A Ideologia Fofociclística

© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: Má-Criações em Duas Rodas

A IDEOLOGIA FOFOCICLÍSTICA
Fábio Magnani
[publicado originalmente em maio de 2016]

Eu leio muitos textos e ouço muitos discursos defendendo as bicicletas. Legal. Eu também gosto e defendo as bicicletas. O problema é como essa defesa vem sendo feita, muitas vezes com distorções, mentiras e exageros. Daí não vale a pena, né? Para falar sobre isso, inventei de brincadeira uma tal de ‘ideologia fofociclística’, que serve para exagerar mais ainda alguns desses exageros.

Por mais inacreditável que possa parecer, minha intenção com este texto é mais ajudar as bicicletas do que atrapalhar o trabalho de quem quer que seja – embora deva admitir que talvez eu goste de atrapalhar um pouquinho os fofociclistas, mas só eles. Afinal, pode até ser que esse agigantamento das vantagens das bicicletas às vezes seja feito de má-fé, mas, na maior parte das vezes, acredito sim, a defesa exagerada é feita por ingenuidade mesmo, apenas por repetir a ideologia fofinha sem pensar muito no assunto.

Essa ideologia fofociclística é uma ideologia artificial (não são todas?) construída como arma para enfrentar, custe o que custar, o que chamam de ideologia carrocrata. Ocorre mais ou menos o seguinte. Ao limitarmos a discussão unicamente a essas duas visões possíveis, acabamos tendo uma discussão simplória, do tipo: ou branco ou preto, ou homem ou mulher, ou aliado ou inimigo, ou dentro ou fora, ou bicicleta ou carro. Uma discussão que não representa o meio termo difuso das posições individuais, nem a belíssima complexidade do mundo real. Ou você é do bem e é honesto e é inteligente e é fofinho e luta pelas bicicletas, ou você é do mal e é picareta e é burro e é alienado e defende os carros. Simples. Simples e errado.

Se eu tivesse que resumir, diria que a ideologia fofociclística defende que as bicicletas são entidades perfeitas, tanto espiritual quanto materialmente, e que produzirão o paraíso evangélico sobre a Terra. Isso desde que consiga vencer sua inimiga mortal a ideologia carrocrata, a qual supostamente sustentaria o discurso usado pelo sistema dominante para esconder de nós, ignorantes mortais, que os automóveis, a tecnologia e a modernidade na realidade só nos trazem a morte, o sofrimento e a desgraça. Simples assim. Simples e errado.

Claro que a defesa das bicicletas é importante, mas a forma como essa defesa é feita me dá uma agonia danada, pois em geral o discurso é dogmático e autoritário, moralista e restritivo, simplório e falacioso, quase religioso. Pior ainda. Muitas vezes parece até que lutar pelas bicicletas é mais importante que promovê-las de fato.

Gosto das bicicletas. Mas não gosto de falsas dicotomias, de maniqueísmos. Gosto das bicicletas. Não gosto da ideologia fofociclística. Também não gosto da ideologia carrocrata. Sim, caros amigos, é possível não gostar de nenhuma das duas ideologias e ainda assim defender as bicicletas. Não é um jeito muito bom para fazer e agradar coleguinhas, mas é possível.

Sou o primeiro a criticar os automóveis e as motos atuais. O ‘Equilíbrio em Duas Rodas’ praticamente não fala de outra coisa. Os carros de hoje em dia são lentos no trânsito urbano, poluem demais, são caros demais e mortais demais. As motos atuais só não são lentas, mas para compensar são mais mortais ainda. Eu também sou o primeiro a defender um maior uso das bicicletas, pois são mais limpas, elegantes, inteligentes e maneiras. Sem contar que em várias situações são a melhor solução de mobilidade – embora não em todas as situações. Só que não acho que valha a pena mentir, iludir e limitar para defender essas ideias. Se for para promover o uso das bicicletas a partir de discursos distorcidos, prefiro então continuar com os carros.

Por isso criei uma lista de tópicos que aparecem nessa tal ideologia fofociclística. Junto com essas pérolas caricatas, vão também alguns comentários levianos de minha parte. Não tenho nenhum compromisso com eles. Posso mudar de opinião daqui dez minutos. Soda-fe.

Um detalhe importante é que não tenho certeza se usei um bom nome para essa raça mitológica: fofos. Não são fofos no sentido físico, já que em geral são bem magrinhos, como comanda a moral e a estética capitalista moderna, para a qual quem é gordinho não tem caráter. Também não são fofos no sentido comportamental. São mais parecidos com crianças birrentas. Preferi no entanto ser fiel ao discurso deles, que diz defender a gentileza. Coisa fofa, né?

Depois percebi que o termo fofociclista também lembra fofoca. Não que tenha sido a minha intenção, mas às vezes o inconsciente nos prega peças, agindo sem que saibamos. De repente é uma crítica à técnica que esses seres fofodiminutos usam para tentar sabotar as pessoas que eles temem – nunca batem de frente, e quando batem é na forma de uma alcateia de hienas. Vai saber o que minha mente estava pensando, né? De qualquer forma, em nenhum lugar deste texto estou usando o termo no sentido de fofoca. É sempre no sentido de fofo mesmo, no sentido de gentil, ordeiro, progressista, do bem, sorridente, atencioso, preocupado com os outros, calmo, pacato, gregário, obediente e tranquilo. Fofo.

Sei que ninguém defende todos esses pontos que vou comentar. O fofociclista é apenas um exercício intelectual para demonstrar certos exageros de argumentação que pipocam por aí. Não existem fofociclistas no mundo real – esse é apenas um arquétipo teórico para avançar a discussão, como o Demônio de Maxwell, o Asno de Buridan, a Navalha de Occam ou a Espada de Dâmocles. Sei também que estou procurando sarna para me coçar e que vou ter que ouvir que faço isso só para chamar a atenção ou porque sou um ressentido (argumentum ad hominem), ou então que eu deveria ajudar os fofociclistas ao invés de ficar só criticando. Mas é que, entre as bicicletas e a honestidade intelectual, fico com a honestidade. Por falar nisso, as hipérboles absurdas que uso neste texto são honestas? Não são. Minhas intenções com essa sátira são desinteressadas, mesmo que eu não tenha consciência de que motivações são essas? Não são. Por ser da classe média eu tenho alguma legitimidade para criticá-la? Ora, pelo menos tenho a tal vivência, hahaha. Eu também cheiro mal. Vamos à lista.

O mundo era melhor no passado

Pelo discurso fofociclístico, antes da alta modernidade, antes dos automóveis (que são o símbolo máximo da modernidade), o mundo era bom. Não havia poluição, não havia desigualdade social, as pessoas eram saudáveis, todos tinham comida, a mobilidade urbana era muito maior, não havia desmatamento, não havia colonialismo, e todos participavam nas decisões públicas. Mas claro que isso não é verdade. No século XIX, por exemplo, as cidades industriais eram extremamente poluídas pela fumaça do carvão. Desde bem antes disso, as grandes cidades eram esgotos a céu aberto. No mundo inteiro, as pessoas morriam de fome pela baixa produção agrícola, morriam cedo pela inexistência de remédios e pela falta de conhecimento médico, não tinham acesso à arte. As classes sociais eram totalmente segmentadas, com nenhuma participação política dos mais pobres. A riqueza era extremamente concentrada nas mãos de poucos. A expectativa de vida era curta, a mortalidade infantil era alta, a democracia era inexistente, as ideologias religiosas e monárquicas impediam qualquer divergência de pensamento. O mundo de antigamente era um inferno para a grande maioria das pessoas.

Por outro lado, ao usar como justificativa um passado mítico que jamais existiu a não ser em algumas pequenas aldeias, o discurso fofociclístico aponta sim para o que desejamos, com toda a justiça, para o nosso futuro. Isso é, cidades mais limpas, um sistema mais democrático e mais saúde também. Não é porque isso não existiu no passado que não possa existir no futuro. Esse é um ponto legal que devo reconhecer na ideologia fofociclística. Embora esta minta sobre o passado, aponta para um futuro melhor. Só que acho que dava para fazer essa defesa sem ter que mentir, né? Mas daí teriam que reconhecer alguns benefícios da modernidade e da tecnologia. Como a invenção da bicicleta e da internet, por exemplo.

Só a bicicleta salva

Agora, mesmo que desejemos algo bom para o nosso futuro, não significa, no entanto, que alcançaremos esse paraíso somente e necessariamente através das bicicletas. Também não significa que sem as bicicletas estamos fadados ao inferno. O fato de que quem defende as bicicletas também defende um sistema democrático não implica do ponto de vista lógico em dizer que as bicicletas são as únicas ferramentas para a democracia. O fato de que quem defende as bicicletas também defende mais saúde não significa logicamente em dizer que as bicicletas são as únicas ferramentas para a saúde da população. O fato de que quem acredita em bicicletas também acredita em duendes não faz os duendes existirem, e também não faz as bicicletas deixarem de existir. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.

Os carros são maus

Os carros atuais são maus. Matam demais, custam demais, sujam demais. Mas essas são características dos carros atuais, não necessariamente do conceito carro. É possível ter um veículo de quatro rodas, com cobertura, leve, de baixa velocidade, seguro, limpo e útil. Esse tipo de veículo traria as vantagens dos carros (capacidade de carga, mobilidade para pessoas com dificuldade de locomoção, transporte em distâncias médias) sem as desvantagens. O problema, portanto, não está essencial e conceitualmente no carro em si, mas sim nesses carros atuais em particular.

Agora, mesmo quanto aos carros atuais, eu tenho uma grande dúvida teórica. Por um lado eles trazem mortes, mas por outro lado trazem aumento da produtividade e eficiência da economia. E, no final das contas, é o desenvolvimento econômico de um país que permite produzir mais alimentos, mais remédios e condições mais seguras de trabalho. Será que os benefícios compensam ou não os malefícios? Não sei. Realmente não sei. Tenho sérias dificuldades em aceitar os políticos que dizem que vale a pena ter os carros atuais, e tenho sérias dificuldades em aceitar os fofocilistas que dizem que não vale a pena ter os carros atuais. Não confio nem na honestidade nem na inteligência de nenhum dos dois grupos.

Um erro ao propor o banimento dos automóveis é imaginar que os malefícios desapareceriam, mas que os benefícios continuariam. Quer dizer, que não haveria influência na economia, isso levando em conta a produção, o consumo e a utilização dos veículos. É uma questão que está muito além da minha capacidade intelectual. O problema é que não vejo ninguém tratar isso de forma imparcial. Ou os carros atuais só têm vantagens. Ou os carros atuais só têm desvantagens. As duas análises estão erradas. Isso pelo menos eu sei.

Todos ciclistas são gentis e do bem

Ainda bem que não são. Há ciclistas chatos e ciclistas legais, expansivos e introspectivos, rápidos e calmos, gordos e magros, pobres e ricos, inteligentes e burros, de esquerda e de direita, progressistas e conservadores. Há ciclistas de todos os tipos, como há humanos de todos os tipos. E espero que continue sempre assim, os ciclistas vindo de todos os lados de nossa sociedade.

Cidades pequenas é que são boas

Eu gosto de viver onde moro, um condomínio popular de mais de três mil pessoas, onde os carros andam devagar, as crianças podem ir sozinhas ao campinho e à piscina, a padaria fica a alguns minutos de caminhada e à noite as pessoas que querem se encontram no espetinho para conversar. Mas também gosto de viver em uma cidade grande como a cidade onde moro, Recife, com cinema, praia, universidade e multidão.

Como sou originalmente de uma cidade pequena, não tenho tantas ilusões sobre a maravilha dos pequenos povoados. Neles não há quase movimento entre as classes sociais, é difícil encontrar um trabalho legal se você não for de uma família tradicional, o pensamento é muito homogêneo, as pessoas comentam sobre o comportamento umas das outras e, talvez pior de tudo, é difícil encontrar gente com os mesmos interesses. Ainda, se você precisa de algum tipo de tratamento médico, se seu filho precisa de algum tipo de escola especial, então cidades pequenas também não são legais.

O novo urbanismo defende uma mistura de bairros pequenos (como o meu condomínio de três mil pessoas) integrados com cidades grandes (como o Recife). Acho muito legal, mas é preciso tomar um certo cuidado para não restringir o movimento das pessoas apenas a esses bairros. Já pensou se um cara tem um emprego bem legal em um lado da cidade e a sua mulher tem uma oportunidade do outro lado? Se não houver mobilidade entre os dois lados, um dos dois vai ter que abdicar dos seus sonhos profissionais? E os jovens que querem ir para a universidade, que necessariamente é concentrada em um único bairro? Bem, é preciso equilíbrio entre as vantagens dos pequenos agrupamentos e as vantagens das grandes cidades. E, principalmente, não forçar o seu estilo de vida preferido, qualquer um que seja, aos outros.

A bicicleta socializa

Dizem que o dia que todo mundo andar de bicicleta, então, por ser um transporte lento, todos vão sorrir, conversar e se cumprimentar. Claro que isso não é verdade, pois se fosse todos fariam isso dentro dos ônibus e enquanto caminham pelos calçadões. Ainda bem que as bicicletas não aumentarão a socialização da cidade. Eu estou bem contente com a socialização atual. Cumprimento as pessoas do meu trabalho quando chego e quando saio, cumprimento os vizinhos do condomínio, e no resto do dia pedalo calado, piloto em silêncio ou me tranco na minha biblioteca. Está bom demais.

Amsterdã deve ser copiada

Amsterdã é uma cidade invejável para quem anda de bicicleta, com todas aquelas ciclovias. Por outro lado, nem tudo dá para ser copiado. Para começar, eles usam carros demais por lá. Isso porque as bicicletas deslocaram o transporte público (quase ninguém usa) e não os carros. Depois, a Holanda é um país rico porque explora e exporta gás natural, além de emitir mais CO2 que a média dos outros países da Europa. Sem contar que tem um sistema financeiro bem forte, o que significa que explora os outros países. Por tudo isso, temos que ter um pouco de cuidado ao incensarmos demais um país fofinho por andar de bicicleta, mas que polui prá caramba e vive às custas dos outros. Imagem não é tudo.

Todos que pedalam têm paixão e orgulho pela bicicleta

Eu sou apaixonado pelas bicicletas e pelas motos. Minha identidade social, acadêmica e política é fortemente baseada nelas. Por isso, gostaria que todos fossem apaixonados também. Mas não são! Para boa parte dos usuários, não há paixão nenhuma envolvida, as motos e as bicicletas são apenas veículos para se locomover. Aprendi isso quando fiz um curso de mecânica de motos com um monte de motoboys. Todos eles, invariavelmente, diziam que prefeririam ter um carro no lugar da moto. Depois, ao ler um estudo acadêmico da Inglaterra, aprendi que, além de muitos ciclistas não terem paixão alguma pela bicicleta, muitas pessoas não pedalam exatamente porque não querem ser vistas como “ciclistas apaixonados, chiliquentos, fantasiados e histriônicos” – fofoclistas, para usar a terminologia do presente texto.

Pensando bem, é algo bem infantilóide e alienado gostar de um produto industrial promovido pelas grandes empresas. De certa forma, dizer que é apaixonado por bicicletas é o mesmo que alguém dizer que é apaixonado por carros, por comida de fast food, por séries enlatadas ou por viagens “independentes” de fim de adolescência, mas pagas pela família, e comercializadas e planejadas e controladas por lojas de turismo. Todos são produtos do marketing capitalista, mas muito bem travestidos como símbolos libertários. Eu sou apaixonado por bicicletas e motos. Coisa mais ridícula.

Quem anda de carro é burro

Quem anda de carro não é burro. Essa é a melhor opção para o indivíduo nas grandes cidades. Ônibus são infrequentes e não vão para qualquer lugar. Motos são perigosas, mal vistas e não te protegem dos elementos. Bicicletas são extremamente estressantes com aqueles carros tirando fina o tempo todo. Carros, por outro lado, têm ar condicionado, música, vão para todos os pontos e te protegem de colisões, pelo menos em baixa velocidade.

Agora, apesar dos indivíduos que podem escolher o carro serem sim bem inteligentes, isso não significa que essa seja uma escolha inteligente para a sociedade, pois os carros atuais trazem a poluição, os congestionamentos, os atropelamentos e o alto custo com combustível. Por isso o estado é importante, para mudar a infraestrutura das motos, das bicicletas e dos ônibus, com faixas especiais e árvores, por exemplo. Daí sim esses outros modais serão soluções inteligentes para os indivíduos.

Os indivíduos que andam de carro não são burros. O estado que aposta exageradamente nos carros é burro.

Pedalar relaxa

Pode até relaxar quando você está passeando em uma rara ciclovia. Agora, se você anda no dia a dia, preocupado com os carros e desviando dos buracos, ou se gosta de pedalar mais rápido, o que te obriga a prestar muita atenção nos cruzamentos, pedestres e cachorros, então andar de bicicleta exige uma atenção redobrada, muito maior que conduzir um carro. Para falar a verdade, eu curto muito mais a cidade quando estou de carro do que quando estou de moto ou de bicicleta. Talvez um dia tenhamos caminhos segregados e bem arborizados, daí poderá até ser relaxante… para quem quiser pedalar devagar.

O transporte público é mais democrático que o transporte individual

Ônibus e metrôs têm vários problemas. Só te levam para lugares específicos. Em geral as linhas são pensadas para levar os trabalhadores aos seus empregos e depois largá-los nos shoppings para gastar o salário. Os horários, assim como os percursos, também são bastante rígidos. No caso do Brasil, em particular, o transporte público ainda é bastante desconfortável e demorado. Por tudo isso, vemos que o transporte público é bastante autoritário e restritivo. O transporte individual, seja de bicicleta, de moto ou de carro, surgiu no final do século XIX exatamente para democratizar a mobilidade. Claro que o transporte público é necessário, pois é mais eficiente para o deslocamento de grandes massas, mas certamente não é mais democrático que o individual.

Ciclistas estão do lado dos pedestres, motoqueiros do lado dos carros

Conversa fiada. Motos e bicicletas têm a mesma história, a mesma flexibilidade, a mesma dinâmica e a mesma fragilidade. O problema, no caso brasileiro, é que as motos representam legitimamente a classe mais pobre, enquanto as bicicletas são usadas pelos fofociclistas para representar uma classe média que supostamente representaria a classe mais pobre. Aí sim há uma grande diferença. Os fofociclistas têm medo da força simbólica da moto como real representante do povo e tenta de todo jeito abafá-la. Claro que as motos deveriam ser elétricas e menos velozes, claro que mais bicicletas deveriam ter auxílio elétrico. Ops… daí ficariam iguais. Exatamente isso, ficariam iguais como realmente são na sua essência: híbridos de máquinas e humanos, veículos democráticos individuais de duas rodas.

Bicicletas são símbolos contra a tecnologia

Claro que as bicicletas são contra a tecnologia. Afinal, quem faz as bicicletas é o Papai Noel, aquele ser espiritual fofinho, e claro que a entrega é feita por trenó, um veículo que voa pelos ares sem poluir nada.

Ora bolas, claro que as bicicletas são produtos tecnológicos. As bicicletas são projetadas por engenheiros, fabricadas em indústrias e precisam de ruas bem cuidadas. Se isso não for tecnologia, o que é então? Bicicletas são símbolos a favor da tecnologia. Da boa tecnologia.

Se bem que, a despeito do discurso romântico, há sim um aspecto no qual os fofociclistas adoram um desenvolvimento tecnológico, que são as intervenções urbanísticas e arquitetônicas, como as ciclovias, as praças, as ruas pacificadas, os bicicletários, os cafés temáticos, os vestiários e os polos culturais. Legal, também gosto delas, mas é duro aceitar o discurso de que não são ações tecnológicas, como se não houvesse qualquer interesse financeiro envolvido, como se fossem ações puramente humanísticas, quase angelicais. Ainda a ver com isso, os fofociclistas tentam diminuir ou desqualificar outras ações sobre as cidades, como aquelas propostas por engenheiros, designers, sociólogos, fisiologistas, economistas e todos os outros profissionais, como se todos fossem responsáveis pela situação atual das cidades – todos, menos os fofourbanistas.

Vamos falar a verdade: o urbanismo (e a arquitetura) também envolve (muita, muita) tecnologia, o urbanismo também envolve (muito, muito) dinheiro, o urbanismo também é (muito, muito) responsável pela condição atual das cidades, o urbanismo é apenas uma parte da solução. São possíveis novos veículos, novos costumes, novas relações econômicas, novas fontes energéticas, novos saberes sobre o corpo humano, etc., que também podem influenciar as cidades para o bem.

Não deixa de ser curioso que, embora a bicicleta seja o símbolo desse movimento pelo bem da cidade, os engenheiros e os designers e os artesãos e os fisiologistas, na verdade todos os não-fofourbanistas, não tenham voz. Afinal, “A bicicleta já está resolvida, não há nada o que melhorar, já é perfeita. As pessoas também, basta subirem em uma bicicleta para se tornarem perfeitas. Só precisamos agora resolver algumas pequenas questões de infraestrutura”. $$$. Discurso fofourbanista bem desinteressado, né? As fábricas de bicicletas e de componentes que já estão estabelecidas em oligopólios também agradecem que ninguém critique as bicicletas.

O que é bom para um ciclista é bom para todos

Não necessariamente. Não é toda vez que um ciclista defende algo para si, que automaticamente está contemplando todos os outros ciclistas. Como os recursos são escassos, ao defender a infraestrutura em um local, necessariamente não haverá infraestrutura em outro local. Além disso, há vários tipos de ciclistas, com interesses bem diferentes. Os esportistas querem ciclovias velozes ou acostamentos seguros; os trabalhadores querem que a ciclovia vá da sua casa para o seu trabalho; os ciclistas noturnos querem proteção policial e segurança nas ruas, os pais querem ciclovias bem calminhas para os seus filhos irem para a escola.

Se bem que aceito que esse é um questionamento puramente teórico, de pouco efeito nesses tempos em que temos muito poucos recursos para o ciclismo. Em geral, quando se consegue algo, é às custas do sistema automobilístico, não tirando a oportunidade de outros ciclistas. Então, na prática, pelo menos hoje em dia, qualquer vitória acaba favorecendo todos os ciclistas.

Faço uma ressalva, no entanto. Muitos fofociclistas na realidade não querem promover de fato as bicicletas. Eles preferem lutar. A luta é que os define, lhes dá status entre seus coleguinhas, lhes rende votos para vereança, lhes rende popularidade nas redes sociais, lhes dá acesso à mídia grande. Essa luta per se, lutar por lutar, sem efeitos práticos, certamente não é boa para os ciclistas de verdade.

Quem defende a bicicleta defende o povo

Vamos colocar o dedo na ferida. Há duas classes sociais entre os ciclistas. Há os ‘invisíveis’ de um lado, que são os ciclistas trabalhadores que usam a bicicleta por necessidade ou por praticidade, mas sem nenhum interesse secundário nisso, seja construir uma identidade social, seja praticar esporte. E há os ciclistas de classe média do outro lado, agrupados em várias tribos, como os fofociclistas, os cicloadvogados (advogados no sentido de que defendem políticas públicas para as bicicletas, não necessariamente são profissionais do direito), os cicloativistas (que trabalham para chamar atenção para as questões da bicicleta a partir de atividades públicas), os cicloacadêmicos (estudiosos e pesquisadores), os ciclopolíticos (políticos eleitos que defendem leis e ações a favor do ciclismo), os ciclotécnicos (especialistas que trabalham no estado ou nas empresas especializadas), os esportistas e os hipsters.

Falando particularmente dos fofociclistas, poderíamos classificá-los, distorcendo um pouco (?) Pierre Bourdieu, como os despossuídos da elite. Quer dizer, eles fazem parte da elite da cidade (moram em bairros bacanas, têm contatos familiares nos jornais, estudaram em escolas particulares, são bem articulados para falar, produzem vídeos fofinhos, têm uma boa rede de contatos para patrocinar eventos), mas não têm poder de fato. A identidade de fofociclista, a subcultura do fofociclista, que transforma o uso da bicicleta em uma virtude, é então uma tentativa deles de receber um pouquinho que seja de valor aos olhos da parte da elite que realmente tem poder e dinheiro. Que fofos.

Não é porque os fofociclistas gritam discursos de bicicletas para todos e de cidades para todos que isso seja necessariamente verdade. Basta ir às suas reuniões e celebrações. Nunca há pobres. No máximo fazem algumas atividades nas comunidades carentes para postar nas redes sociais, gravam vídeos de testemunho com “a voz do povo” que pegam bem entre os coleguinhas, realizam atitudes assistencialistas de tom altamente professoral, ou então confessam que “até têm amigos pobres”. O povo, nessas ações, é só um coadjuvante, uma imagem a ser usada. São atitudes fofas, concordo, mas nada além de uma claríssima manifestação de toquenismo.

Se um dia as bicicletas forem aceitas pela cidade, com infraestrutura para todos, os fofociclistas não poderão mais dizer que são heróis da resistência, que são ‘diferentões’, que são corajosos, que são mártires. Na verdade, os fofociclistas defendem o fofociclismo e defendem a identidade de fofociclistas e defendem a subcultura fofociclística, não necessariamente defendem o ciclismo. Certamente não defendem o povo.

Se não fossem os fofociclistas nada aconteceria

Os fofociclistas acabam tendo certa importância, pois através dos seus contatos sociais conseguem mostrar seus chiliques nos jornais, mas certamente não são os únicos. Muita gente ajuda na promoção das bicicletas. Primeiro e principalmente os que andam todo dia, os ciclistas invisíveis. Também há políticos, engenheiros, cicloativistas, cicloadvogados, empresários, pesquisadores, jornalistas e por ai vai.

Na Dinamarca, um fortíssimo exemplo de país ciclístico, os que advogam pelas bicicletas preferiram participar do estado ao invés de ficar brigando contra o estado. Claro que eles perderam o status de justiceiros revolucionários urbanos, mas por outro lado conseguiram promover de verdade o uso da bicicleta.

No caso do Recife, usando outro exemplo, a pouca infraestrutura que temos é fruto ou de ações do estado (e.g., ciclovia da beira-mar) ou das ações de marketing de um certo banco (ciclofaixa de turismo e lazer). Espero que, em um futuro próximo, as argumentações públicas dos cicloadvogados locais e as performances culturais e políticas dos cicloativistas da cidade colaborem cada vez mais na obtenção de infraestrutura e direitos aos ciclistas. Isso se os fofociclistas não atrapalharem.

O movimento fofociclístico é democrático

Não é democrático. É formado por muitas pessoas da classe média que preferem ‘viver em combate’ ao invés de promover a honestidade intelectual ou mesmo promover de verdade o uso da bicicleta. Quando alguém tenta participar desse movimento, trazendo opiniões diversas, é logo calado como traidor, ou então abafado com críticas de todos os lados. Isso é bastante comum em qualquer movimento, como o sindical, por exemplo; mas no caso da ideologia fofociclística, apoiada só por burguesinhos uniformizados de neohippies, o caso é pior ainda.

No entanto, claro que é melhor ter um movimento fofociclístico do que não ter nada. Às vezes, em uma luta política, é preciso dourar a pílula, mostrar mais um lado do que outro lado do problema. Talvez essa seja a única forma de ganhar uma batalha. Posso até concordar parcialmente. Mas não me chamem.

Tomara cada vez precisemos menos dos folclóricos fofociclistas e tenhamos mais cicloadvogados, cicloativistas, cicloacadêmicos, ciclopolíticos, ciclotécnicos e, principalmente, milhões de cicloinvisíveis que nada mais querem que pedalar de lá para cá sem pensar nas bicicletas.

Bicicletas são símbolos da democracia

Quando as bicicletas apareceram, no século XIX, elas eram símbolo da elite social e econômica. Hoje em dia elas representam dois movimentos diferentes. Em primeiro lugar dos ciclistas invisíveis, que não falam nada, que não se organizam, mas que rodam no dia a dia. Por outro lado representam a classe média, tanto a parte fofa quanto a parte não fofa, que usa a bicicleta como um símbolo para mudar a cidade. O que confunde um pouco é que essa classe média usa o discurso de que a mudança será boa para “o povo”, para todos. Mas, na prática, conseguem no máximo umas ciclofaixas de lazer, umas ciclovias em bairros bacanas, ganhar alguns cargos eletivos, publicar artigos em jornais, dar entrevistas na televisão e muitos ‘likes’ nas redes sociais. Isso é muito bom, mas não é para “o povo”.

As verdadeiras mudanças para o bem do ciclismo alcançadas ao redor do mundo se deram pelo uso natural (e.g., Japão) ou pelo trabalho dentro do estado (e.g., Alemanha, Dinamarca e China). O caso da Holanda é especial, pois o ressurgimento das bicicletas na década de 70 foi sim fruto de um movimento popular e político, mas algo muito mais representativo e orgânico do que acontece hoje em dia no Brasil. Ali sim houve uma luta, e ali sim foi uma luta pelo povo a favor do povo.

Para mim, no Brasil, as motos são muito mais democráticas que as bicicletas. Elas sim representam o povo, com todas as suas peculiaridades, tanto as boas quanto as ruins: adaptabilidade, individualismo e caos. Pode não ser o ideal, mas a democracia não é o ideal fofinho, a democracia é a participação de todos, com todas as contradições que isso trouxer. Democracia não é o moralismo higienizador dos fofociclistas, democracia é diversidade.

Bicicletas são subversivas

Na verdade eu acho o movimento fofociclístico bem fofinho e gentil, e ditadorzinho e compulsivo. Nada subversivo. Pode até ser uma tentativa de subversão da elite dominante pela subelite dominada, mas é coisa de elite mesmo assim. As motos sim são subversivas, pois não se limitam a organizações, clubes e associações de classe média. Ainda, as motos provocam medo no sistema dominante e são acompanhadas de uma violência de fato. Violência física, sonora, contra a segregação social, contra a ordem no tráfego. Isso é subversão do sistema. Vejam que não estou dizendo que isso seja algo necessariamente bom.

Na verdade, o movimento fofociclístico não é nem um pouco subversivo, é sim moralista (com seus discursos “tem que”, “tem que”, “tem que”) e domesticador (só repetem “não pode”, “não pode”, “não pode”). Um movimento nada subversivo. Nada mesmo. Um ponto importante que os fofociclistas não percebem é como esse discurso moralizador, higienizador e controlador afasta as pessoas que, de outra formam, até tentariam pedalar.

O lado fascista deles em geral é inofensivo, mas nem sempre. Cada vez mais estão atacando pessoas individualmente na internet, gravando vídeos, multando, julgando, caluniando, difamando, até forçando trabalhadores a participarem de “cursos” humilhantes que depois são divulgados como se fossem “lições”. Os fofociclistas sentem-se no papel de justiceiros sociais, que podem julgar a todos a seu bel prazer. Não são justiceiros, são fascistinhas neuróticos.

O pior é quando passam a tentar controlar os próprios ciclistas, que não podem correr, que têm que respeitar as regras, que não podem ser nada menos que exemplos perfeitos de bons cidadãos, que têm que ser sempre gentis (gentileza gera gente lesa), que não podem ter opiniões diferentes do pensamento único fofociclístico porque isso poderia enfraquecer o movimento. Querem assim controlar o espírito livre dos ciclistas. Querem assim domesticar a mobilidade humana. Controlar, normatizar, punir, acalmar, tornar previsível. Control freaks.

Às vezes eu desconfio que, lá no fundo, os fofociclistas não têm tanta preocupação assim com bicicletas (poderiam estar forçando qualquer outra ideologia, normatizando qualquer outra conduta). Parece muitas vezes que o que importa para eles é sim dar vazão a uma fortíssima necessidade psicótica de controlar os outros, de submeter os outros à sua vontade, de legislar sobre a vida dos outros, de serem vistos como mais éticos, como mais puros, de deixarem sua marca na cidade através das transformações urbanísticas e arquitetônicas, de criar narrativas para que todas as boas ideias e boas ações pareçam ter vindo deles, de vender desesperadamente a imagem de que são descolados e alegres o tempo todo. Dá medo de gente assim.

Toda subversão é boa

Claro que não é. Será que a subversão causada pelas motos no tráfego urbano é boa? Com tantas mortes? A subversão do Estado Islâmico aos regimes europeus é boa? Acho que não. Bem… vindos como viemos de um regime militar autoritário, temos a tendência de achar que toda subversão é boa. Algumas são… outras não.

Todas organizações sociais são democráticas

Por vivermos em um estado incompetente (por ser pequeno e por não ter recursos), também temos a tendência de achar que qualquer organização social será mais desinteressada, mais democrática, mais ágil e mais inteligente que o estado e que as empresas. Lembremos, no entanto, que a Ku Klux Klan, os movimentos neonazistas, os sindicatos patronais, etc., todos são organizações sociais, e nem todas são fofinhas e desinteressadas. Mesmo as ONGs de discurso social alinhadas com partidos políticos, às vezes estão mais a serviço eleitoral do que a serviço da população.

Vou dizer de outro jeito. Não é porque é do estado que é incompetente e corrupto. Não é porque é de ONG que é inteligente e desinteressado. Não é porque é do estado que é confiável e informado. Não é porque é de ONG que é aproveitador ou explorador. ONGs podem ser eficientes e inteligentes, mas também podem ser facilitadoras de desvios financeiros, de privilégios aos amigos do poder, ou de “flexibilização” (exploração) trabalhista. Não é porque é ONG que automaticamente é do bem.

De qualquer forma, eu creio que, no caso das bicicletas, seria bem melhor ter um estado com bom corpo técnico (e.g., Alemanha, Dinamarca) e um legislativo com políticos mais representativos dos interesses dos ciclistas (e.g., Holanda). Seria muito mais eficaz e eficiente do que depender de organizações sociais que ninguém sabe de onde vieram ou para que interesses realmente trabalham.

Em linhas gerais, minha posição pessoal é a defesa de um estado mais forte (com profissionais de carreira bem treinados e com recursos) e de um governo mais fraco (com políticos sem poder para fazer lambanças e para privilegiar seus coleguinhas). ONGs também tem seu lugar, mas majoritariamente com dinheiro privado. Empresas privadas também podem ajudar o estado em políticas públicas, mas com um rigoroso e transparente processo de licitação.

Todos movimentos progressistas são alinhados

Eu sou a favor das bicicletas, do direito ao aborto, do ambientalismo, e do feminismo de verdade – aquele em que as mulheres têm os mesmos direitos que os homens, não aquele em as pessoas apenas lutam pelo direito de ficarem cagando regras de comportamento para os outros, uma psicose muito parecida com o fofociclismo. Mas tenho restrições, por exemplo, a certos aspectos conservacionistas do novo urbanismo e ao autoritarismo do socialismo. Ao forçar o alinhamento dos movimentos chamados progressistas – “tode fofocicliste é feministe”, “tode fofocicliste é socialiste” -, o que acaba acontecendo é afastar muitas pessoas que gostam de bicicletas mas não necessariamente defendem outras bandeiras.

Bicicletas não poluem

Bicicletas poluem muito menos que carros, mas poluem. Poluem na extração da matéria prima, na fabricação, no transporte da China para o Brasil, na produção e na conservação de alimentos que são usados como combustível. Poluem muito menos que os carros, mas dá para melhorar mais ainda com a produção local, reciclagem e um bom mercado de usadas. Ao defenderem que as bicicletas já são perfeitas, os fofociclistas escondem a necessidade de melhorias.

Além disso, uma simples viagem de avião para um encontro anual ciclístico emite tanto CO2 quanto rodar todo dia de automóvel. Não adianta nada pedalar todo dia e depois viajar de avião para celebrar o ambientalismo. Imagem não é tudo.

Bicicletas são baratas

São baratas porque exploram o trabalho dos povos asiáticos. Muitas vezes preferimos esquecer esse ‘detalhe’.

Bicicletas são para todos

Não são. As bicicletas atuais não são apropriadas para quem é muito alto, muito baixo, muito gordo, ou então para os idosos, crianças e pessoas com dificuldade de locomoção. Também não são legais para quem mora longe, precisa levar garupa ou carga, ou então vive em países quentes e úmidos. Dá para ajustar isso às nossas necessidades, desde que as bicicletas disponíveis no mercado não sejam vistas como a imagem terrena da perfeição celestial. Um pouco de crítica à tecnologia das bicicletas, que está engessada desde o final do século XIX, faria muito bem aos ciclistas de verdade. Muito embora, reconheço, novos designs mais úteis talvez desmanchassem um pouco esse símbolo de luta tão querido dos fofocilistas. Afinal, bicicletas são um símbolo de luta, não um veículo de transporte, né?

Bicicletas são tranquilas

São se você andar devagar. Mas para quem gosta de correr, a história é outra. Eu, por exemplo, gosto de andar um pouco mais rápido. Quero ciclovias sim, mas quero várias ciclovias diferentes. Uma para eu poder correr, outra para meus filhos andarem com tranquilidade. Eu quero mais do que apenas ciclovias fofinhas e calminhas.

Velocidade é ruim

Um argumento contra os carros e as motos é que são máquinas muito velozes, contranaturais. Como se essa hibridização homem-máquina fosse algo ruim em essência. Bem, eu não consigo ver assim. Claro que a velocidade é perigosa, e por isso demanda sistemas inteligentes, mas não que seja algo filosoficamente, intrinsecamente, ruim. Até mesmo os fofociclistas gostam de velocidade. Afinal, usam aviões para ir aos seus encontros anuais, não é? Eu, particularmente, gosto tanto da hibridização homem-máquina quanto da velocidade.

Construa a ciclovia e os ciclistas virão

Esse slogan foi tirado daquele filme de fantasminhas, O Campo dos Sonhos. O engenheiro de transporte de botequim quer demonstrar que vale a pena fazer uma (qualquer uma) ciclovia em um determinado local (qualquer lugar). O especialista parafraseia então uma fala do fofo filme: construa a ciclovia que as bicicletas virão. Afinal, se funcionou com os fantasmas do filme, por que não funcionaria com os ciclistas, não é mesmo?

Segundo esse raciocínio, basta você fazer uma ciclovia em qualquer lugar do mundo que os ciclistas a usarão, independente de por onde passa, independente de onde parte, independente de onde termina. Sem contar que ainda acrescentam que sempre vale a pena retirar uma das faixas dos carros malvados, porque isso sempre vai melhorar a mobilidade.

Infelizmente a realidade não é tão simples. Há ciclovias que não têm tanto movimento quanto teriam se tivessem sido construídas em outro local, há ciclovias que têm menos fluxo do que teriam se aquilo fosse uma faixa de automóveis. Ou seja, ciclovias são legais sim, devem ser contruídas sim, devem ser promovidas sim. Mas não em qualquer lugar. É preciso fazer estudos antes, e não simplesmente ir no oba-oba dos fofociclistas, nos interesses econômicos de algum arquiteto ou nos interesses eleitoreiros de um político qualquer.

As grandes cidades do mundo estão construindo ciclovias porque é bom para a mobilidade

Ciclovias são legais e devem ser promovidas, mas nem todas as cidades assim o fazem pela mobilidade. Ciclovias são a atual ‘modinha’ das grandes cidades, como já aconteceu com a revitalização de áreas portuárias e de centros antigos, e também com a construção de grandes polos culturais ou de eventos. Há empresas de projeto arquitetônico que vivem só disso, de promover essas modinhas entre os prefeitos ao redor do mundo. A cidade que não entrar nessa nova ordem mundial está fadada a ser vista como retrógrada. O prefeito que não fizer ciclovias não pode pagar de moderninho, de amiguinhe de pove. O problema é que, por estarem mais preocupados com as eleições, esses governantes não se preocupam em fazer estudos de viabilidade, de qualidade e de opinião pública. Não é porque é modinha fazer ciclovias que elas realmente são úteis automaticamente em qualquer lugar. Não é porque é modinha fazer ciclovias que uma única ciclovia vá fazer diferença para a mobilidade de uma cidade. Não é porque é modinha fazer ciclovias que elas não atrapalham nunca. E, mais importante, não é porque é modinha fazer ciclovias que elas não devem ser feitas.

Basta alguém entrar em um carro para ficar malvado como no desenho do Pateta

Esse argumento, muito utilizado pelos ‘especialistas’ em mobilidade, me faz rolar os olhos para cima, bocejar, parar de ler, ou sair da roda de conversa para fazer xixi… e nunca mais voltar. Ocorre quando o psicólogo de padaria quer provar que qualquer pessoa se transforma em um assassino quando pega o volante de um automóvel. Para tal prova, o/a carinha então cita o famoso trabalho sócio/antropo/psicológico ‘Motor Mania’ produzido pela Universidade Walt Disney, estrelada por ninguém menos que o Pateta, no qual o cachorrinho falante se transforma de um pacato cidadão em um feroz motorista raivoso.

Bicicletas são tecnologicamente democráticas

Não são. As bicicletas de hoje estão congeladas no discurso e no tempo. Os que defendem as bicicletas (tanto fofociclistas em seus discursos, quanto esportistas ao se submeterem à UCI) defendem que continuem sempre do mesmo jeito, mesmo que seja possível melhorá-las do ponto de vista do usuário comum. Proteção aerodinâmica, auxílio elétrico, novos designs, por exemplo, sofrem bastante resistência. E, por incrível que pareça, no caso das bicicletas são os engenheiros que defendem as novidades (pelo menos testar as novidades), enquanto os fofociclistas e os esportistas são extremamente conservadores.

Houve dois momentos com democracia tecnológica na história das bicicletas. O primeiro de 1865 a 1885, quando muitos conceitos foram testados. E, depois, entre 1975 a 1985 no surgimento das mountain bikes. De resto, as bicicletas representam um conservadorismo conceitual muito forte.

Dois exemplos de democracia tecnológica que poderíamos copiar são a criação do Linux e a do computador pessoal. Esses dois movimentos de desenvolvimento tecnológico foram marcados pela livre circulação de informação, um número muito grande de pessoas, paixão e, principalmente, foco nos resultados e não em conceitos específicos. No caso das bicicletas, as pessoas olham muito mais para o artefato atual (bicicleta) do que para as funções que desejamos (conforto, elegância, eficiência, baixo custo, etc). Isso que gera o autoritarismo tecnológico, vindo muito mais do lado dos fofociclistas do que do sistema capitalista que eles dizem odiar.

Usar bicicleta nos trópicos é a mesma coisa que em clima temperado

Claro que não. Praticar atividade física no calor cansa muito mais do que no frio, além do que dá mais trabalho para tomar banho, lavar mais roupas, etc. Isso não significa que não devamos usar as bicicletas, mas sim que são necessárias mudanças físicas (mais árvores, mais circulação de ar) e sociais (menos preconceito contra o suor). Quem não anda porque é calor não é mau caráter, simplesmente não acha que nas condições atuais vale a pena se esforçar tanto para pagar de justiceiro social.

A democracia irá destruir o sistema autoritário dominante

Em primeiro lugar, o sistema atual, baseado na economia de mercado, não é democrático? Claro que é um sistema distorcido pelo marketing, pelos monopólios, protecionismo e isenções, mas talvez não exista algo melhor que possa ser implementado na prática. Que democracia seria essa que destruiria o sistema dominante carrocrata? O movimento elitista dos fofociclistas? Eles são democratas ou só querem trocar uma elite por outra? Não é porque alguém diz que algo é democrático que aquilo se transforme magicamente em democracia.

Eu realmente não creio que uma ideologia vinda da classe média consiga destruir outra ideologia de classe média, por mais fofinha que seja. Penso sim que é necessário melhorar o sistema existente, com informações honestas sobre os produtos e serviços (bicicletas são boas em que situações? carros são bons em que situações?), com incentivo a inovações tecnológicas tanto de produtos (novos veículos elétricos) quanto de serviços (transporte público), e a participação realmente popular (não apenas dos fofociclistas) na discussão de grandes investimentos do estado.

Creio muito mais na sabedoria da classe mais baixa ao escolher o que quer consumir (desde que existam informações disponíveis, monopólios não sejam permitidos, externalidades sejam devidamente taxadas e a inovação incentivada) do que na sabedoria de um bando de fofociclistas de classe média reunidos na mesa de uma organização social moralista qualquer.

Pedalar emagrece

Claro que, por ser uma atividade física, pedalar emagrece e favorece a saúde. Mas é preciso ter certo cuidado no exagero ao usar esse argumento. Muitas vezes, as pessoas não são magras e saudáveis porque andam de bicicleta, mas sim andam de bicicleta porque já eram magras e saudáveis. Isso acontece em todos os esportes. Portanto, é bem legal estimular o uso da bicicleta, mas sem julgar os que não andam. Nem todo mundo tem a sorte de ter nascido com determinada genética.

Quem critica os fofociclistas é contra as bicicletas

Essa é uma técnica bem conhecida. Os fofociclistas se arvoram como únicos defensores das bicicletas (já vimos isso, na verdade eles defendem a si mesmos, não necessariamente as bicicletas), vendendo a ideia de que ninguém mais gosta das bicicletas. Depois, emporcalham mais ainda o raciocínio: se só os fofociclistas defendem as bicicletas, então quem critica os fofociclistas é contra as bicletas. Para piorar, eles confundem crítica, não dar bola e ser contra.

É uma falácia elevada à quinta potência. (1) fofociclistas defendem as bicicletas (falso), (2) só os fofociclistas defendem as bicicletas (falso), (3) quem critica algo é contra aquilo que critica (falso), (4) quem não dá importância para alguma coisa é contra aquela coisa (falso), e (5) quem critica os fofociclistas é contra as bicicletas (falso).

Deixa eu desenhar como as coisas são na realidade. Fofociclistas defendem os fofociclistas. Quem critica os fofociclistas critica os fofociclistas. Quem critica os fofociclistas não necessariamente é contra os fofociclistas. Quem não dá bola para as bicicletas não necessariamente é contra as bicicletas. Quem perde tempo para criticar os fofociclistas certamente não é contra as bicicletas, muito pelo contrário. Quem critica os fofociclistas não é contra as bicicletas.

Há outras variações possíveis dessas falácias: “Eu não conheço ninguém que concorde 100% com suas suposições fofociclísticas, logo você está 100% errado em criticar os fofociclistas e, consequentemente, os fofociclistas são 100% perfeitos” ou “Você criticou um fofociclista em particular em uma determinada posição dele, logo você será combatido por todas as pessoas que defendem as bicicletas”. São tentativas de fugir das críticas, de parar a conversa, ou então de tentar se esconder atrás de um grupo. Técnicas risíveis.

Os fins justificam os meios

Essa declaração é só um resumo de tudo o que escrevi até agora. Não é legal mentir para defender as bicicletas. Você não vai relaxar se andar no meio dos carros, você não vai chegar no trabalho cheirosinho como se estivesse na Holanda, as pessoas que preferem andar de carro não são burras, nem todo discurso que tem ‘povo’ no meio realmente está a serviço do povo, e assim por diante.

As bicicletas são legais sim, e precisam ser mais estimuladas sim. Mas isso não significa que elas trarão necessariamente a democracia (é uma subelite que as tem defendido, com um discurso extremamente autoritário), que trarão a liberdade (não é legal ter o raio de mobilidade diminuído, nem ao menos forçar idosos, crianças, trabalhadores que moram longe e pessoas com dificuldade de locomoção a usarem um veículo inapropriado) e que vão reduzir a velocidade do mundo (ainda bem, pois não vejo nada intrinsecamente errado na velocidade).

O fofociclismo é científico

Os fofociclistas não são científicos. O que eles fazem é escolher trechos de alguns trabalhos genuinamente científicos que por acaso coincidam com a ideologia deles. Mas isso não é ciência, já que não explicita as inevitáveis especificidades de qualquer trabalho científico (e.g., foi uma pesquisa em apenas uma cidade, em apenas um dia, com poucas pessoas) e também não mostra outros trabalhos científicos que discordem desses que eles escolheram. Fazer ciência é conviver com as imperfeições do conhecimento humano, é conviver com o contraditório. Se não for assim não é ciência, é religião. O fofociclismo é uma religião, uma religião na qual são escolhidos apenas os textos sagrados que corroboram a fé.

Escolher apenas trabalhos científicos que interessam não é ciência. É pilantragem.

Mas é uma pilantragem difícil de combater, já que em qualquer discussão pública os fofociclistas amestrados vêm com esse monte de textos decorados, ladrando trechos de trabalhos que reafirmam a sua fé.

Já tentou conversar com um crente obsessivo que sabe a bíblia decorada? Então… conversar com um fofociclista é chato do mesmo jeito.

Falando em ciência, um aspecto bem triste a se levar em conta é que boa parte dos pesquisadores que estudam as bicicletas também são fofociclistas, ou então amigos de fofociclistas, ou então financiados por associações de fofociclistas, ou então usam os contatos políticos, midiáticos ou empresariais dos fofociclistas (sim, fofociclistas são bem enturmados). O que acontece então é que, devido a essa aproximação indevida entre pesquisador e pesquisado, os trabalhos científicos saem sem as devidas críticas, contendo apenas rasgados elogios. Uma pena.

Bicicletas são eficientes

As bicicletas, em si, até são. Mas quando a gente coloca o ciclista na conta (o ciclista é o motor da bicicleta – um motor bem pesado, ineficiente, desbalanceado e com uma aerodinâmica horrível), então a eficiência de uma bicicleta não é tão boa assim. Dá para melhorar bastante, principalmente com proteção aerodinâmica. Quando definimos eficiência como a energia usada para mover as pessoas dividida pela energia gasta (alimento, no caso das bicicletas), descobrimos que a eficiência de um carro é mais ou menos 0,5%, de uma moto 2%, de uma bicicleta convencional 10%, e de uma bicicleta elétrica 65%. Bicicletas são mais eficientes que as motos primeiro porque são mais leves, mas principalmente porque andam devagar.

Bicicletas são seguras

Bicicletas são relativamente seguras, mas nem tanto. Primeiro por causa dos carros que correm demais e passam perto demais. Segundo porque as bicicletas correm, e sempre há um certo risco em qualquer coisa que se move. É a vida. Mas, para falar a verdade, por mais que eu goste das bicicletas, não gosto que minha filha pedale pelas ruas. Tanto por causa do trânsito, quanto porque é perigoso cair a 30 km/h.

Bicicletas são leves

Podiam ser mais. Um grande inconveniente das bicicletas é levá-las para o apartamento de quem não tem elevador. Muita gente não pedala porque depois não consegue carregá-las. Além do que, em cidades com muitas subidas, o peso faz diferença. Bem, outro lance que dá para melhorar nas bicicletas atuais.

A luta de verdade está nas ruas

Ok. Converso sobre isso quando alguém fizer qualquer coisa que seja nas ruas, em defesa das bicicletas, sem depois publicar em jornais ou postar nas redes sociais. A luta, de fato, está na comunicação entre os seres humanos. A luta de verdade pode se dar nas ruas, nos bares, no congresso, nos livros ou na internet. A luta de verdade está na transformação material, nas indústrias, em novos projetos, novas arquiteturas. A luta de verdade está na distribuição das riquezas, na promoção da diversidade intelectual, na produção cultural e na participação política. Todas as formas de luta são legítimas. Inclusive fazer protestos na rua ou promover bate-bocas em audiências públicas, sem qualquer efeito prático a não ser ter o que postar no facebook, ser entrevistado na TV, animar um canal de YouTube, alimentar um blog (olha eu aqui) ou então publicar uma coluna no jornal.

Posso pedir uma música?

Juntando alguns dos enunciados fofociclísticos percebi que acabaram ficando parecidos com um poema modernista, talvez um rap, ou quem sabe um mantra. A letra já está pronta, só falta musicar. O duro que eu gostei e, vendo as frases soltas assim, sem contexto, até dá para concordar com boa parte delas. Oh minhas leis da física, oh minhas crenças metafísicas, será que sou um fofociclista?

Fofocicletas

Bicicletas são legais
Bicicletas não poluem
Bicicletas são baratas
Bicicletas são leves
Bicicletas são eficientes
Bicicletas são seguras
Bicicletas são tranquilas
Bicicletas são do povo
Bicicletas são para todos
Bicicletas são subversivas
Bicicletas são apaixonantes
Bicicletas são científicas
Bicicletas são libertárias
Bicicletas são símbolos de luta
Bicicletas são símbolos da democracia
Bicicletas são símbolos contra a tecnologia
Bicicletas são entidades perfeitas
Bicicletas são feitas pelo Papai Noel
Bicicletas são o Paraíso sobre a Terra

Será que sou um fofociclista?

Não é fácil ser um fofociclista; demanda muito esforço e religiosidade. Mas até que é fácil descobrir se você já faz parte da nata fofociclística. Bastar fazer a contagem de com quantas afirmações feitas nos títulos das seções você concordou. Não contei direito, mas acho que no total foram quarenta enunciados fofociclísticos. Bem, se você concordou com mais de trinta e quatro já tem permissão para orgulhosamente portar a carteirinha de fofociclista. Se você concordou com todos quarenta, pode até se candidatar a Grão Mestre da Ordem Fofociclística.

Só que não pode concordar mais ou menos. Por exemplo, no enunciado “bicicletas são eficientes”, não vale interpretar como “bicicletas são mais eficientes que os carros”. Para ser um fofociclista de verdade é preciso interpretar de forma absoluta, levantando a cabeça, estufando o peito e proferindo em voz alta e clara: “bicicletas são eficientes, ponto, não há nada o que discutir ou melhorar”. E para ganhar uma estrelinha, o fofociclista pode ainda acrescentar um “e se você não concorda comigo é porque você é contra as bicicletas, visse?”

Agora, se você concordou com menos de trinta e cinco, ou se concordou apenas de forma parcial com os enunciados, tendo a petulância de pensar por si mesmo, terá então que se contentar a ser um reles defensor das bicicletas, um ser sem um título de nobreza. Ou, como dizem os chiques ingleses usando o latim, um s.nob., um sine nobilitate.

Epílogo

Pronto, me livrei de dez anos de análise… e provavelmente me meti em dez anos de polêmicas. Falando sério, espero que este texto sirva para melhorar a discussão sobre a mobilidade urbana, com mais clareza de interesses (inclusive os meus), com mais democracia (quero mais inteligência e diversidade intelectual no que ouço por aí) e, claro, com mais bicicletas (quero minha ciclovia veloz!).

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