A Arte da Motocicleta


© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: Motoqueiros Famosos

A ARTE DA MOTOCICLETA
Fábio Magnani
[publicado originalmente em abril de 2011]

Quando eu e minha mulher somos obrigados a ir ao shopping, ela vai fazer o que precisa ser feito enquanto eu fico enterrado em alguma livraria. Em geral, eles não têm muitos livros de moto. Mas, quando tenho sorte, chego a encontrar uma meia dúzia, daqueles cheios de figuras. São livros caros e muito manuseados. Como esses livros não têm muita saída por aqui, não é incomum que eu veja e reveja o mesmo livro muitas vezes. Um deles, com quem passei um bom tempo paquerando, é “The Art of the Motorcycle” (A Arte da Motocicleta). Eu só olhava as fotos. Nunca tive a curiosidade de ler os textos, achando que devia ser mais do mesmo. Um dia ainda compraria aquele livro bonito, mas não tinha pressa. Foto por foto, eu podia ver na internet.

Até que comecei a me interessar um pouco sobre as motos como expressão cultural. Isto é, como aqueles artefatos industriais podem representar o que pensamos, acreditamos e fazemos. Nessa busca, encontrei vários textos que falavam exatamente daquele livro que eu sempre via na livraria. Então, afinal, não era um livro só de fotos. Tinha mais coisa por ali. Na realidade, era um livro envolvido em polêmicas. Oba!

O livro foi produzido para acompanhar uma exposição no museu Guggenheim, Nova Iorque, em 1998. Os responsáveis no museu escolheram as motos como expressão das mudanças culturais que ocorreram durante o século XX. A polêmica vinha de dois lados. Primeiro, quem trabalha com arte não considera uma moto como uma obra artística. Não porque não seja bonita, mas para eles uma obra de arte não pode sair de uma linha de produção. Se pudesse, todas as cópias da Monalisa, por exemplo, seriam obras de arte. Segundo, quem anda de moto também tem críticas à exposição, porque as motos foram mostradas como esculturas: sem velocidade, sem som e sem piloto. A essência da moto, que é o movimento, não havia sido representada. Seja quem for o crítico, museu de arte não é lugar para motos.

Concordo com essas críticas feitas à exposição. Mas o que me interessava era o livro. Esse sim capturava a essência das motos.

No começo do livro, são apresentados oito textos de vários autores. Aparentemente falam do comum, como a história das motos ou sua aparição nos filmes. Mas há muito mais. Aqueles escritores também discutem livremente sobre a paixão pelo risco e pela velocidade, a questão de usar ou não um capacete, o simbolismo de andar no corredor do trânsito, como o mundo dos que andam de moto é machista e o namoro dos jovens com a morte. Esses não são assuntos comuns nas grandes publicações de hoje em dia, pois já faz um bom tempo que a preocupação com as vendas e com a segurança praticamente baniu esse tipo de discussão. No entanto, são assuntos que permeiam as conversas entre amigos e que passam pela cabeça de todos que andam de moto. Legal ver essas idéias discutidas abertamente.

Espalhados pelo livro, há vários resumos de época, que explicam como as motos representam o momento cultural de cada período. Por exemplo, entre 1870 e 1914, o homem moderno estava fascinado com o movimento, com as máquinas e com a possibilidade de construir o seu próprio destino. Parecia que tudo era possível. As motos eram fruto daquele pensamento de invencibilidade e ausência de limites. Em 1907, foi criado o “Isle of Man TT”, talvez a mais perigosa de todas as corridas de moto. No mesmo ano, Glenn Hammond Curtiss fabricou uma V-8 que atingia 219 km/h. Já nos anos 20, começaram a aparecer algumas motos feitas também para mulheres, o que expressava a grande liberação vivida naquela década. Nos anos 30, as motos passaram a ter um design mais simples, utilitário, representando os movimentos totalitários que nasciam naqueles tempos. Nos anos 60, as motos eram o símbolo da contracultura. Os anos 80 são chamados de “anos dos consumidores”, quando as motos se transformaram em símbolo de status. Por fim, os anos 90 foram marcados pelo fortalecimento dos nichos: motos retrô, motos esportivas, motos de aventura e outras.

Todos esses artigos são legais, mas a parte principal do livro fala especialmente das motos, com a descrição de 95 modelos, escolhidos a dedo. Como exemplos, a primeira moto produzida em escala (Hildebrand & Wolfmüller, 1894), designs diferentes para expandir o interesse pelas motos (Megola Sport, 1922), times vencedores do MotoGP (MV Agusta 500 Grand Prix, 1956), charme (Vespa GS, 1962), motos que viriam a influenciar as décadas futuras (Honda CB750 Four, 1970) e a coragem de trazer de volta um design voltado à essência (Ducati M900 “Monster”, 1993).

Depois que aprendi que esse livro não era só mais um livro de fotos, voltei correndo à livraria. Nunca ninguém tinha se interessado por ele, então ainda estaria por lá. Que nada. Sumiu da prateleira. Eles não sabiam explicar o que tinha acontecido. Como é um livro antigo, tive que começar a procurar nos sebos da internet. Mas mesmo sendo usado, é caro. Se for enviado para o Brasil, não sai por menos de 100 dólares. Tem gente que vende esse livro até por 1500 dólares. Depois de uma longa procura, no meio de 2010, achei uma cópia por 70 dólares, incluindo o frete absurdo de 43 dólares. Esse preço é alto por causa do peso – mais de 3 kg. Não é um livro para ler na rede ou na fila da padaria.

Valeu a pena esperar. Eu nunca tinha pensado em como as motos podem representar o que vem acontecendo no nosso mundo: a época antes da Primeira Guerra Mundial em que os homens tinham a esperança de que as máquinas iriam resolver tudo, os momentos de totalitarismo antes da Segunda Guerra Mundial, o consumismo depois dos anos 80, o protesto dos anos 60, a efervescência cultural dos anos 20. Além dessas rápidas mudanças, o livro também é permeado de traços humanos eternos, como a necessidade da velocidade, da liberdade, da individualidade e de experimentar o novo. Em seus textos, distingue necessidades reais daquelas criadas pelo marketing, distingue autenticidade de estilo, distingue o amor pelo movimento da pilotagem destrutiva. Essas discussões são feitas sem medo de parecer apologia ao suicídio. Esse livro não é para lermos sobre o que já sabemos, mas sim para termos acesso a outros pontos de vista. Também não é para defender a pilotagem perigosa ou alguma revolução cultural contra o consumismo. A proposta do livro é trazer alguma luz, não esconder problemas debaixo do tapete. Este livro é um bom lugar para começar a pensar de uma forma um pouco diferente sobre as motos. Só para começar.

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