Motos Que Carregam o Mundo


© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: Política em Duas Rodas

MOTOS QUE CARREGAM O MUNDO
Fábio Magnani
[publicado originalmente em outubro de 2013]

Tenho certeza que as motos não são católicas. Isso porque não podem ser explicadas em sua totalidade nem pelas leis do Paraíso nem pelas penúrias do Inferno. Não são nem só boas nem só más. Motos estão mais para o Panteão Grego, com toda aquela mistura de caos e ordem, perfeição e mesquinharia, drama e comédia. Afinal, as motos trazem consigo acidentes, inclusão social, poluição, trabalho digno, desperdício, aventura, congestionamentos, lazer, dívidas e, o que eu mais gosto, as motos trazem consigo uma transgressão renovadora. As motos representam a vida exatamente como ela é: perigosa, inesperada, caótica, linda, libertadora e surpreendente.

Uma pena que revistas, filmes e jornais tentem esconder toda essa complexidade do mundo das motos. Ou eles mostram só o modelo propagandista americano – motos inacessíveis em inexistentes cenários sem tráfego -, ou só as catástrofes do terceiro mundo – acidentes, fumaça, desperdício, violência e pobreza. Nenhuma dessas duas visões simplórias, uma feita para vender mais motos e outra para vender mais jornais, conduz a uma discussão minimamente inteligente de como aproveitar as vantagens das motos sem ter que conviver com os seus problemas. Na verdade, parece que todo mundo só quer saber de vender mais, sejam motos, sejam jornais, sejam esperanças eleitoreiras. Pouca gente está realmente preocupada em democratizar o espaço do cidadão e em diminuir os acidentes.

Ainda bem que nem todos são mesquinhos e ignorantes. Volta e meia aparece um maluco com a sensibilidade necessária para perceber que, a despeito desses moedores de carne que as fábricas vendem como se fossem motos, e a despeito da mais completa incompetência das autoridades para diminuir a carnificina, e a despeito de todo o preconceito da classe média que emperra as ações eficazes, bem, a despeito de tudo isso, as pessoas pelo mundo agem com inteligência, mesmo que a conjuntura seja miserável, as pessoas se divertem, mesmo que o ambiente seja inóspito, as pessoas sobrevivem, mesmo que a negligência estatal beire ao genocídio. Sim, os motoqueiros são criativos, se divertem, e tentam permanecer vivos na medida do possível.

Mas o que motivou toda essa conversa foi a descoberta de dois livros muito inteligentes, alegres e, principalmente, do bem. Encontrei-os só pelo mais puro acaso. É que, em geral, eu procuro meus futuros livros na Amazon, mesmo que depois compre em outro lugar, como aqui na Livraria Cultura ou lá na AbeBooks. Faço isso porque a Amazon tem boas descrições dos livros, permite olhar como são por dentro e, mais importante, tem uma grande quantidade de comentários de outros leitores. O problema com a Amazon é que ela passa, com o tempo, a tentar adivinhar que tipo de livro que os seus clientes gostam. O que em princípio seria bom, pois ela propõe livros pelos quais eu poderia me interessar e que talvez não encontrasse no meio dos outros milhões. Por outro lado, nunca aparecem livros desafiadores. E aí está o grande problema, já que esses livros diferentes são exatamente os que procuro.

Minha sorte foi que passei a usar um aplicativo no celular para fazer essas buscas na Amazon, o qual, por alguma razão, não resultava nas velhas sugestões de sempre. Foi aí então que encontrei duas joias: Bikes of Burden (2005) e Carrying Cambodia (2010). Dois livros de fotografia que registram o transporte de pessoas e de coisas pelo Vietnã e Cambodja.

Como esses países ainda estão engatinhando em seu desenvolvimento social e econômico, eles não têm uma grande rede de transporte e armazenamento de produtos, e por isso os cidadãos precisam fazer muitas pequenas viagens para garantir a distribuição diária – quase toda feita por motos. Agora, como as motos não são projetadas para cargas tão grandes, as pessoas têm que criar um monte de alternativas para carregar todas essas mercadorias. O que se vê, então, é um carnaval de motos carregando os mais diversos objetos, nas mais diversas maneiras. Uma festa de inteligência, diversão, formas e cores. Mas, antes de ir aos livros propriamente, vamos dar uma olhada na razão desses dois países viverem esse momento.

 

Evolução do Transporte Urbano

Conforme um país cresce, seu sistema de transporte urbano se transforma progressivamente. Primeiro sua população passa por um momento de aquisição de bicicletas, depois de motos, carros, até que finalmente o país desenvolve um sistema equilibrado, composto tanto por veículos de transporte individual quanto de transporte de massa.

Bem, pelo menos essa é a tendência geral – mas que nem sempre ocorre. Nos EUA, por exemplo, a evolução ficou estagnada na fase dos automóveis – nunca atingindo o sistema equilibrado. No caso deles, essa barreira à evolução completa é mantida por um maciço investimento em campanhas de marketing, feito pelas montadoras e pelas produtoras de petróleo, que conseguem convencer os americanos de que ter um carro faz parte da sua identidade cultural, pois representam, mesmo que sem qualquer base na realidade, patriotismo, sucesso econômico, potência sexual, sex appeal, bom gosto, exclusividade e mobilidade. Outra característica própria dos EUA é que as bicicletas e as motos quase nunca foram usadas de forma relevante como meios de transporte. Por lá, quase toda a produção de veículos de duas rodas sempre foi voltada para esporte e lazer. Isso porque, a não ser durante alguns anos após a crise de 29, os EUA sempre foram muito ricos. Em relação ao transporte urbano de pessoas, eles passaram de uma fase exclusiva de transporte por trens/bondes para uma fase exclusiva de transporte por carros. E pararam por aí.

Mas os EUA são uma exceção. Os demais países ricos que sofreram durante a segunda guerra mundial passaram por processos evolutivos mais completos, partindo das bicicletas e chegando a sistemas relativamente equilibrados – pelo menos quando comparados com países em desenvolvimento. Esse processo ocorreu na Inglaterra, França, Itália, Alemanha e Japão. Nesses países, de forma aproximada e grosseira, a coisa se deu mais ou menos assim após a segunda guerra mundial: consumo de bicicletas (FASE DAS BICICLETAS) até o início dos anos 50, motos até meados dos anos 60 (FASE DAS MOTOS), carros até meados dos 80 (FASE DOS CARROS), e depois o início de uma constante luta para equilibrar o sistema de transporte urbano (FASE DO EQUILÍBRIO). A Espanha é uma país de caracterização mais difícil, pois não participou intensamente da Segunda Guerra Mundial, já que tinha acabado de sair de uma guerra civil.

Quase todos os países em desenvolvimento vivem hoje em dia na FASE DAS MOTOS, sendo os mais importantes, ao lado do Brasil, a China, Índia, Indonésia, Malásia, Tailândia, Vietnã, Cambodja, Taiwan, Filipinas, Turquia, Paquistão, Nigéria, México e Colômbia. São para esses países que temos que olhar para compreender melhor a nossa situação e com os quais temos que dialogar na busca de soluções eficazes. Nunca esquecendo, no entanto, de estudar a história dos países desenvolvidos, que já passaram por tudo isso.

Interessante notar que essa FASE DAS MOTOS sempre aparece em momentos de crescimento econômico, seja porque o país saiu de uma guerra, seja porque se libertou da exploração de outros países, seja porque saiu de um regime ditatorial. Todos os países, quando crescem, passam pela FASE DAS MOTOS, com todos os bônus e os ônus disso. O problema é que as autoridades de cada país preferem acreditar que seus problemas são originais, que nunca ocorreram em outros lugares. O que o Brasil vive hoje com as motos é exatamente o que os países ricos viveram após a Segunda Guerra Mundial, e exatamente o que os outros países em desenvolvimento vivem.

Há também uma FASE DO TRANSPORTE DE MASSA, com carruagens, trens, bondes, caminhões, navios, metrôs e aviões, caracterizado pelo uso de veículos com alta densidade de passageiros/carga, horários predeterminados e rotas fixas. Mas, ao contrário dos EUA e da Inglaterra, onde até dá para reconhecer claramente uma fase dessas na segunda metade do século XIX, nos outros países não é tão fácil localizar um momento de predomínio. Pior ainda, esses sistemas nunca deixaram de existir, mesmo que tenham sido secundários durante as outras fases. Aliás, a FASE DO EQUILÍBRIO é exatamente a mistura entre todos os sistemas, desde os individuais até os de massa. Para complicar, antes de tudo houve ainda a FASE DA CAMINHADA e a FASE DO TRANSPORTE ANIMAL. Mas vamos parando por aqui porque este não é um texto de sociologia da mobilidade. Deixemos isso para outro dia.

Algumas pessoas defendem que deveria haver somente pedestres, bicicletas e sistemas de transporte de massa, e que os carros e as motos seriam veículos do demônio. Em um sentido são, por causa da ineficiência, custo, poluição e risco de morte. Em outro sentido, as motos e os carros aumentam bastante a mobilidade e a autonomia, pelo menos até o ponto em que começam a criar congestionamentos. A solução ideal está no equilíbrio, entre a mobilidade dos transportes individuais e a segurança/eficiência dos sistemas de massa. Não queremos ser escravos de rotas e horários rígidos, mas também não queremos morrer no trânsito. Queremos o equilíbrio.

No caso do Brasil, há várias razões para não termos avançado ainda para a FASE DO EQUILÍBRIO. Primeiro, não chegamos a um estágio econômico que sustente o desenvolvimento desse sistema equilibrado, o que demanda grandes investimentos, interfaces sincronizadas entre os vários subsistemas, e uma relativa igualdade econômica e social. Outro problema é que reproduzimos aqui a cultura americana do culto ao automóvel – temos muito mais orgulho em termos um carrão do que em vivermos em uma cidade com transporte eficiente. A terceira razão para nossa estagnação é a existência de várias barreiras que impedem a construção de sistemas de transporte mais inteligentes, como a corrupção, a segregação social, a burocracia, e a incompetência política.

 

Fase das Motos

A FASE DAS MOTOS é a que mais vem me interessando nos últimos tempos – e não só por ter duas rodas no meio, mas principalmente pela sua vivacidade. Quando o consumo de motos passa a ser maior que o de bicicletas, podemos concluir que o país está melhorando economicamente, já que as motos são bem mais caras do que as suas ascendentes não motorizadas – em média uma moto custa 25 vezes mais que uma bicicleta. Outro ponto importante é que a existência de muitas motos reflete uma economia bem distribuída, tanto na produção quanto no consumo, pois as motos têm a agilidade para sustentar um sistema complexo de pequenos empreendedores provendo pequenos compradores. Outro detalhe é que as motos são mais rápidas e têm uma capacidade de carga bem maior que as bicicletas, o que representa um grande aumento no volume dos negócios. Por isso, quando um país entra na FASE DAS MOTOS, é de se esperar que tenha crescido economicamente, e que sua economia tenha a participação ativa de boa parte da população.

Como os países que vivem nessa fase das motos ainda não têm uma boa rede de transporte de massa, as motos levam os cidadãos onde eles não podiam ir antes. Além disso, as motos também são usadas para passeios familiares e diversão entre amigos. Portanto, as motos aumentam o espaço do cidadão, provendo trabalho, acessibilidade, e lazer.

As fábricas de moto lucram bastante quando estão instaladas em um país que vive a FASE DAS MOTOS, suprindo a grande demanda por motocicletas. Depois, as fábricas que conseguem se estruturar bem acabam aproveitando a evolução da sociedade e também evoluem, passando a produzir os automóveis que serão consumidos na FASE DOS CARROS.

Olhando assim, parece que tudo é perfeito, com as pessoas mais livres, trabalhando mais, passeando mais, e se fortalecendo. As empresas desenvolvendo produtos mais eficientes, gerando empregos, e nos guiando para um futuro melhor. Sim, usando esse olhar histórico e estatístico, a situação parece boa. Mas, quando você olha com uma lupa, vê que há problemas sérios: acidentes, poluição, congestionamentos e endividamento. Isso é muito claro para nós aqui no Brasil, que vivemos em uma mistura de FASE DAS MOTOS, pela classe mais baixa, e uma FASE DOS CARROS, pela classe média.

O Brasil é diferente de qualquer outra coisa. Como temos uma divisão muito grande entre as classes, não vimos, como em outros países, toda a sociedade migrar dos veículos mais baratos para os mais caros. Aqui foi diferente. A partir dos anos 70, a classe média começou a comprar carros. Só depois, em meados dos anos 90, é que os pobres passaram a comprar motos em grande quantidade – e por isso vivemos essa mistura de duas fases, cada uma vivida por uma classe social.

Em termos de motos per capita, o Brasil (10%) pode até ser comparado com a China (7%), Índia (7%) e Indonésia (27%), que também são países grandes em desenvolvimento. No entanto, o número de carros per capita nesses países é bem menor que no Brasil (22%): China 8%, Índia 1%, e Indonésia 3%. Portanto, o Brasil não pode ser diretamente comparado nem com os países ricos (pois tem uma grande frota de motos) nem com os em desenvolvimento (porque tem uma grande frota de carros). É como se tivéssemos dois países dentro de um só: a famosa Belíndia. Isso fica bastante claro quando percebemos que no Brasil há duas palavras para descrever quem anda de moto: motociclistas (classe média) e motoqueiros (pobres).

Por falar nisso, nunca é demais lembrar que o Jornal EQUILÍBRIO EM DUAS RODAS usa o termo motoqueiro para representar todos aqueles que andam de moto, já que acredita que essa divisão entre motociclistas e motoqueiros só serve para ajudar as fábricas a venderem mais, as autoridades a lavarem as mãos, e a classe média a não se misturar com os pobres. Para nós, andou de moto é motoqueiro. Simples assim.

Falando sobre a hipotética capacidade das fábricas evoluírem junto com as sociedades, ao analisarmos a história vemos que nenhuma fábrica de motos evoluiu de forma contundente para o desenvolvimento de sistemas equilibrados de transporte – que formam a base tecnológica da FASE DO EQUILÍBRIO. Talvez ainda seja cedo para dizer que as fábricas querem apenas se aproveitar dos motoqueiros. Talvez essas empresas venham a ser importantes no futuro, desenvolvendo sistemas de geração de energia a partir de fontes renováveis, sistemas de segurança de veículos baseados na tecnologia V2V (vehicle-to-vehicle communication), veículos de transporte de massa, sistemas de integração intermodal, novos materiais, e veículos individuais eficientes. Algumas até fazem propaganda de que farão isso no futuro. Vamos ver.

Ainda sobre as fábricas, a dura verdade é que elas, quando o país hospedeiro evolui para outra fase de transporte, não passam a produzir sistemas mais avançados, mas simplesmente voltam a sua produção para outros países menos desenvolvidos. Assim, essas fábricas, pulando de país em país, continuam produzindo praticamente as mesmas motos de 60 anos atrás.

Olhe, por exemplo, duas motos separadas por 60 anos. Uma é a featherbed, de 1953. A outra é uma moto de transporte vendida no Brasil em 2013. Não há quase diferença, a não ser alguns detalhes eletrônicos. As duas têm aerodinâmica horrível, frenagem ruim, ergonomia sofrível, não têm sistema de comunicação entre veículos, rendimento energético abaixo dos 2%, não podem ser levadas nos ônibus, e não podem ser guardadas em casa. As duas têm exatamente o mesmo conceito medíocre.

Claro que algumas coisas mudaram nos últimos 60 anos, como, por exemplo, a chegada da eletrônica, que permitiu a diminuição da emissão de poluentes e também facilitou a manutenção das motos. Outras evoluções ocorreram nos pneus, suspensão, quadro e freios. Mas são apenas detalhes, o que fica claro quando se vê que as motos continuam com a mesma mortandade e com rendimento da mesma ordem de grandeza que tinham 60 anos atrás.

Ao comparar essas duas motos acima, é como se comparássemos um toca discos com agulha e um cd player. Os dois são diferentes quando comparados um com outro, mas extremamente parecidos quando você os compara com tudo o mais, como a música tocada ao vivo em um extremo e a internet no outro. A música ao vivo provoca uma experiência emocional muito superior, tanto faz se for comparada com um tocador analógico ou com um digital. Do outro lado, a internet é democrática, pode ser ouvida em qualquer lugar, permite a customização das músicas, produção local, troca entre pessoas, releituras e experimentações.

Claro que o som digital é mais barato que o analógico, tem menor manutenção e se autorregula. Por outro lado não pode ser consertado em casa, tem vida mais curta e é mais frágil. No entanto, apesar dessas diferenças, os dois sistemas são praticamente iguais quando comparados com outras alternativas: música ao vivo e música na internet.

O que é pior é que, no caso das motos, o consumidor fica mesmo sem escolha, tendo que aceitar o medíocre – seja o analógico medíocre das motos dos anos 1950 ou o digital medíocre dos anos 2014. Já no caso da música, o consumidor pode jogar fora seu aparelho e escolher entre a experiência real de ouvir um gênio tocando ao vivo e a experiência de recriar a música usando as ferramentas democráticas da internet. Espero o dia em que os nossos jovens criarão alternativas para as motos, nos libertando desses moedores de carne obesos oferecidos no mercado.

Eu gosto muito dessa analogia entre motos e música. Ao comparamos as duas motos aí de cima, alguém pode até dizer que a nova é mais econômica, que emite menos poluentes e que precisa de menos regulagens periódicas. Mas nós merecemos muito mais do que isso. Merecemos motos que não nos matem, que não nos endividem, que não nos prendam às vias feitas para os carros, que sejam práticas, e que tenham uma eficiência energética minimamente decente.

Usando então esse olhar mais aguçado, voltado para um tempo e um lugar específico, como esse que vivemos agora no Brasil, é possível ver que uma FASE DAS MOTOS não traz apenas o sinal de um presente ativo e de um futuro melhor para todos. A triste notícia é que as motos vêm acompanhadas dos acidentes, da poluição, e do endividamento. Elas não são apropriadas para pessoas com dificuldade de locomoção, como crianças, idosos e cadeirantes. Sem contar que as motos, como os carros, são ágeis só até um determinado número, pois depois disso começam a criar congestionamentos. Claro que os brasileiros estão aproveitando a mobilidade, a inclusão e o lazer das motos. Mas as pessoas não querem os acidentes e a poluição e os congestionamentos e o endividamento.

O sistema de transporte por motos tem duas grandes falhas: (1) motos caem e batem, o que pode ser mortal com uma energia cinética tão alta; e (2) motos são atingidas por veículos maiores do que elas (consequentemente com maior energia cinética), o que também pode ser mortal. Portanto, o sistema sempre será mortal, pelo menos até que o sistema seja melhorado: (A) aumentando a inteligência dos veículos E (B) diminuindo a energia cinética. Todas as outras ações (capacetes, luvas, ABS, air bags, mais cursos, jaquetas, mais leis, menos drogas, mais atenção, menos álcool, mais espuma, menos remédios, mais impostos, etc.) são apenas paliativos, que só servem para continuar vendendo motos, jornais, e sonhos eleitoreiros. E tem muita gente que é enganada por essa conversa mole de que a culpa sempre é do operador do veículo, achando que “motociclistas bonzinhos” não se acidentam, só “motoqueiros malvadinhos”. A verdade é que todos que andam de moto estão sujeitos à morte. Isso porque o sistema é falho. Se bem que falho talvez seja um termo fraco demais para classificar um sistema que mata, só no Brasil, 10.000 motoqueiros por ano, todo ano. A energia cinética é alta demais (tanto das motos quanto dos outros veículos) e os veículos são burros demais (permitindo que os operadores façam qualquer doidice que lhes der na telha). Ou diminuímos a energia cinética dos veículos (carros e motos) ou produzimos sistemas que permitam a circulação segura de veículos com alta energia cinética. Temos que parar de olhar só para o veículo, ou só para o operador, e olhar para o sistema como um todo. O sistema é falho, e só resolveremos os problemas se considerarmos o sistema em sua totalidade: vias, operadores, regras formais, regras informais, interesses econômicos, interesses políticos, relações sociais, sistema de produção, sistema de reparo, resgate, marketing, disputa cultural, consumo, viagens, comunicação, sensores, controle de tráfego, monitoramento, os próprios veículos, a interação entre os veículos dentro do sistema, e a interação entre os vários sistemas de transporte.

As motos representam crescimento, democracia, mobilidade e inclusão social. O que é legal. Mas esse sistema baseado em motos também têm sérias falhas estruturais, que resultam nos acidentes, poluição, desperdício, congestionamentos e endividamento. O que é ruim. Precisamos construir um sistema alternativo, que fortaleça as vantagens ao mesmo tempo em que minimize as desvantagens. Isso só vai acontecer quando as autoridades pararem de babar os ovos das montadoras, quando os formadores de opinião pararem com o preconceito contra os motoqueiros, e quando começarmos a olhar o sistema como um todo, não apenas para os operadores ou apenas para os veículos.

 

Bikes of Burden e Carrying Cambodia

Deixando a ranzinzice de lado, vamos voltar aos dois livros de que falei lá em cima. O primeiro, Bikes of Burden, foi criado pelo fotógrafo Hans Kemp, em 2005. O título do livro pode ser traduzido como “Motos de Carga”, mas não no sentido que usamos, mas sim parafraseando a expressão “Bestas de Carga”. Todas as fotos foram tiradas no Vietnã.

O outro livro, Carrying Cambodia, é uma coprodução do próprio Hans Kemp com o fotógrafo Conor Wall, e lançado em 2010. Como o próprio nome está dizendo, essas fotos são do Cambodja. Mas a diferença não é só essa, pois nesse segundo, além de registrarem um país diferente, há vários outros meios de transporte além das motos. Aparecem motos, bicicletas, animais, ônibus, caminhões, carros, tratores, carrinhos de mão, sacolas, cestas, bandejas, e tudo o mais.

Logo no prefácio eles já deixam algumas palavras que caracterizam muito bem o espírito do livro, que é fazer uma homenagem à inteligência e ao bom humor daquelas pessoas: “Você já notou que quem anda dentro de um carro sempre está sisudo, mas quem anda pendurado em um van ou em uma moto sempre está sorrindo de orelha a orelha? Que jeito alegre de viajar!”

Só para ter uma ideia de como são esses países, me deixa fazer uma breve comparação com o Brasil. São países bem mais pobres, e que sofreram muito durante o Colonialismo, a Guerra Fria, e principalmente na Guerra do Vietnã. A atual conjuntura que eles vivem é fruto da exploração de outros países, seja econômica ou geopolítica. Exatamente por não serem culpados pela situação em que vivem é que devemos valorizar o que podem fazer com o pouco que têm. Espero que as motos, além de expressarem esse crescimento atual, também sirvam como base para um futuro melhor.

INDICADORES SOCIOECONÔMICOS
Cambodja: população 14 milhões, IDH 138o, renda per capita US 2500 (PPP)
Vietnã: 88 milhões, IDH 127o, renda per capita US 3600 (PPP)
Brasil: 200 milhões, IDH 85o, renda per capita US 11700 (PPP)

Sobre os veículos, o Cambodja tem uma densidade de motos parecida com a do Brasil. Já o Vietnã tem uma densidade quatro vezes maior. Outra diferença é que há poucos carros nos dois países asiáticos, enquanto a frota de carros do Brasil é o dobro da frota de motos.

INDICADORES DE FROTA
Cambodja: 1/10 motos por habitante, 1/10 veículos por habitante
Vietnã: 4/10 motos por habitante, 4/10 veículos por habitante
Brasil: 1/10 motos por habitante, 3/10 veículos por habitante

Em relação aos riscos de acidentes, pode até parecer que no Vietnã seja mais perigoso andar de moto do que no Brasil ou no Cambodja, já que o número de motoqueiros mortos por habitante é maior. No entanto, a sua frota de motos também é bem maior, então é meio óbvio que o número de acidentes deveria ser grande. Por isso esse índice de mortos por habitante não é um indicador muito bom. Melhor usar o risco de andar de moto, que divide o número de motoqueiros mortos pela frota de motos, não pela população total. Fazendo as contas assim, vemos que o Cambodja é o país mais perigoso, enquanto o Vietnã e o Brasil apresentam números mais baixos.

INDICADORES DE FALHA NO SISTEMA DE TRANSPORTE POR MOTOS
Cambodja: 11 motoqueiros mortos a cada 100.000 habitantes, 85 motoqueiros mortos a cada 100.000 motos.
Vietnã: 17 motoqueiros mortos a cada 100.000 habitantes, 48 motoqueiros mortos a cada 100.000 motos.
Brasil: 5 motoqueiros mortos a cada 100.000 habitantes, 49 motoqueiros mortos a cada 100.000 motos.

Voltaremos a essa discussão mais para frente. Por enquanto, para ter uma ideia de como é o trânsito no Vietnã, dê uma olhada no vídeo filmado em Ho Chi Minh City (Saigon), Traffic in Frenetic HCMC. Tudo bem que é bastante acelerado para ficar mais impressionante. Mas o impressionante mesmo é que não há um único acidente! A inteligência coletiva expressa nesse vídeo é linda. Pena que no mundo real os acidentes existam.

O objetivo dos dois livros é registrar esse momento histórico vivido pelo Vietnã e pelo Cambodja, no qual as motos são praticamente o único meio de transporte. Segundo Hans Kemp, o autor de Bikes of Burden, essas fotos são testemunhas do crescimento econômico do Vietnã. Testemunhas da engenhosidade do povo daquele país.

Como eles em geral não têm geladeiras, precisam circular muitos produtos alimentícios para o uso diário, e, por isso, têm tantos mercadinhos e motocicletas. As cenas que aparecem nas fotos são fruto de anos de prática para que consigam pilotar com tanto peso. O autor diz que nunca viu nenhuma queda e que há pouquíssimos acidentes. Isso, segundo ele, provavelmente ocorre porque o tráfego é bem lento, porque as regras não escritas são conhecidas por todos, e porque os motoqueiros são muito habilidosos. É transportado de tudo: materiais de construção, roupas, flores, animais, escadas, espelhos, tonéis, e tudo o mais que se possa imaginar. Todo dia ele via algo novo. Parece que por lá não é proibido carregar nada, o que faz sentido, pois as motos são o único meio que eles têm. Ainda segundo Hans Kemp eles são muito cuidadosos, e por isso não há perigo.

Quando ele diz que não há perigo, provavelmente está falando somente daquelas motos de carga que ele acompanhou nas grandes cidades, porque as estatísticas, ao contrário, dizem que a coisa por lá é tão perigosa como em qualquer outro lugar do mundo. O risco de andar de moto (número de motoqueiros mortos a cada 100.000 motos) no Cambodja é 85, no Vietnã 48, e no Brasil 49.

Aproveitando o ensejo, me deixe agora reproduzir umas contas que publiquei no texto A Economia Mundial das Motos. Os países mais perigosos são Cambodja (risco 85, IDH 138), Rússia (risco 74, IDH 55), México (risco 62, IDH 61), Coréia do Sul (risco 61, IDH 12), Colômbia (risco 61, IDH 91), EUA (risco 56, IDH 3) e Índia (risco 52, IDH 136). Os mais seguros, por esse critério, seriam, Japão (risco 9, IDH 10), Indonésia (risco 11, IDH 121), Itália (risco 11, IDH 25), Alemanha (risco 13, IDH 5), Turquia (risco 15, IDH 90), Holanda (risco 18, IDH 4), Espanha (risco 21, IDH 23) e China (risco 25, IDH 101).

Interessante que não dá para encontrar qualquer relação entre risco de andar de moto e o IDH de um país. Muitas pessoas defendem que a principal causa das mortes em acidentes de moto é a falta de educação, e que isso poderia ser resolvido com maior carga horária nos cursos e mais campanhas educativas. Se isso fosse verdade, o risco de andar de moto em um país seria tão menor quanto melhor fosse a sua posição no ranking do IDH. Em outras palavras, melhor educação, menos acidentes. No entanto, como vimos, não há relação entre essas duas variáveis. É tão perigoso andar de moto na Coréia do Sul quanto na Colômbia, na Turquia ou na Holanda. O que essa falta de correlação entre o risco de andar de moto e o IDH indica é que a grande causa das mortes com motos não é nem a falta de educação das pessoas, nem o projeto das vias. A grande causa das mortes em acidentes de moto é o próprio conceito dessas máquinas. As motos vendidas hoje em dia são porcas, gordas, burras e mortais. As motos não são adequadas ao sistema de transporte como um todo. Ou mudam as motos, ou muda o sistema, ou as mortes continuarão.

Deixando de lado esse mascaramento do perigo de andar de moto que o Kemp fez, o mais legal do livro é que ele não usa as fotos para fazer julgamentos morais. Não é um livro de ridicularização ou de criminalização, mas sim sobre admiração e diversão. É um registro de amor à inteligência, e também de como as pessoas têm o poder de se adaptar às situações.

O triste é que essas fotos rodam pela internet como motivo de piada, tentando diminuir aqueles motoqueiros. Não que aqueles motoqueiros estejam preocupados com os bobos da internet, mas o triste é perceber que existem tantos bobos que não sabem aproveitar a sua suposta educação para reconhecer a inteligência quando a veem de perto. Não é para rir, é para sorrir de alegria e de fascinação.

Daqui um tempo esses países terão as ruas alargadas, e os seus cidadãos comprarão geladeiras e carros. Então não haverá mais a necessidade das motos, e essas cenas nunca mais serão vistas. Por isso a importância de um livro que registre essa era. Tudo vai desaparecer. O que certamente é bom para eles, mas ruim para nós, pois são cenas muito pitorescas – como conta o próprio autor em entrevista.

Eu sempre gostei dessas cenas de motoqueiros malabaristas, que invariavelmente estão presentes nos lugares em que costumo andar de moto. Em geral não gosto de tirar fotos das pessoas que admiro durante as viagens, pois temo que depois sejam usadas na internet para ridicularizar aqueles que têm cultura e costumes diferentes, coisa completamente oposta à minha intenção, que é de homenageá-los.

Se bem que temos alguns registros que tiramos pelo nosso sertão. Por exemplo, uma de uns motoqueiros que levavam um bode e uma galinha, e outra de uma caminhonete carregada de trabalhadores. E antes que os moralistas venham dizer que estou defendendo algo perigoso, vejam que no caso a moto carregada iria passar pela Polícia Federal dali 50 metros. Se a polícia permite, não sou eu quem vai proibir.

Mas claro que as fotos tiradas no Vietnã e no Cambodja são muito melhores que as nossas, como dá para ver na sequencia abaixo. Eu não costumo recomendar a compra de livros, motos e acessórios, mas esses dois daqui eu recomendo sim. Não canso de folheá-los, aprendendo a cada dia um novo detalhe daqueles países. E, acima de tudo, aprendendo a medir a sabedoria e a alegria de uma pessoa sempre usando como referência o meio onde ela se encontra. Inteligência é a capacidade de se adaptar ao novo, e essas duas nações estão dando uma lição de inteligência ao mostrar como se adaptam a esse novo sistema de transporte por motocicletas.

Conclusão

Ao olharmos registros fotográficos como desses dois livros, temos que ter dois grandes cuidados. O primeiro é de não ridicularizar um povo só porque sua cultura e conjuntura são diferentes da nossa. Aqueles motoqueiros são inteligentes, divertidos, habilidosos e únicos. Por outro lado, por mais divertido e interessante que tudo isso seja, não podemos esquecer que motoqueiros estão morrendo no mundo todo.

As autoridades e as fábricas tentam nos convencer que a causa das mortes em acidentes é a imprudência dos motoqueiros, o que, segundo eles, poderia ser resolvido com leis mais severas, impostos mais altos, ou cursos com maior carga horária. Mas, ao analisarmos as estatísticas dos acidentes, vemos que o risco de andar de moto não tem nada a ver com o IDH do país ou com a densidade da frota. Logo, a principal causa das mortes nos acidentes com motos não é a falta de educação ou a densidade do tráfego.

A causa principal das mortes em acidentes, tanto com carros quanto com motos, é o próprio conceito desses veículos, que são muito pesados (o que implica em grande energia cinética na colisão), muito rápidos (a energia cinética é proporcional à velocidade ao quadrado), e completamente burros (os veículos não percebem a presença de outros veículos ou pedestres, além de permitirem que o usuário faça qualquer asneira que lhe der na telha).

As motos que estão no mercado têm um conceito muito antigo. Elas simplesmente não são seguras, como também não eram há 60 anos atrás. Claro que é preciso continuar educando as crianças e a punir os infratores que bebem ou que correm demais. Mas não basta colocar a culpa nas pessoas. O conceito desses veículos é que está errado. O sistema é falho. As mortes só vão diminuir quando as autoridades começarem a cobrar mudanças tecnológicas, como a diminuição do peso, a limitação da velocidade e a comunicação entre veículos. Já passou a hora de criarmos uma norma regulamentadora que obrigue as fábricas a produzirem veículos mais seguros.

Lá estou eu na minha ranzinzice de novo. Os dois livros são tão legais e eu baixando o moral. É que essa politicagem das autoridades, essa ignorância da mídia, e essa esperteza das fábricas me irritam demais. Voltando então ao tema, o Vietnã não é feito só de motos em cidades. O Vietnã é feito de pessoas e lugares lindos, como mostram as imagens do fotógrafo francês Rehahn, que viajou de moto por mais de 2000 km, durante 15 dias, para capturar a beleza tanto da natureza quanto das pessoas daquele país.

Que bom seria se o bem estar das pessoas sempre fosse o principal objetivo das fábricas de moto e das autoridades que cuidam da nossa segurança.

As pessoas do mundo são naturalmente alegres e têm uma imensa inteligência para se adaptarem muito bem à conjuntura a que são submetidas, o que fica muito claro nessas fotos tão divertidas, lindas e engenhosas. Mas isso não deve ser desculpa para continuarmos com essas motos mortais que são oferecidas no mercado. Que a alegria e a inteligência das pessoas que apareceram nessas fotos sejam usadas para coisas mais nobres, não para compensar a incompetência política das autoridades e a incompetência técnica das fábricas.

Chegou a hora de parar de jogar a culpa nos motoqueiros e passar a lidar com as reais causas das mortes em acidentes. Viva a vida, a alegria e a inteligência!

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