Semana de Cultura Motoboy


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Livro: Política em Duas Rodas

SEMANA DE CULTURA MOTOBOY
Fábio Magnani
[publicado originalmente em agosto de 2012]

Semana passada participei do debate “Vida de Motoboy”, que fazia parte da “3a Semana de Cultura Motoboy”, que por sua vez integrava a “2a Mostra Cultural Estéticas da Periferia“. O evento ocorreu no Centro Cultural São Paulo, no dia 23.08.2012.

Foi uma grande honra. Primeiro porque foi em São Paulo, um lugar complexo que é ao mesmo tempo símbolo do conservadorismo (ódio aos motoboys) e fonte de muita coisa nova (incentivo à expressão da periferia). Segundo porque foi no meio dos motoqueiros, grupo do qual faço parte. Terceiro porque era um evento com visões que iam muito além da minha humilde engenharia mecânica. Além de contar com a participação de pessoas com as mais variadas formações e histórias de vida. Não sei se tinha o direito de estar ali, mas gostei muito e aprendi bastante.

Eu não sei exatamente o que falei ali na hora, já que tudo foi meio de improviso. Mas segue na próxima seção o texto que havia escrito alguns dias antes e que usei para basear a minha fala. Espero não ter fugido muito disso, mas estou com medo de ter pregado a revolução dos motoboys, defendido a anarquia como forma ideal de governo, ridicularizado algumas propagandas da campanha contra acidentes de moto em Pernambuco e proposto o desmanche imediato do monopólio da Honda no Brasil. Por outro lado, talvez tenha me comportado, pois até agora não recebi nenhuma intimação, não fui vítima em um “acidente corriqueiro” de trânsito, não levei uma “chamada” de nenhuma autoridade, não fui desqualificado em nenhum impresso chapa branca, meu blog não foi apagado e obviamente ainda não apareci boiando no rio Capibaribe.

Fala inicial no debate “Vida de Motoboy”

Boa noite a todos. Em primeiro lugar, queria agradecer ao convite para esse debate. Não é todo dia que temos eventos feitos por motoqueiros para motoqueiros. Parabéns a todos que se empenharam para que esse dia chegasse.

Para quem não me conhece, meu nome é Fábio Magnani. Sou professor de Estudos da Motocicleta na UFPE – que é a universidade federal lá de Pernambuco. Outra razão de ter sido convidado foi o meu blog de motoqueirismo, o Equilíbrio em Duas Rodas, onde escrevo sobre motos e bicicletas. Ao contrário dos textos acadêmicos, onde tudo tem que ser provado antes de ser publicado, no blog posso falar sobre minhas impressões e pensamentos.

Nesses dois trabalhos – na universidade e no blog -, tento entender e retratar o mundo das duas rodas olhando de vários pontos de vista. Por exemplo: tecnologia, cultura, acidentes, discriminação e mercado. Isso porque acredito que só alguém que conhece bem uma situação está em condições de realmente ajudar na solução dos problemas. Bem… eu não sou exatamente essa pessoa que conhece muito bem a situação, mas tento fazer a minha parte cooperando na formação delas.

Também sou motoqueiro. O que significa que já fui fechado por um ônibus, arrebentando minha moto em sua lateral. Já fui impedido de entrar em um elevador por causa do preconceito. Já me mandaram estacionar em um cantinho escondido do estacionamento, mesmo tendo pago o mesmo que um carro. Tentam me matar diariamente na rotatória que fica na entrada do meu trabalho. Já fui tratado como criminoso só por usar um capacete, que é obrigatório. Já me mandaram parar em uma blitz enquanto os carros passavam direto. Já impediram que minha filha andasse na minha garupa em um shopping enquanto os carros podiam andar normalmente com seus passageiros a bordo. Sou motoqueiro. O que significa que vivo plenamente o dia. Me divirto desde cedo, no caminho do trabalho ou na saída para uma viagem. Sinto o vento no corpo e faço meu próprio caminho.

Eu não sou motociclista. Aliás, eu nem gosto da palavra “motociclista”. Na prática, essa palavra serve para separar quem é rico de quem é pobre, separar quem tem moto grande de quem tem moto pequena, separar quem passeia de quem trabalha. Outra coisa ruim dessa palavra “motociclista” é que normalmente está associada a discursos que tentam amansar e controlar os motoqueiros. Para mim, todo mundo que anda de moto é motoqueiro: pobre, rico, independente ou bonzinho. Andou de moto, é motoqueiro. Ao lutar pelo uso da palavra “motoqueiro”, o que eu quero afirmar é a necessidade de incluir todas as pessoas nas discussões dos problemas, independente da classe social, do nível escolar, do sexo ou da cilindrada da moto.

Agora, por que incluir todo mundo? Porque eu acho que as discussões envolvendo as motos no Brasil estão concentradas em apenas alguns poucos temas e são travadas por apenas algumas poucas pessoas. Ao meu ver, essa visão estreita do mundo das motos dificulta a solução dos problemas. O governo só fala dos gastos que tem por causa dos acidentes. As revistas de moto só querem ajudar as fábricas a vender mais. A imprensa só quer um inimigo público número 1 para vender mais jornais. As pessoas comuns querem alguém para odiar. Então: para o governo o motoqueiro é um gasto, para a revista de moto o motoqueiro é um alvo publicitário, para os jornais o motoqueiro é um criminoso, para as pessoas comuns o motoqueiro é a causa de todos os males.

O que eu tento, tanto na universidade como no blog, é ajudar a melhorar essa discussão. Por exemplo, quando divulgo a história da indústria japonesa, dou subsídios para a montagem de fábricas aqui no Brasil. Quando analiso os estudos sobre acidentes, trago informação para campanhas mais eficazes. Quando falo sobre o dia a dia do motoqueiro, estou lutando para que todos tenham voz. Inclusive eu mesmo, pois raramente sou ouvido quando falo sobre motos. Mas não tem problema. Ninguém aqui vai parar de trabalhar pelo motoqueirismo.

Como exemplo, me deixe falar sobre algumas questões que trato nas disciplinas e nos textos.

Primeira questão: qual é a real causa dos acidentes?

Existem apenas dois estudos sérios sobre acidentes de moto: Hurt Report (1981) e MAIDS (2009). Nesses dois estudos os pesquisadores iam para a rua descobrir as causas, não ficavam nos hospitais ou delegacias só contando os corpos. Os dois chegaram à conclusão de que a maior parte dos acidentes envolvendo motos é causada pelos carros. Entre esses acidentes causados pelos carros, há três grandes motivos: os motoristas não percebem as motos, os motoristas não respeitam as motos e os motoristas calculam mal a velocidade das motos.

Alguns críticos dizem que não podemos usar esses resultados no Brasil, já que esses estudos foram feitos em outros países. Mas são as únicas informações reais que temos hoje. Claro que precisamos fazer estudos desse tipo aqui no Brasil, para a nossa situação. Mas até conseguirmos isso, temos duas opções: ou usamos o que existe em outros lugares ou continuamos com achismos. Chega de achismos. Porque se for por achismo, as autoridades vão continuar eternamente acreditando que os motoqueiros são os culpados de tudo.

O que precisa ser feito para diminuir os acidentes?

1 – Realizar estudos sérios aqui no Brasil para levantar as reais causas dos acidentes. Nas ruas! Estudos com grupos de controle, não só entre os acidentados. Estudos com financiamento decente, não apenas centavos por moto circulando. Estudos com amostragens representativas.

2 – Continuar com campanhas pela habilitação e pela diminuição do uso do álcool.

3 – Executar campanhas contra a imprudência de alguns motoqueiros. Mas tem que ser campanhas inteligentes e que não ataquem todos os motoqueiros. A maioria dos motoqueiros é séria.

4 – Conceber campanhas educativas para os motoristas – para os motoristas -, já que eles são os principais culpados dos acidentes.

5 – Cobrar o investimento das fábricas. Elas faturam R$12bi por ano só com motos novas. Precisam ser responsabilizadas pelos acidentes com seus produtos.

6 – Cobrar a eficácia das campanhas de prevenção de acidentes. Ver quanto foi gasto e comparar com campanhas de outros países.

7 – Ouvir os motoqueiros. Principalmente os que não se acidentam. Eles sabem como evitar acidentes.

Segunda questão: por que as pessoas têm ódio dos motoqueiros?

Essa é uma questão difícil. A minha reposta é mais baseada em uma impressão pessoal do que em estudos acadêmicos. Eu acho que a principal razão para essa raiva é que o motoqueiro é um pobre que ousa ser feliz em público. O motoqueiro geralmente é mais pobre que os motoristas. Mas ele não é um pobre que fica quietinho no seu lugar, escondido em um ônibus lotado. Não. Ele faz barulho. Ele ousa ser mais rápido que aqueles que estão nos carros. Ele se diverte enquanto trabalha. Ele não pode ser controlado o tempo todo por seu chefe. Ele propõe uma nova ordem no trânsito e também novos costumes.

As pessoas não têm raiva dos motoqueiros. As pessoas têm raiva de si mesmas, por não serem livres, por não se divertirem no trabalho e por não terem coragem de subverter a ordem.

Essa discriminação tem ficado mais clara depois que lancei a disciplina Estudos da Bicicleta. Embora ao meu ver as bicicletas e as motos tenham muito em comum, para as outras pessoas aparentemente as duas máquinas são coisas completamente diferentes. Quando falo de bicicletas eu sou ouvido, sou lido e convidado para entrevistas. As bicicletas são as queridinhas da classe média. Quer dizer, a classe média gosta das bicicletas na teoria, porque na hora de transformar uma faixa em ciclofaixa eles ficam revoltados. Mas pelo menos em discurso eles gostam das bicicletas.

Agora, quando começo a falar das motos, os não-motoqueiros ficam completamente alterados: “Claro que os motoqueiros são os culpados. Eles não respeitam nada. Hoje mesmo, um motoqueiro quase se matou na minha frente”. Essas conversas acabam ficando muito carregadas emocionalmente. São legais porque me ensinam um pouco de onde vem o ódio. Por outro lado, essas conversas não trazem muitos resultados. Estou tentando bolar um jeito de conversar sobre motos com as pessoas sem despertar essas emoções ruins, mas até agora não tive bons resultados.

Nós, motoqueiros, precisamos aprender com nós mesmos, bicicleteiros. Por exemplo, as poucas centenas de mensageiros de Nova Iorque conseguem influenciar toda a classe média, que tenta ridiculamente imitá-los nas bicicletas, roupas e comportamento. Os mensageiros brasileiros, que andam de moto, não conseguem esse tipo de admiração. Ao contrário, a classe média até tenta isolar-se deles, usando o termo “motoqueiro” para os pobres e “motociclista” para os diferenciados.

Outra possível razão para esse ódio é que hoje em dia é crime falar mal de quase todas as minorias. Ainda bem! Mas falar mal dos motoqueiros pode. Então eles acabam recebendo toda o ódio da classe média.

Seja qual for a razão do ódio, os motoqueiros precisam aprender como inverter essa imagem. Ao invés de serem vistos como inimigos, precisam ser vistos como realmente são: uma boa alternativa para as nossas cidades. Eles são uma parte da solução para o problema da mobilidade, apresentam uma renovação nas relações trabalhistas por serem proprietários das ferramentas e provam que às vezes é saudável um pouco de subversão.

Terceira questão: será que as motos do mercado são as motos que queremos?

Vivemos em um país dominado completamente por duas fábricas de moto. O problema com os monopólios é que eles eliminam a competição. É a competição que traz as melhorias. Por exemplo, a própria Honda e a Yamaha cresceram em um ambiente de forte competição. No início dos anos 50, havia 200 fábricas de moto no Japão. Dez anos depois havia apenas quatro. Essas fábricas provaram que eram melhores do que as outras.

Seria interessante ter uma variedade por aqui também, para testarmos novos tipos de moto. Queremos analisar motos elétricas, motos de carga, motos mais ágeis para os motoboys, motos para o transporte seguro de crianças e por aí vai. Mas, como vivemos em um monopólio, só temos praticamente um tipo de moto. Será que são tão seguras quanto possível? Nunca saberemos, pois em monopólios não há como fazer comparações.

As motos elétricas, por exemplo, são muito interessantes. Primeiro, poluem menos. Segundo, são bem mais simples de serem fabricadas. Poderíamos ter um monte de pequenas fábricas por aqui. Mas não há qualquer tipo de incentivo. Qualquer novidade é vista como uma porcaria vinda da China. O governo não investe no desenvolvimento e no teste de novas tecnologias. Os jornais e revistas só querem agradar aos seus anunciantes. Estamos condenados a termos as mesmas motos para todo o sempre. Estamos condenados a termos as mesmas fábricas para todo o sempre.

Conclusão

Para terminar, queria pedir desculpas por ter feito mais perguntas do que ter dado respostas. Mas acho que vivemos um momento de mudanças. Precisamos aprender a integrar as várias visões e precisamos aprender a ouvir todo mundo. Chega de soluções unilaterais, baseadas em achismos e sem a participação de todos os interessados.

Mas não queria sair sem deixar pelo menos uma proposta concreta. Qual o principal caminho para diminuir os acidentes, aumentar o poder político dos motoqueiros e forçar as fábricas a produzirem as motos que queremos?

A minha resposta é uma só: produção cultural.

Precisamos de cursos que formem profissionais com uma visão ampla do motoqueirismo. Precisamos de estudos que provem que os motoqueiros são as reais vítimas no trânsito e no trabalho. Precisamos de cooperativas que proponham e testem novas tecnologias. Precisamos de músicas e filmes que valorizem os motoqueiros como cidadãos do bem. Precisamos de livros e congressos que provem que os motoqueiros são uma ótima solução para as cidades. Precisamos de reportagens honestas que mostrem todos os lados do motoqueirismo, em toda sua diversidade e complexidade.

Ao mudarmos essa visão que as pessoas têm dos motoqueiros, poderemos exigir que o governo use nossos impostos para nos proteger, poderemos forçar que as fábricas façam as motos que queremos e poderemos mostrar para a sociedade que os motoqueiros são uma boa novidade. Porque, afinal, os motoqueiros não são os inimigos. Os motoqueiros são uma alternativa inteligente, criativa, orgânica e democrática para a mobilidade urbana.

Se essa produção cultural não vier da grande mídia, que venha da periferia. Se não vier das universidades, que venha das ruas. A 3a Semana de Cultura Motoboy é um grande símbolo disso. Eu estou muito feliz por estar aqui hoje. Obrigado.

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