As Viagens de Júpiter


© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: Motoqueiros Famosos

AS VIAGENS DE JÚPITER
Fábio Magnani
[publicado originalmente em fevereiro de 2011]

Em 1973, aos 42 anos de idade, Ted Simon começou a viagem de moto que inspirou gerações de viajantes. Como diz o aviso na capa de trás: “Leitor, cuidado! Por causa deste livro, homens e mulheres deixaram seus empregos para pegar a estrada. Desde sua publicação ele mudou muitas vidas. A próxima pode ser a sua.”

Há uns tempos atrás, eu e minha mulher estávamos rodando de moto lá pelas bandas de Vitória de Santo Antão quando o pneu da moto furou. Enquanto conversávamos no acostamento para decidir o que fazer, apareceu uma moça de moto, quase do nada, insistindo para nos ajudar. Era só levar a moto até o bairro ali do lado que um de seus amigos consertaria a câmara. Relutantes, mas sem escolha, aceitamos a proposta. À medida que entrávamos na comunidade íamos ficando cada vez mais preocupados. Éramos perseguidos por olhares curiosos vindos de dentro das casas sem pintura, que se amontoavam umas às outras. As ruas tortuosas eram estreitas, de barro, com valas correndo a céu aberto. Até que chegamos na tal borracharia, um casebre simples próximo a alguns bares cheios de jovens bebendo e jogando sinuca. Segundo o borracheiro, a câmara de ar estava condenada, então teríamos que esperar chegar uma do centro da cidade. Assim que olhamos para trás, a moça de moto tinha desaparecido. Estranho.

O desconforto foi passando com o tempo. Vimos que a borracharia era uma residência onde morava uma grande família. Eles nos olhavam de forma estranha não porque sentiam qualquer coisa ruim em nossa relação, era só acanhamento mesmo. A conversa foi ficando mais solta. Fomos apresentados ao ancião da casa, brincamos com os filhotes de cachorro e ouvimos as histórias daquele povo. A moça da moto voltou, com um motivo mais que justo pelo seu sumiço. A questão é que quando ela nos encontrou na estrada, estava vindo do trabalho, cansada e com uniforme. A situação para ela tinha sido motivo de grande vergonha. Por isso ela foi para casa tomar banho, trocar de roupa e se perfumar. Acho que nunca fomos tratados com tanta consideração e honraria. Foi um dos melhores encontros que tivemos por essas estradas mundo afora. Bem, é como diz Ted Simon: “as interrupções são a jornada”. Agora, quando saímos de moto, não queremos que tudo saia apenas como o esperado. Queremos mais. Queremos o novo.

Legal. Mas, Ted Simon, quem é esse cara?

Em 1973, Ted Simon, um pouco mais de 40 anos de idade, deixou tudo para trás para percorrer o mundo de moto. Aqueles eram tempos diferentes. A globalização ainda não tinha destruído as culturas locais. Cada povo tinha o seu jeito de ser, pensar, agir e se expressar. O mundo estava dividido pela guerra fria. Os árabes e os israelenses lutavam em um dos piores momentos do seu conflito. O Brasil vivia a ditadura. Não havia internet nem celulares.

Ted Simon passou quatro anos viajando. Sempre sozinho em sua Triumph, rodou por desertos na África, foi preso como espião no Brasil, dormiu na casa de sábios na Índia, cruzou mares e florestas. Recebeu ajuda sempre que precisou. Ted Simon dizia que para a viagem valer a pena, teria que ser feita na mente da mesma forma que no mundo dos objetos. Em seus livros ele conseguiu nos trazer todas as suas experiências de pilotagem, as figuras que conheceu e os perigos que viveu. Mas, acima de tudo, escreveu sobre o seu crescimento interior. No decorrer da viagem, Ted Simon foi se distanciando cada vez mais da sociedade e se aproximando cada vez mais das pessoas. Começou a aprender que são ações diretas – como a oferta de um copo de água aqui, um empurrão para fora da lama ali, o compartilhamento de um cobertor na noite fria – que fazem toda a diferença por estarmos nesse mundo. Essas aventuras estão nos livros “Jupiter´s Travels” e “Riding High”. Não foi a primeira viagem em torno do mundo, nem a mais rápida, nem a mais lenta, nem a mais cara, nem a mais barata, nem a mais divertida. Mas foi a viagem mais inspiradora de todas. É impossível ler os livros de Ted Simon e não aprender uma coisa ou duas sobre o que é importante em uma viagem de moto. Ou, talvez, até sobre o que realmente vale a pena nessa vida.

Tudo isso já seria suficiente para fazer de Ted Simon um dos maiores “riders” de todos os tempos. Mas ele queria mais. Em 2001, aos 70 anos de idade, saiu novamente para uma volta ao redor do mundo. Dessa vez passou três anos na estrada, comparando o mundo que conhecera em 73 com esse nosso atual. Quando voltou da viagem escreveu o livro “Dreaming of Jupiter”. Os três livros juntos contam uma parte da história do mundo nos últimos 30 anos do século XX. Formam a história de um homem, sua moto e as pessoas que conheceu no caminho.

Se eu tivesse que escolher alguém para chamar de mestre do motoqueirismo seria o Ted Simon. Não porque é o melhor piloto do mundo, ou o cara mais corajoso da terra, ou quem mais entende de mecânica. Exatamente pelo contrário. Todas as vezes em que passei algum momento ruim na estrada, bastava lembrar de suas palavras para que tudo se resolvesse.

Um tempo atrás, eu e minha mulher caímos de moto em um areião. Nada grave, mas depois disso fiquei um tempo com verdadeiro pavor de andar na areia. Fiz cursos de pilotagem e li livros escritos por especialistas do motociclismo na areia. O medo ia passando, mas bem devagar. Até que, lendo o livro “Dreaming of Jupiter”, aprendi que o Ted Simon, mesmo depois de ter dado a volta ao mundo de moto, em alguns momentos não confiava na areia. Por isso, ao contrário dos conselhos técnicos que mandavam acelerar, em certas ocasiões ele andava bem devagar, com os pés no chão. Ao aprender que até os grandes têm seu lado humano, entendi que às vezes é normal sentir medo. Foi exatamente no momento que aceitei o medo que ele foi embora. Só um grande mestre é capaz de nos ensinar esse tipo de coisa. Só um grande mestre é capaz de nos inspirar a trilhar a estrada certa. De preferência de moto.

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