Mais Semana de Cultura Motoboy


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Livro: Política em Duas Rodas

MAIS SEMANA DE CULTURA MOTOBOY
Fábio Magnani
[publicado originalmente em agosto de 2012]

São Paulo fica 2.600 km ao sul de Recife. Isso de moto. Porque de avião, como diria Luiz Gonzaga, é bem mais perto. Sempre que eu vou para São Paulo só rodo pelo centro, por isso acho uma das cidades mais interessantes do Brasil. Estranho que muitos moradores de lá não pensem assim, provavelmente porque eles conhecem as outras partes também. Mas para mim São Paulo é legal. Ponto.

Eu me sinto meio snob quando ouço a mim mesmo dizendo que não gosto de viajar de avião – só de moto. Mas é a pura verdade. Os aeroportos são entupidos de gente. As cadeiras dos aviões são muito desconfortáveis. Somos desrespeitados de várias formas. Em Recife tive que tirar o sapato e o cinto na frente de todo mundo. Já em São Paulo foram o cinto e o relógio. Isso sem contar que eles ficam nos obrigando a ouvir propagandas de carro o tempo todo nos autofalantes. Repetem repetem repetem as mesmas instruções sem parar. Um inferno.

Durante o vôo eu li o livro Ghost Writer, onde o cara tem uma teoria de que no próximo holocausto bastará dar uma passagem de avião para que as pessoas caminhem felizes da vida para o “chuveiro”. Afinal, temos comprovação diária de que as pessoas aceitam qualquer humilhação nos aeroportos. Adorei essa comparação.

Voltando ao assunto, a razão principal da viagem foi participar de um debate na 3a Semana de Cultura Motoboy. Aproveitei para conhecer um pouco melhor os motoqueiros por lá. Esse evento foi feito pelo pessoal do Coletivo canal*Motoboy, que é um grupo que registra o dia a dia nas ruas. Eles rodam a cidade com seus celulares, registrando tudo o que acontece em vídeos, fotos e textos. Mas não são só acidentes, erros da engenharia de tráfego ou truculências policiais. Eles também mostram suas vidas em escolas, festas e igrejas. Ao fazerem isso, mostram que o motoboy não é apenas um elemento em uma estatística, mas sim um ser humano completo, que deve ser visto como tal.

A primeira parada foi um bife com arroz, feijão e salada perto da Praça da República. Ali conheci o Neka (curador da Semana de Cultura Motoboy) e o Antoni Abad (artista mentor do Coletivo Canal*Motoboy). Já conversava com o Neka por e.mail desde 2011, mas foi a primeira vez que nos encontramos ao vivo. Como o almoço era na beira da calçada, conversamos ao som dos motoboys que passavam pela rua. O Neka contava como eram as coisas em São Paulo, eu tentava explicar como era o trânsito de motos aqui em Pernambuco e o Antoni trazia a experiência de Barcelona. Como os três tínhamos motos, estávamos do mesmo lado contra a discriminação e o preconceito.

Um tema central foi o próprio Coletivo canal*Motoboy, onde os motoboys são ao mesmo tempo produtores e produtos do processo artístico. O Antoni tentou me explicar isso, mas minha cabeça de engenheiro tem sérias limitações.

Depois caminhamos para a famosa General Osório, com suas dezenas de lojas de moto e centenas de motos estacionadas no meio fio. Dizem que ali há comércio de peças roubadas. Mas eu não quis acreditar nisso, já que a polícia acompanha de perto todas as operações. [mode Pollyanna off]

Passamos também na frente de puteiros e teatros de sexo ao vivo. Estavam abertos em plena luz do dia. Na minha ignorância pensei que não existissem mais, ou então que fossem apenas coisa de cinema. (Por falar nisso, mais tarde, ao passarmos pela calçada, testemunhamos o fechamento da Boate Kilt). Tenho uma visão bem contraditória em relação ao sexo pago. Por um lado, acho legal que escancarem um lado do ser humano que a sociedade tenta de todo jeito esconder para debaixo do tapete. Por outro lado, acho triste que as pessoas que trabalham ali sejam exploradas. Seria legal se pudesse haver um meio termo, onde fosse possível a subversão do moralismo sem a degradação de ninguém. De repente seja essa exatamente a função da arte em geral e do teatro em particular. Bem… não sei. Foram só alguns pensamentos que vieram ali na hora.

A próxima parada foi no prédio das ONGs na rua General Jardim, onde fica a Ação Educativa, que é a instituição que abraça o Coletivo canal*Motoboy. É ali naquele prédio que os motoboys se encontram todo sábado para conversarem sobre o projeto. O prédio também é sede de outras ONGs importantes, como o Fórum Social Mundial e ABONG, que é a ONG das ONGs. Fiquei pouco tempo por lá, mas o ambiente pareceu bem legal.

Sinto falta de conviver em um espaço diverso como desse “prédio das ONGs”. Embora eu trabalhe em uma universidade, as áreas de conhecimento são divididas em departamentos, dificultando muito a troca de ideias. Pior que isso, as universidades têm uma certa dificuldade em conversar com o mundo lá fora. Pobres são vistos como objetos de pesquisa. Empresas são vistas como clientes. Por isso a nossa luta por criar o Fórum UFPE de Estudos da Motocicleta, onde haveria uma convivência mais horizontal entre todos os atores do motoqueirismo. Quem sabe um dia…

No final da tarde pegamos o metrô na Praça da República para irmos até o local do debate. Na baldeação descobrimos que uma máquina tinha parado em algum lugar, o que tinha provocado o engessamento de todas as linhas. Imagine o sistema todo parado às seis horas da tarde em uma das maiores cidades do mundo. Pior do que isso, como as pessoas buscavam outra forma de locomoção, logo não havia mais espaço nos ônibus ou táxis livres. O negócio foi caminharmos os 3 km entre a Praça da Sé e o CCSP.

Há uma lenda urbana em São Paulo que diz que toda vez que o metrô pára é porque alguém se matou na linha. Ou então que alguma favela está pegando fogo. As autoridades negam isso a todo custo, sempre dizendo que foi algum problema mecânico. Não sei o que dizer em relação a isso, mas foi legal caminhar no meio da multidão ouvindo as mil e uma versões. Por falar nisso, a cidade parece muito mais viva na calçada em movimento do que dentro de um carro de metrô onde cada um fica completamente estático em seu canto.

Tive a sorte de chegar ao Centro Cultural São Paulo ao lado do Antoni. Como artista, ele consegue ver e expressar as coisas de uma forma muito mais completa. Talvez eu não tivesse curtido tanto a arquitetura do espaço se ele não tivesse me explicado a importância das transições entre os espaços fechados e abertos, o compartilhamento dos vários níveis e a democracia visual dos cidadãos dali do centro cultural, que se veem sem qualquer espécie de hierarquia.

Já escrevi sobre a minha fala no debate em outro texto, mas quero aproveitar para falar do que mais aconteceu por ali. Os outros participantes foram a representante da CET, o dono de uma empresa de motoboys, o presidente do sindicato e um motoboy autônomo. Essa diversidade foi muito interessante porque tivemos vários pontos de vista para compreender um pouco mais do mundo dos motoboys. Quando a palavra foi aberta à audiência, apareceram mais temas ainda. Por exemplo, nunca perdermos de vista a importância dos pedestres, algumas ideias de como promover a harmonia no trânsito e a lógica cruel que vivemos hoje em dia, centrada nos carros e no petróleo.

O final da noite foi dedicado a fechar alguns bares da cidade, que estranhamente baixam as portas à meia-noite. Discutimos por ali o real papel dos motoboys. Eles são uma nova velha forma de trabalho, já que são donos das suas próprias ferramentas, como eram os artesãos. Também são a interface entre o cyberspace e o meatspace, pois são eles que materializam os desejos clicados na internet. Além disso tudo, os motoboys são uma nova proposta para o trânsito urbano: orgânica, democrática, inteligente, viva, eficiente e divertida.

No segundo dia pela manhã, tendo um tempo livre, resolvi fazer um programa de burguês. Peguei o meu moleskine para anotações e segui para o MASP, onde havia uma exposição do Caravaggio. Meu principal objetivo era passar uma hora em um lugar tranquilo e meditar um pouco. Mas as salas da exposição estavam cheias, com as pessoas se esbarrando ombro a ombro. Ainda bem que encontrei uma exposição de cerâmica coreana que aparentemente não chamava atenção de ninguém. Que bom, um pouco de silêncio. Bem apropriado, porque aquelas obras não tinham tido finalidade mercantil ou prática. Tinham sido criadas simplesmente para o auto cultivo dos artesãos. Gostei.

Estou pensando em virar católico, pois ouvi dizer que as suas igrejas estão cada vez mais vazias. Depois das experiências nos aeroportos, no metrô e no museu, parece que só em uma igreja teria um pouco de tranquilidade. O problema é que algum padre poderia tentar puxar conversa ou então pedir um dízimo. Melhor mesmo é procurar minha tranquilidade onde sempre a encontro: nos meus livros onde converso com meus amigos e no meu capacete enquanto rodo pelo mundo afora.

Por falar em tranquilidade, fiquei com a impressão de que o trânsito de São Paulo é mais tranquilo do que o de Recife. Parece que há menos carros, que os motoristas respeitam mais os pedestres, todos andam mais devagar e não há tantos congestionamentos. Pelo o que eu tinha visto na televisão eu esperava algo bem pior. Acho que somos insuperáveis em soluções erradas para o trânsito urbano aqui em Recife. Mas, para não dizer que não falei dos espinhos, São Paulo tem alguns problemas também. Por exemplo, colocaram a estação da Consolação na Paulista e a estação da Paulista na Consolação. Pode fazer sentido para eles, mas é muito confuso para os turistas.

Nesse segundo dia à tarde tivemos a experiência mais legal do evento. Acompanhei o Neka até a Zona Leste, onde ele foi falar sobre o livro dos motoboys para as crianças de uma escola. Acho que era uma escola de crianças superdotadas, porque elas só faziam perguntas interessantes e comentários inteligentes. O mais legal era a visão que tinham dos motoqueiros. Elas sabiam pesar muito bem o perigo e a liberdade que uma moto traz. Nem eram completamente amedrontadas, nem tampouco inconsequentes. Isso me deu esperança de que caminhamos para um tempo em que haverá mais segurança e menos preconceito para os motoqueiros. Só tive pena das crianças, que me tomaram como alguém importante e pediram autógrafos.

Da Zona Leste pegamos o metrô e depois o ônibus para a Zona Norte. Era sexta-feira, no horário de volta para casa, mas o ônibus não estava entupido e não ficamos parados em congestionamentos. Mais uma vez, quanta diferença de Recife.

No Centro de Cultura da Juventude, em Cachoeirinha, teve o show de encerramento, com vários grupos de rap. A linguagem deles é muito clara e direta, falando sobre a discriminação dos pobres, o preconceito contra os negros, a violência gratuita da polícia, o dia a dia cansativo do motoboy e os acidentes nas avenidas. O mundo seria bem diferente se os nossos jovens prestassem mais atenção nessas músicas do que nas bobagens infantoeróticas que são promovidas na rádio e na televisão.

Quarenta e oito horas depois de sair de casa eu já estava no avião de volta. Fiquei pouco tempo, mas tive um grande banho de motoqueirismo em São Paulo: almoço com o artista Antoni Abad e com o filósofo Neka, rolê na General Osório, visita ao prédio das ONGs onde fica a Ação Educativa, correria no meio da multidão porque o metrô tinha parado, debate capitaneado pelo Ronaldo no CCSP, visita ao MASP, debate com crianças superinteligentes na Zona Leste (ali é Corinthians!) e encerramento com grupos de rap na Zona Norte. Isso fora as conversas sociológicas, filosóficas e políticas nos coletivos, metrôs, ruas e bares. Aprendi pra caramba.

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