especializadas, que aparentemente conseguem avaliar qualquer produto, mesmo que esteja provado que um ser humano não tem a capacidade de distinguir diferenças tão pequenas. Na maioria das vezes as diferenças entre os produtos são apenas cosméticas, sem efeitos perceptíveis na performance. Os jornalistas que mentem assim estão mais preocupados em vender as bicicletas dos seus anunciantes, ou então em parecerem grandes gurus do ciclismo. Mas ao fazerem isso causam um grande desserviço ao ciclismo, pois não atacam as enrolações das fábricas. Por exemplo, não faz muita diferença diminuir o peso de uma bicicleta em 1 kg. Também não faz diferença aumentar a eficiência de uma transmissão em 1%. Mas as revistas defendem isso com unhas e dentes, sem a coragem de dizer que não vale a pena investir R$ 2.000,00 a mais em um gruppo que vai diminuir 12 segundos em cada uma hora. Isso pode ser importante para o Tour de France, mas não é para o cidadão comum.

Para quem estiver interessado em montar uma fábrica de bicicletas de qualidade, os seguintes pontos devem ser atingidos:

  • Domínio da teoria
  • Conhecimento da tecnologia da bicicleta e dos processos de fabricação
  • Estudo das patentes existentes
  • Informação sobre o processo de homologação de bicicletas
  • Conhecimento do mercado
  • Compreensão, respeito e fomento da cultura do bicicletismo
  • Captação de recursos
  • Marketing com responsabilidade social

As fábricas existentes por aí vendem ilusões. Para vender mais, elas fazem muita propaganda de descarrilhadores lustrados, suspensões pesadas e materiais diferentes mas com as mesmas características gerais do aço. Assuntos realmente importantes não são tratados, como a postura ideal para o trânsito urbano, melhorias aerodinâmicas do conjunto, marchas que mudem direito nas arrancadas e pneus com bom amortecimento mas sem perdas na rolagem.

Por exemplo, por que não vendem bicicletas com pequenas bolhas, que dariam um grande ganho aerodinâmico? A história é a seguinte: a UCI – Union Cycliste Internationale, órgão que regulamenta as competições – não permite grandes evoluções tecnológicas. O argumento deles é que o ciclista deve vencer pelo esforço próprio, não por causa da tecnologia. O problema aparece quando as fábricas, que querem vender, simplesmente imitam essas bicicletas de competição com design antigo. Fazem isso para se aproveitarem do marketing das competições e para poupar investimentos tanto em desenvolvimento tecnológico quanto de convencimento do mercado. Poderíamos ter bicicletas muito mais eficientes, o que faria o número de ciclistas aumentar. Mas a cegueira da UCI e das fábricas impede esse avanço.

Pior ainda, as fábricas não lutam pelo ciclismo. A Pope, maior fábrica dos EUA nos anos dourados das bicicletas (1885-1895), fundou o departamento de transporte do MIT, fazia lobby por melhores estradas e pagava advogados para defender os ciclistas. Hoje em dia as fábricas não querem saber de nada além de vender para um pequeno nicho de classe média ou bicicletas péssimas para os trabalhadores. Enquanto isso o governo baixa o IPI dos carros, constrói novas estradas para os carros e todos comemoramos a produção de mais petróleo para os carros. E todos ficamos presos no trânsito, morremos em acidentes, gastamos uma fortuna para comprar um veículo novo e tentamos sobreviver em cidades que não foram pensadas para o bem estar dos humanos. Deve ser bom para alguém: as empreiteiras ganham um monte com isso, as fábricas de carro ganham um monte com isso, os governantes são financiados com esse dinheiro e o lucro das produtoras de petróleo pode ser usado para fazer propaganda governista, controlar a imprensa e pautar a pesquisa nas universidades.

O livro Bicycling Science discute todos esses assuntos com muita coragem. Pode ser lido por jornalistas que querem divulgar o que é relevante, por projetistas que querem ideias para novos produtos, por engenheiros que querem evoluir o que já existe por aí, por ativistas que querem compreender em que condições as bicicletas podem ser usadas com conforto pelo cidadão comum, por empresários que querem ficar milionários produzindo bicicletas honestas e por esportistas que querem uma melhor performance. Recomendo muito mesmo a leitura deste livro.

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