O Ciclista Snob


© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: Bicicletas em Equilíbrio

O CICLISTA SNOB
Fábio Magnani
[publicado originalmente em março de 2012]

As bicicletas têm muito em comum com as motos. As duas têm a mesma origem, lá nos velocípedes do século XIX. As bicicletas modernas, irmãs mais velhas, nasceram na década de 80. Já as motos começaram a ser comercializadas na década de 90. Mas claro que são diferentes. As motos pesam mais, poluem mais, fazem mais barulho, correm mais e têm maior autonomia, o que faz com que o seu uso seja diferente. Outra diferença é o motor. Embora as duas máquinas convertam energia química em movimento circular em uma manivela, a moto usa um motor de combustão interna enquanto a bicicleta usa um humano. Mas também têm semelhanças: as duas são ameaçadas pelos carros, andam sobre duas rodas, oferecem escolha individual aos seus passageiros, constituem formas democráticas de organização do trânsito e são desprotegidas dos elementos.

Essas quatro semelhanças – dinâmica, história, democracia e violência – me levaram a estudar as bicicletas. Tudo bem – pelo menos aparentemente -, pois esse novo passo é uma consequência acadêmica lógica do que eu normalmente estudo. O problema é que o bicicletismo é um assunto taboo para mim. Dos sete aos vinte e dois anos eu fui bicicleteiro. Primeiro com uma Monareta, depois com uma Monark Super 10. Quando eu era criança, todo dia no final da tarde andava pelas ruas da cidadezinha onde eu morava. Depois na adolescência corria por estradas de asfalto e de terra. Já na universidade, matava aulas para rodar por tudo quanto é lugar. Andava de madrugada, durante o dia, à noite. Não havia limite. Mas daí as bicicletas começaram a virar moda. Mountain Bikes de marca, luzinhas, capacetes, passeios em grupo e batedores policiais. Tolamente, eu preferi deixar de fazer o que eu queria para não ser identificado com aquele tipo de gente. Mas não se faz algo assim consigo mesmo sem pagar um preço. O preço que eu paguei foi passar a acreditar que tinha ódio do que mais gostava.

Quem me ajudou a entender essa questão foi o livro Bike Snob. Ao explicar os tipos de bicicleteiros, o cara separa quem busca a essência do bicicletismo de quem só está em busca de mais uma moda, mais uma identidade diferenciada. Daí eu entendi que não tinha raiva das bicicletas. Eu tinha raiva de mim mesmo por ter tido medo de ser contaminado por mais uma modinha. Como se os outros tivessem o poder de tornar superficial uma coisa que para mim não era. No final entendi que do que eu não gostava era dos hipsters e dos bourgeois e dos yuppies e dos trendsetters.

Mas vamos ao livro. Não há nenhuma grande teoria sociológica, ele apenas conta a vida no trânsito de Nova Iorque. Tudo é muito engraçado, se bem que às vezes é cáustico demais. Só não gostei de quando ele diz que há quem ande de bicicleta só por obrigação e portanto não é um ciclista. Achei meio parecido com essa tentativa de separarar mociclistas e motoqueiros. Por isso estou me chamando de bicicleteiro neste texto. Em outras palavras, andou de bicicleta é bicicleteiro. Ponto.

Eu costumo ser muito crítico em relação a como os motoqueiros são tratados. Ao ler esse livro vi que a vida dos bicicleteiros é pior ainda. Por exemplo, uma das formas de um motoqueiro se livrar de acidentes é andar mais rápido que os carros, coisa que as bicicletas não conseguem fazer. Outra coisa é que os motoqueiros têm fama de bandidos, o que ajuda na hora de fazer um motorista pensar melhor antes de nos xingar. Claro que os ciclistas amigos da polícia, que andam com batedores, não têm esse tipo de problema. Mas vá lá na Avenida Caxangá ver como são tratados os trabalhadores que vão de bicicleta para o trabalho.

Por falar em xingar, tem uma história legal no livro. Um bicicleteiro está andando na calçada quando passa raspando em uma senhora. A velhinha reclama, o que faz o bicicleteiro falar um palavrão cabeludo. A velhina solta o verbo: “Seja homem! Ande na rua!”. Pois é, se tem uma coisa que não suporto é motoqueiro que anda na calçada. Ele está fazendo a mesma coisa que um carro que se joga em cima da gente.

Mas o autor não foge de algumas pequenas teorias. Por exemplo, ao explicar porque os motoristas nos odeiam. A questão é que eles apostam toda a sua essência no carro que compraram. “Eu sou o que consumo”. Quando um bicicleteiro impede o livre movimento do carro, é como se estivesse negando a própria existência do motorista. Isso é que causa o quase inexplicável ódio que os motoristas têm de quem anda em duas rodas.

O cara consegue sintetizar muito bem as idéias:

  • Todos estão tentando te matar no trânsito.
  • Não tenho nada contra os carros, só contra os idiotas.
  • O melhor equipamento de segurança é o cérebro.
  • Tudo o que você faz em uma moto também pode fazer em uma bicicleta, inclusive se matar.

Ri muito com a comparação que ele fez entre um motorista e uma mulher que morava sozinha. O motorista vivia em um trânsito feito só para ele, onde todos os carros andavam do mesmo jeito, então nada o incomodava. A mulher vivia em um apartamento só para ela, então a tampa do vaso sanitário sempre estava baixada. Um dia chegaram bicicleteiros compartilhando as ruas. Um dia chegou um cara para morar no apartamento. O motorista ficou fulo da vida porque alguém ousava andar diferente dos carros. A garota ficou fula da vida porque a tampa estava levantantada às vezes. O motorista xingou o bicicleteiro. A mulher reclamou com o namorado. Depois de um tempo o motorista aprendeu a viver com pessoas que usavam as ruas de outra forma. A mulher passou a aceitar que algumas pessoas fazem xixi de outro jeito. Legal.

Ao ler esse livro, um assunto ficou me incomodando o tempo todo. Por que hoje em dia eu dou tanta importância para a violência contra as motos e quando eu andava de bicicleta nas ruas eu não dava a mínima para os motoristas? Desde que a preferência fosse minha, me jogava tranquilamente na frente dos carros. Nunca aconteceu nada. Acho que eu era acompanhado pelos anjos que protegem as crianças, os bêbados e os burros.

É, talvez seja isso. Antes eu não precisava me preocupar tanto. Hoje, um pouco menos imbecil e portanto com menos proteção, eu virei alvo dos carros que tentam me matar no trânsito. Em compensação, também tenho mais condições de explicitar essa situação ridícula, onde as vítimas – motoqueiros e bicicleteiros – são tratadas como as culpadas.

No calor das minhas quixotescas batalhas autolegislantes na defesa dos motoqueiros fracos e oprimidos, eu quase nunca percebo quando uso argumentos parciais. Vivo escrevendo por aí sobre os absurdos que ninguém quer ver: uma única fábrica tem o monopólio de 80% das motos no Brasil, as revistas vendem as próprias motos que “testam”, os carros é que matam os motoqueiros, os motoristas não gostam dos motoqueiros porque acham que as ruas não são “lugar para pobre”, a mídia se limita a papaguear o governo, esse negócio de “motociclista” é só para afastar a ralé… e por aí vai. Certo. O problema é que às vezes esqueço de fazer o contraponto: alguns motoqueiros são realmente imprudentes, as pessoas têm o direito de escolher serem consumistas e todos somos humanos.

Não que eu me preocupe em parecer um proselitista, um rebelde sem causa, um arrivista ou ainda monotemático em relação às motos. Já me acostumei com a estrada errada que eu segui e com a minha própria lei. O problema é que o meu discurso acaba tendo menos força do que poderia ter. A ficha caiu quando li o livro The Enlightened Cyclist (“O Ciclista Iluminado”), de Bike Snob NYC (2012). É o segundo livro dele que leio em poucos meses. Bike Snob também é muito legal.

O livro tem quatro partes que, embora tenham sido escritas pensando nos bicicleteiros, podem ser transportadas diretamente para os motoqueiros. Por falar nisso, há pouquíssima coisa escrita sobre os motoqueiros urbanos. Quase todos os livros de moto são sobre viagens e competições. Deixa então eu roubar um pouco as idéias dos nossos antepassados.

Logo no começo tem um texto sobre a irritação que passamos no commuting (ir e voltar para algum lugar). Os carros invadem a faixa dos ciclistas, os pedestres distraídos tentam o suicídio e os policiais enchem o saco por infrações pequenas enquanto os homicidas fazem o que querem em alta velocidade. Isso sem contar os outros ciclistas, que se espremem para passar na sua frente no sinal fechado, mas que depois ficam dormindo quando o sinal abre. Ou então os que querem apostar corrida. Irritante.

O resto do livro trata exatamente desse tema, como todos se irritam e como todos acham que estão certos enquanto todos os outros estão errados. O autor então passa a listar, de forma bem engraçada, todos os comportamentos que irritam no trânsito. Bicicleteiros, carros e pedestres, todos irritando a todos e a si mesmos. Isso sem contar um outro tipo de irritação, fora do trânsito, que é o discurso dos bicicleteiros que se acham melhores que todos os outros, pois estão salvando a Terra para as gerações futuras.

O mundo das motos também é assim. Motoqueiros irritam outros motoqueiros ao lutarem pelos corredores, motoqueiros irritam carros com o barulho do escape, motoqueiros irritam pedestres tirando finas, bicicleteiros irritam motoqueiros ao não respeitarem o sinal vermelho, carros irritam motoqueiros passando em poças d’água, motoqueiros irritam carros por terem a audácia de se divertirem no caminho do trabalho, carros irritam motoqueiros se jogando por cima da gente, e todas as outras combinações possíveis. Isso sem contar os blogueiros motoqueiros que insistem incansavelmente que as motos são especiais por trazerem uma nova ordem ao trânsito: orgânica, criativa, divertida, inteligente e democrática.

O autor apresenta três grandes teses. Primeiro de que não há um tipo de transporte ideal. As bicicletas são boas para pequenos translados e os caminhões para levar grandes cargas para longe. A segunda tese é que ninguém é melhor que ninguém. Todos estão aqui para continuarem vivos e serem felizes. Por fim, cada um deve se esforçar para um trânsito mais harmonioso.

Tudo bem, é difícil ter compaixão pelo imbecil do carro que acabou de tentar te matar na rotatória. A questão é que não adianta ter raiva do idiota que você nunca mais vai ver na vida. A melhor forma de transformar o mundo é o exemplo. Dar o exemplo de que a ida ao trabalho pode ser divertida (o que é bem mais fácil em cima de uma moto), ser cortês ao deixar um pedestre passar na faixa e não ficar o tempo todo defendendo que a sua escolha de transporte é melhor que as outras. Afinal, ninguém é motoqueiro, bicicleteiro ou carangueiro. Nós eventualmente andamos de moto, de bicicleta, de ônibus ou de carro. Ouvi dizer que algumas pessoas até andam a pé. Falando sério, somos muito mais que a nossa escolha de meio de transporte.

A lição do livro é que devemos sempre lembrar que não podemos mudar os outros. Eles vão continuar nos irritando ainda por um tempo. Mas podemos mudar a nós mesmos, sendo menos irritantes. O negócio é contaminar o trânsito a partir de bons exemplos. Isso podemos fazer. Eu, de minha parte, vou tentar esse negócio de ser um motoqueiro iluminado. Não vai ser fácil, mas prometo tentar. Pelo menos, mesmo que eu não consiga a iluminação espiritual, vou me esforçar para sempre andar com o farol ligado.

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