Viagens Cósmicas

© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: Um Motoqueiro Existencialista

VIAGENS CÓSMICAS
Fábio Magnani
[publicado originalmente em novembro de 2017]

Hoje o texto é sobre alguns livros que misturam motos e religião. Eu não sou um cara religioso, então queria pedir desculpas por qualquer besteira que eu venha a falar. Mas como eu gosto muito de livros que tem a ver com motos e bicicletas, e leio de tudo, vou me meter no assunto. Pode servir de dica para quem tem mais interesse.

O livro mais famoso, pelo menos em seu título, que tem a ver com motos e religião, é Zen and the Art of Motorcycle Maintenance (ZAMM, Zen e a Arte da Manutenção das Motocicletas) do Robert Pirsig. Embora tenha “zen” no título, tem mais a ver com filosofia do que com religião. Mas como no oriente religião e filosofia se misturam mais do que aqui, acaba falando bastante sobre o assunto. As pessoas às vezes têm a impressão que os motoqueiros são todos uns broncos, que só querem saber de brigar, beber e correr. Pode até ser, mas nem todos são assim. Alguns motoqueiros também são pensadores, como é o caso do Robert Pirsig. O ZAMM é o livro de filosofia mais vendido do século XX. Legal que as motos são usadas como veículos para uma viagem mais profunda, pois na verdade o grande tema do livro é unificar as filosofias oriental e ocidental.

Outro livro sobre motos e filosofia é Philosophical Ridings: Motorcycles and the Meaning of Life, do Craig Bourne. Com uma filosofia um pouco mais superficial e introdutória, trata de temas bastante importantes e profundos, como a questão existencial, reflexões sobre a vida e a morte, a nossa responsabilidade em relação aos animais (que ele exemplifica no caso da jaqueta de couro dos motoqueiros), a nossa responsabilidade com o futuro e o meio ambiente (já que as motos poluem). Tem também Sons of Anarchy and Philosophy: Brains Before Bullets, editado por George Dunn e Jason Eberl. Sons of Anarchy é um seriado de sete temporadas bastante premiado, conhecido como o Hamlet em Duas Rodas. Em relação ao livro, discute questões filosóficas sim, mas com um viés mais sociológico e cultural, questões um pouco menos profundas e individuais. Por exemplo, trata de temas como a concordância com grupos que pregam viver em liberdade mas que internamente têm uma estrutura militaresca. Como queremos a liberdade mas defendemos a violência? Por que às vezes defendemos pessoas de nosso grupo ou família que nem sempre tem uma conduta honesta? O terceiro livro desse tipo é Harley-Davidson and Philosophy: Full-Throttle Aristotle, um livro um pouco mais diversificado. São vários autores, e em alguns capítulos é até engraçado. Em um deles, o autor inventa um bar fictício no qual cada motoqueiro tem uma história de vida diferente, uma postura em relação à vida diferente, uma personalidade diferente. Daí cada motoqueiro desses é incluído em um movimento filosófico da Grécia. Um é epicurista, outro cínico, cético, estóico, e por aí vai. São três livros mais de popularização, mas é legal porque quase todos os autores são motoqueiros também. Mostram que os motoqueiros podem pensar, e que andar de moto mexe muito com a gente tanto do ponto de vista emocional e físico, quanto do ponto de vista filosófico. Porque é impossível você sair de moto sozinho e não pensar na morte, não se questionar se não é melhor curtir aquele isolamento para sempre, ou então se, ao contrário, não vale a pena fazer de tudo por um grupo mesmo que isso cause conflitos com a sua individualidade. É impossível rodar de moto e sair sem novos pensamentos filosóficos, sejam formais como nos livros ou intuitivos como todos nós fazemos.

Voltando ao Zen and the Art of Motorcycle Maintenance, existem vários livros sobre ele. Um deles é Guidebook to Zen and the Art of Motorcycle Maintenance, que é o guia para entender as referências teóricas do livro do Pirsig. São vários capítulos: sobre o zen, referências culturais, referências filosóficas gregas etc. Mas um capítulo em particular é sobre religião oriental. Fala sobre o hinduísmo, budismo, taoismo, confucionismo, zen-budismo, fazendo uma análise comparativa entre essas escolas religiosas. Para mim que não conhecia quase nada foi muito enriquecedor.

Andei lendo ultimamente outros livros sobre motos e religião. Um deles é Kick Start: Cosmic Biker Babe’s Guide To Life And Changing the Planet da Carol Setters, que tem como subtítulo algo como “um guia para as garotas motoqueiras cósmicas para a vida e para mudar o planeta”. É um livro sério que começa como brincadeira, quando a autora conta na época em que resolveu pegar um disco voador porque não gostava da vida na Terra, viajando para outros planetas, mas que voltou por causa da saudade, mesmo que agora ache tudo meio esquisito. Algumas pessoas morrendo de fome e outras por obesidade, propagandas para jovens fumarem o cigarro que mata de câncer. Por ter uma visão distanciada, nos lembra como somos infelizes ao adorarmos ideias erradas. Ela se baseia em uma religião que não conheço, que tem um texto sagrado chamado O Livro de Urântia. Bem… não sei do que se trata, mas parece que é famoso. Ela foi honesta em relação a isso, mas não faz tanto proselitismo. Fala mais como viver bem. Primeiro é um livro do universo feminino, mas também feminista quando fala sobre as dificuldades vividas pela avó e pela mãe. Ela mesmo tem dificuldades em viver em uma sociedade que exige que as mulheres cuidem da casa, se apresentem como mártires e sofredoras. Não é muito fácil ser aceita se você for independente, inteligente, forte e individual. Comenta ainda sobre temas mais gerais, que servem também para os homens. Um deles é quando diz que devemos pautar nossas vidas não primeiramente pelas ações mas sim pelos valores. Em um determinado lugar ela lista, apenas como exemplo, uns quatrocentos valores que uma pessoa pode ter em sua vida. Valores bem antagônicos às vezes, como majestade e humildade, simplicidade e erudição, comunidade e individualidade. O que vale é buscar entre eles quais são os nossos valores reais, a nossa essência, e a partir da descoberta da nossa essência aí sim pautar as nossas ações. Porque só quando nossas ações são baseadas na nossa essência e não nas outras pessoas, religiões ou ideologias, daí sim seremos autênticos e iremos inspirar as outras pessoas.

Outro livro é Open Road: A Goddess-Biker Guidebook da Jennifer Bair. Curioso que o livro anterior era o guia da motoqueira cósmica, e este é o guia da deusa motoqueira. É um livro baseado na religião pós-moderna chamada New Age, que mistura religiões e técnicas orientais, psicologia, ciência, e técnicas espirituais. Também é um livro do universo feminino, falando bastante sobre motoqueiras. Mistura dicas bem práticas de como escolher, cuidar e pilotar a sua moto, mas também dicas de meditação e alimentação. Não só com a opinião da autora, mas com várias entrevistas com outras motoqueiras, contando como cada uma busca sua própria individualidade. Bem inspirador.

Tem também o The Tao of the Ride: Motorcycles and the Mechanics of the Soul do Garri Garripoli. É um cara americano que passou vários anos na China estudando técnicas de cura, meditando e encontrando mestres. Como o nome está dizendo, se baseia no taoismo, principalmente na questão de buscar uma harmonia na vida, com a natureza, ter uma vida mais simples. Ver a vida como a água de um riacho que flui por entre as pedras, ensinando que devemos nos deixar fluir sem lutar contra certos obstáculos. Ele usa muito a moto como metáfora. Por exemplo, de como quando andamos de moto temos uma maior consciência de que a morte pode acontecer – e claro que inevitavelmente vai acontecer um dia, estejamos conscientes ou não. Por isso temos que aproveitar a vida com seus momentos belos, como uma curva perfeita, como quando você sai de uma mata fresquinha e recebe o contrastante calor do sol te aquecendo. E também a lidar com as frustrações, como quando o pneu fura ou o motor quebra. Aceitar os encontros com aqueles que durante um tempo rodam ao seu lado ou na sua garupa, e mais ali na frente seguem outro caminho.

Mais um, Motorcycle Yoga, Meditative Rides through India do Miles Davis, que também é um americano e que viveu mais de 30 anos na Índia, em uma região bem central, onde muitas pessoas jamais tinham visto um branco. Ele casou com uma indiana e agora é bastante religioso. Conta as viagens de moto para ir aos templos de Brahma, Vishnu, Shiva e Krishna. Critica o sistema de castas da Índia, por ser baseado no nascimento e não na iluminação da pessoa. Mas também critica os países ocidentais. Nos EUA, por exemplo, também há castas baseadas no nascimento. Se você nasceu dentro do território tem alguns privilégios de uma casta nobre, se nasceu um pouquinho ao lado, no México, então vai limpar privada nos EUA. Também fala da crítica que se faz ao hinduísmo, como se ele fosse o responsável pela condição atual do povo da Índia. Para ele, ao contrário, o país está assim exatamente por não seguir o hinduísmo à risca. É um livro interessante até nos momentos mais prosaicos, onde explica como é fluir no tráfego indiano. Ele roda com uma Royal Enfield, que era uma fábrica inglesa que depois acabou continuando apenas na Índia depois dos anos 70. É uma moto clássica. A Bullet 350cc quase não muda o seu projeto com o passar dos anos.

Para terminar, queria falar sobre um livro que não tem nada a ver com motos, Contact, do Carl Sagan. Um livro de ficção, e que depois virou um filme com a Jodie Foster. Seus personagens principais, uma cientista e um religioso, são usados para elevar essa conversa a um nível bem interessante. O Carl Sagan é um cara de quem gosto bastante. Por um lado defende a ciência como um corpo de conhecimento que traz a iluminação, traz luz à nossa compreensão de como as coisas funcionam, que rompe dogmas, e que nos ajuda a ter uma vida mais decente e mais racional neste mundo. Por outro lado ele também acha que a religião, desde que não seja moralista e desde que não tente forçar a barra ao explicar a natureza, é muito importante para inspirar o ser humano a sempre pensar nas coisas que a ciência e a nossa razão ainda não conseguem compreender. Claro que a ciência pode calcular o tamanho do universo, ou então o tempo de existência de tudo que nos cerca. Só que o ser humano tem uma certa dificuldade em lidar com coisas tão grandiosas. A religião, nesses casos, nos mostra isso de forma artística, mitológica, essa sensação de vermos a maravilha do universo e o milagre da vida. A ciência muitas vezes, ao tentar compreender os pequenos detalhes, tira do ser humano essa sensação de maravilha que a gente deve ter em relação à vida. Em outros casos, é a própria ciência que nos maravilha e expande nossa mente, com a religião secando tudo. Precisamos das duas na dose e na forma certa. A ciência sem desrespeitar a dimensão artística da religião, e a religião sem explicar de forma errada a natureza e sem tentar controlar a vida das pessoas. Se bem que isso não é problema apenas da religião, mas de qualquer ideologia, seja de mercado, de estado, economica ou religiosa.

O que eu tirei de tudo isso é que não importa muito o veículo que você escolhe para buscar a sua espiritualidade. Algumas pessoas preferem as religiões clássicas, outras religiões modernas, outras de forma independente. Você pode meditar e refletir sobre tudo isso em uma sala silenciosa, em cima da sua moto barulhenta, de bicicleta na mata. Cada um escolhe o seu veículo e lugar para contemplar o universo, para se descobrir. Ninguém é melhor que ninguém. As pessoas são diferentes e devem ser respeitadas. Quem não tem religião deve respeitar quem tem, e quem tem respeitar quem não tem. Cada um do seu jeito, cada um no seu caminho.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *