Velocidade Efetiva

© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: Conversas Técnicas Sobre Motos

VELOCIDADE EFETIVA
Fábio Magnani
[publicado originalmente em ]

Dia desses escrevi sobre o livro City Cycling, que vai ser usado como referência na última parte da nossa nova disciplina Estudos da Bicicleta – uma das disciplinas que mais me deu satisfação profissional na vida, ao lado de Engenharia da Motocicleta. Naquele texto, além de apresentar de forma geral a estrutura do livro, aproveitei também para detalhar um pouco o terceiro capítulo, que trata dos benefícios do ciclismo à saúde (Health Benefits of Cycling). Bem, continuando com a série, queria agora falar sobre o quarto capítulo – Velocidade Efetiva: Pedalando Porque é ‘Mais Rápido’ (Effective Speed: Cycling Because It’s ‘Faster’).

Só que, antes de falar do livro, vamos voltar a uma conversa do ano passado, quando eu me perguntava o que custava menos: carro, moto, ônibus ou bicicleta?

A primeira dificuldade em comparar uma coisa com outra é escolher as métricas, os indicadores e os índices. Por exemplo, quando um governo tenta mostrar que é melhor do que o governo passado, pode usar uma série de índices diferentes, como o PIB, a inflação, o índice de desemprego, o nível de escolaridade, o desmatamento, o número de mortes no trânsito ou o IDH. De onde se pode concluir que a escolha do índice é política, não técnica, já que o governo sempre escolhe o índice que lhe é mais favorável. Esse primeiro aspecto dos índices, que é como escolhê-los, é o mais importante, muito embora na maioria das vezes isso passe batido nas argumentações. Ficamos tão acostumados a esperar uma inflação baixa que esquecemos que o importante é a comida na mesa, ficamos tão acostumados a esperar um salário mínimo mais alto que esquecemos que o importante é o nível educacional da população, ficamos tão acostumados a esperar um crescimento do PIB que esquecemos que o importante é a participação popular nas decisões do país, ficamos tão acostumados a comparar o consumo de combustível de um carro com outro carro que esquecemos que todos são uma grande porcaria já que consomem 100 vezes mais do que deveriam.

Usando um outro exemplo, o governo pode dizer que é bom trazer uma montadora de automóveis para o estado porque vai aumentar o número de fábricas instaladas por aqui. Já um cidadão inteligente pode contra argumentar que é ruim trazer essa montadora porque vai aumentar os congestionamentos e reforçar o falso mito de que automóveis são uma boa alternativa para a mobilidade urbana. Quem está tecnicamente correto? Os dois (desde que tenham feito as contas direito), uma vez que é verdade que aumentará o número de fábricas e também é verdade que haverá mais congestionamentos. Agora, quem está moralmente correto? O cidadão inteligente.

Agora, e se o cidadão inteligente começar uma campanha para explicar que essas fábricas de automóveis se chamam ‘montadoras’ porque ‘montam’ em cima da população, que é enganada para comprar esses carros que consomem 100 vezes mais combustível do que deveriam, carros que matam mais que uma guerra, carros que queimam 25% do salário das famílias, carros que poluem a cidade e carros que ficam o tempo todo parados no trânsito? Bem, se o cidadão inteligente fizer essa campanha, será no mínimo engraçado. Mas estou divergindo do assunto.

O que me faz lembrar de um segundo aspecto importante nesses índices. Muitas vezes eles não são calculados, são apenas vomitados como se fossem verdadeiros, como quando dizem que uma refinaria vai “movimentar a economia do estado”, ou dizem que as receitas com o turismo na copa vão compensar os gastos públicos com os estádio, ou ainda quando dizem que os novos viadutos irão diminuir os congestionamentos, ou quando dizem que os motoqueiros são os principais culpados dos acidentes. Mas ninguém mostra como fizeram essas contas, né? São apenas argumentos vazios, pseudocientíficos. Falácias.

Mesmo quando calculados de fato, ainda há a questão da metodologia de cálculo. Se a inflação for calculada usando apenas alimentos, dará um resultado. Se for calculada com amostragens só nas capitais, dará um outro resultado. E por aí vai. Por isso é bom prestar atenção em saber se o índice usado na argumentação foi realmente calculado e, caso tenha sido, como foi feito o levantamento dos dados.

O terceiro aspecto do índice é a sua apresentação, como no caso em que alguém quer fazer a análise financeira de um novo projeto. O resultado pode ser expresso em VPL (valor presente líquido, que é o lucro total, em reais), pode ser expresso pela TIR (taxa interna de retorno, que é algo como o lucro percentual do projeto) ou então pelo payback (que é o número de meses que o investimento demora para se pagar). Quer dizer, mesmo que você esteja interessado em apenas uma coisa (neste caso o lucro financeiro), mesmo assim você pode analisar: quanto vai ganhar em reais, quanto vai ganhar percentualmente ou então quanto tempo vai demorar para começar a ganhar. Uma questão de apresentação.

Como exemplo, digamos que alguém tenha uma lâmpada incandescente em casa. Ela é barata, mas tem um alto consumo de energia. Daí o carinha quer saber se vale a pena investir em uma lâmpada fluorescente. Por um lado ele vai ter um custo maior ao comprar a nova lâmpada, mas por outro lado vai economizar na conta de luz. Será que vale a pena? Só comparando, né? Agora, qual índice financeiro usar?

O VPL diz que ao final de 36 meses, se você trocar a lâmpada, terá um lucro de R$ 5,50. Já a TIR indica que esse investimento na lâmpada fluorescente é equivalente a um investimento financeiro que paga 3% ao mês – bem melhor que a poupança. Já, ao calcularmos o payback, descobrimos que o investimento se paga após 21 meses. Os três índices usam as mesmas métricas (preço da lâmpada, potência elétrica, número de horas e conta mensal de luz), e levam em conta um mesmo critério de sucesso (lucro financeiro), mas apresentam os resultados de forma diferente. A escolha entre os vários índices financeiros, neste caso, tem mais um efeito didático, já que dizem mais ou menos a mesma coisa.

Agora, voltando um pouco aos outros aspectos dessa discussão, como eu sei com certeza o número de horas que essa lâmpada vai ficar acesa? E se a conta de luz baixar? Como eu meço o trabalho que vou ter para comprar essa lâmpada? Qual das duas tem maior impacto ambiental? Pensando nessas questões, dá para lembrar que não vale a pena ficar só discutindo qual é o melhor índice financeiro (VPL, TIR ou payback), quando na realidade talvez haja outros critérios de sucesso muito mais importantes para o indivíduo. Isso para não falar que muitas vezes os índices são calculados sobre dados duvidosos.

O mais engraçado disso tudo é que, se você for levar em conta só os aspectos financeiros, chegará à conclusão de que o melhor mesmo é não ter nenhuma lâmpada, viver no escuro e investir o dinheiro no banco. Claro que ninguém faz isso, já que ter luz em casa é algo absolutamente necessário. Será ?!?! Ou será que estamos tão acostumados com isso que achamos que é absolutamente necessário ligar nossa casa à rede pública (a distribuidora de energia elétrica diz que sim), que é necessário comprar um carro (as montadoras dizem que sim), construir mais um viaduto (as construtoras dizem que sim), comprar roupas da moda (as revistas dizem que sim) e trazer montadoras de automóveis para o estado (o governo diz que sim)? Talvez seja melhor gerar energia elétrica em casa com placas solares do que comprar de uma multinacional, talvez seja melhor andar de bicicleta do que de carro, talvez seja melhor investir em calçadas do que em ruas, talvez seja melhor ter uma empresa de inovação tecnológica capaz de projetar veículos para pessoas inteligentes ao invés de uma montadora de carros caríssimos, mortais, porcalhões e perdulários.

Um outro caso interessante é quando se compara a quantidade de CO2 emitida por um carro com o emitido no uso de uma bicicleta. Em geral, ao fazer essa conta, as pessoas contabilizam apenas a emissão durante a operação. Desse jeito, dá a impressão que a bicicleta não polui nada. Agora, de onde vem o combustível do ciclista? Para produzir e transportar os alimentos até a casa do cidadão, são necessários tratores e caminhões – que consomem combustível e consequentemente emitem CO2. Quando se faz a conta desse jeito, vê-se que a bicicleta não é tão perfeita assim. Embora seja muito melhor do que um carro, é discutível se uma bicicleta convencional polui mais ou menos do que uma bicicleta elétrica. A mesma discussão vale para a comparação entre termoelétricas e hidroelétricas. E por aí vai.

Resumindo. Para comparar as coisas é preciso ter um índice, i.e. um critério de comparação. As conclusões obtidas a partir desse índice levam em conta aspectos sociopolíticos (a escolha do que é realmente importante), aspectos quantitativos (o que foi efetivamente medido) e aspectos didáticos (como os resultados são mostrados). Um livro bem legal que trata desses assuntos é Sustainability Indicators: Measuring the Immeasurable? Recomendo.

Esse papo todo sobre índices foi para introduzir a minha discussão do quarto capítulo desse livro City Cycling, que leva em conta a velocidade efetiva para comparar a bicicleta com o carro. A ideia é legal. Para calcular essa tal velocidade efetiva, eles calculam todo o tempo gasto com o veículo: tempo para chegar ao estacionamento, tempo de deslocamento, tempo para estacionar e, principalmente, tempo gasto para ganhar dinheiro para pagar todos os custos envolvidos com o veículo, como custos com a aquisição, taxas, impostos, multas, combustível e manutenção. Parece que esse conceito apareceu pela primeira vez no livro Walden (H.D. Thoreau, 1854). Já no meio acadêmico, segundo o livro City Cycling, o conceito vem sendo usado desde a década de 1990, quando o termo “velocidade social” teria sido usado pelo sociólogo D. Seifried.

Na discussão a seguir vamos usar dois tipos de velocidade. A velocidade média é a que estamos acostumados, que é obtida dividindo a distância percorrida pelo tempo gasto durante todo o deslocamento, de porta a porta. Esse tempo de porta a porta leva em conta o tempo de estacionamento, no caso dos carros, e o banho no destino, no caso das bicicletas. A outra velocidade é a velocidade efetiva, que se obtém dividindo a distância percorrida pelo tempo total dedicado ao veículo. Esse tempo total é a soma do tempo de porta a porta com o tempo de trabalho dedicado a pagar todos os custos envolvidos.

É bem fácil calcular essa velocidade efetiva. Por exemplo, digamos que o carro de alguém tenha um custo mensal de R$ 610 (incluindo financiamento, taxas, seguro e combustível), que a viagem de 5 km ao trabalho dure 20 minutos e que o salário do carinha seja de R$ 5.000. A velocidade média da viagem seria de 15 km/h, o que seria bem razoável, pois em um trajeto pequeno assim se perde uma proporção razoável do tempo com o estacionamento da origem e do destino. Agora, quanto tempo do trabalho desse elemento seria dedicado a pagar o custo mensal de R$ 610? Fazendo as contas, seriam 60 minutos por dia. Logo, ao invés dos 40 minutos dentro do carro (ida e volta), na realidade ele gastaria 100 minutos por dia para esse transporte. Então, a velocidade efetiva do transporte por carro seria na realidade de apenas 6 km/h!

Já com uma bicicleta, ele levaria cerca de 30 minutos (20 minutos nas ruas, mais 10 minutos para tomar banho e trocar de roupa). Então, a velocidade média seria de 10 km/h. Levando em conta o tempo que gastaria trabalhando para pagar a bicicleta, comida adicional e água, a velocidade cairia para 9 km/h. Melhor que o carro, não é?

Com uma moto de média cilindrada (e.g. 600cc), a velocidade média chega a 25 km/h. Mas, ao considerar o tempo que se trabalha para pagar as despesas, a velocidade efetiva cai para 11 km/h. Se ele comprasse uma scooter (ou moto de baixa cilindrada), a velocidade média seria de 20 km/h e a velocidade efetiva 14 km/h. De ônibus, a velocidade média é 5 km/h e a efetiva 4,5 km/h.

Resumindo (salário: R$ 5.000 / distância 5 km):

  • Scooter: Vmed= 20 km/h, Vef= 14 km/h e Cmen= R$ 131
  • Moto média: Vmed= 25 km/h, Vef= 11 km/h e Cmen= R$ 305
  • Bicicleta: Vmed= 10 km/h, Vef= 9 km/h e Cmen= R$ 93
  • Carro: Vmed= 15 km/h, Vef= 6 km/h e Cmen= R$ 610
  • Ônibus: Vmed= 5 km/h, Vef= 4,5 km/h e Cmen= R$ 108

[Vmed: velocidade média; Vef: velocidade efetiva; Cmen: custo mensal]

Para esse caso específico, levando em conta a velocidade efetiva, a melhor opção seria uma scooter ou uma moto de pequena cilindrada. Na realidade, comparando uma scooter com uma moto média (que tem a maior velocidade física), só valeria a pena andar na moto média se o salário fosse maior que R$ 14.000 (trajeto de 5 km), ou então se o trajeto fosse maior que 16 km (salário de R$ 5.000).

Logo, pela velocidade efetiva é melhor escolher a scooter, pela velocidade média melhor a moto média, pelo custo mensal a bicicleta e pelo conforto o automóvel. Para se ver que a escolha do índice é, muitas vezes, mais importante do que a forma como ele é calculado. O que é importante para você? Quais são os seus valores?

O interessante é que, embora a bicicleta seja a de menor valor mensal (R$ 93), não tem a maior velocidade efetiva. Isso porque a velocidade física dela é menor. Interessante, também, que, embora a moto média seja a fisicamente mais rápida, também não é a com maior velocidade efetiva. Esse fato ocorre porque a moto é mais cara que a scooter, tanto para aquisição quanto para operação (bebe mais gasolina e tem manutenção mais cara).

Da conclusão acima, se vê que o índice da velocidade efetiva é menos favorável à bicicleta do que uma análise de custos tradicional, já que essa última não leva em conta o tempo perdido no trânsito, apenas os custos diretos com o transporte. Pela análise puramente financeira, a melhor opção seria a bicicleta; o ônibus ficaria melhor a partir de 6 km de trajeto; já a scooter seria melhor que a bicicleta apenas para trajetos acima de 12 km, mas nesse caso tanto a bicicleta como a scooter seriam mais caras que o ônibus.

Essa diferença entre os índices fica mais clara quando comparamos a análise daqui (índice: velocidade efetiva) com a que fiz no texto O que custa menos: carro, moto, ônibus ou bicicleta? (índice: custo diário) – muito embora as condições dos dois estudos sejam diferentes! Pela análise puramente financeira do artigo anterior, a bicicleta seria a melhor opção para trajetos de até 9 km. Pela análise da velocidade efetiva deste texto, a bicicleta só é uma boa alternativa em casos muito específicos.

Quero destacar agora a diferença entre a bicicleta e a scooter (ou moto de baixa cilindrada, ou bicicleta elétrica etc). Pela velocidade efetiva, a bicicleta só é melhor para distâncias de no máximo 1 km (que poderia ser feita a pé). Já pela análise apenas dos custos, a bicicleta seria melhor até 12 km. Por isso a importância de toda aquela discussão, na primeira parte deste texto, de como a escolha de um índice ou de outro pode levar a conclusões diferentes. Para quem quer defender a bicicleta, parece ser melhor computar apenas os custos. Mas não vale desconsiderar os gastos com o combustível (comida), como se faz comumente, porque daí a bicicleta vira a maior maravilha do mundo, transformando em imbecis as pessoas que usam outros veículos. Claro que isso não é verdade, como vemos pelos cálculos e como vemos nas ruas do mundo real. A bicicleta é uma boa alternativa apenas em alguns casos.

A escolha de índices diferentes por pessoas diferentes é a base das brigas sobre a melhor forma de transporte. Os bicicleteiros defendem que o mais importante é a saúde social e física da população, os carangueiros defendem que o conforto e segurança estão acima de tudo, os motoqueiros defendem que a velocidade é o critério fundamental de qualquer modo de transporte. A questão é que, enquanto não aceitarmos que as pessoas têm valores diferentes, vamos continuar brigando por superficialidades até o final dos tempos. Reconhecer que cada pessoa tem valores diferentes é o primeiro passo para construir um diálogo proveitoso.

Mas vejamos outros cenários. Por exemplo, se alguém recebesse um salário mensal de R$ 20.000, teria que trabalhar bem menos tempo para pagar os custos. Nesse caso, a velocidade efetiva ficaria muito próxima da velocidade média. A opção de maior velocidade efetiva seria a moto média, com 19 km/h.

E se o carinha receber um salário de R$ 600? Nesse caso, o tempo que ele passa trabalhando para pagar o transporte passa a ser considerável, fazendo com que a velocidade efetiva fique bem mais baixa que a velocidade média. Nesse cenário, a bicicleta ficaria empatada com a scooter, com uma velocidade efetiva de 4,5 km/h. O carro teria velocidade efetiva de 1 km/h. Já o ônibus e a moto média teriam velocidade efetiva de 2 km/h.

Há mais uma porção de estudos que podem ser feitos. Por exemplo, mantendo o trajeto ao trabalho de 5 km, fazendo uma comparação entre o carro e a bicicleta, só vale a pena andar de magrela se o salário for menor que R$ 12.500. Comparando com uma moto média, vale a pena andar de bicicleta só com salário abaixo de R$ 2.800. Em relação à scooter, a bicicleta só é melhor para um salário abaixo de R$ 605. Pela velocidade efetiva, a bicicleta é sempre melhor que o ônibus.

Mantendo um salário de R$ 5.000, vamos ver para quais distâncias a bicicleta é o melhor veículo quando comparada com outros. A bicicleta é melhor que o carro para distâncias menores que 13 km; melhor que a scooter para distâncias menores que 1 km; melhor que a moto média para trajetos menores que 3 km; e é sempre melhor que o ônibus.

Já para um salário de R$ 1.000, a bicicleta é melhor que o carro para trajetos inferiores a 108 km; melhor que a scooter para trajetos abaixo de 3 km; melhor que a moto média para distâncias menores que 12 km; e de novo sempre melhor que o ônibus.

Se o cara receber um salário de R$ 15.000, a coisa fica assim: bicicleta melhor que carro abaixo de 4 km; scooter sempre melhor que a bicicleta; bicicleta melhor que a moto média apenas abaixo de 1 km; e bicicleta sempre melhor que o ônibus.

Claro que esses resultados são apenas aproximados e que variam caso a caso. No entanto, dá para encontrar alguns padrões. Levando em conta a velocidade efetiva, 1) a bicicleta se torna mais atrativa quanto menor for a distância, 2) a bicicleta vale mais a pena para os que recebem salários mais baixos e 3) é muito difícil bater uma scooter, ou moto de baixa cilindrada, na velocidade efetiva.

O conceito de velocidade efetiva representa tão bem as escolhas feitas por nossa sociedade que parece até que as pessoas a usam inconscientemente. Tempo é dinheiro! Afinal, sabemos muito bem que quem é rico prefere andar de carro, quem tem pressa anda em motos de baixa cilindrada e quem ganha pouco escolhe a bicicleta. E que fique claro e registrado em cartório que eu não sou estou defendendo esse comportamento da sociedade, estou apenas constatando um fato.

A velocidade efetiva pode ser bastante enganosa, pois, como vou discutir no final do texto, os carros só são assim “baratos” porque a maior parte dos seus custos (estacionamento gratuito, exploração do petróleo, perda de tempo em congestionamentos etc etc) não são pagos apenas pelos carangueiros, mas sim divididos por toda a população. Quer dizer, mesmo que você não ande de carro está pagando parte da conta daqueles que andam. Logo, por ser um índice financeiro mascarado de índice físico, a velocidade efetiva acaba carregando junto consigo as sacanagens do nosso sistema econômico – privatização dos lucros e socialização dos custos.

Uma observação muito importante é que usei o meu trajeto para o trabalho como referência. Nele, o trânsito flui relativamente bem e o ônibus é muito ruim. Se usássemos o trânsito de um trajeto mais representativo do Recife, que é parado-quase-andando-para-trás, e se usássemos o sistema de transporte público de uma cidade inteligente (vias exclusivas e horários frequentes), então certamente o ônibus seria a melhor solução em muitos destes cenários. Em outras palavras, o transporte público de massa não é um conceito ruim per si. Muito pelo contrário, o seu problema está na execução – realizada muitas vezes por pessoas de baixo nível moral e intelectual.

Ufa! Finalmente podemos ir ao quarto capítulo do livro City Cycling – Velocidade Efetiva: Pedalando Porque é ‘Mais Rápido’ (Effective Speed: Cycling Because It’s ‘Faster’). O autor do capítulo é Paul Tranter, um professor da Austrália. As primeiras três seções são usadas para definir o conceito de velocidade efetiva, falar sobre a dificuldade que as pessoas têm em compreender que os carros têm custos indiretos altíssimos (uma família pode queimar 25% dos seus rendimentos para sustentar o carro), contar o histórico do uso desse conceito na literatura (com o causo delicioso do Thoreau) e explicar como essas contas todas são feitas. Em outras palavras, o cara mata a cobra e mostra o pau. Só senti falta de uma comparação com outros índices e com as scooters, o que acabou deixando o texto um pouco parcial a favor da bicicleta.

No trabalho, o autor calcula dois tipos de velocidade efetiva. Uma “velocidade efetiva privada”, como a que eu fiz nas seções acima, que leva em conta apenas os custos dos indivíduos; e uma “velocidade efetiva social”, que leva em conta os custos de toda a comunidade, incluindo problemas com a poluição, barulho, congestionamento, emissão de gases de efeito estufa, acidentes e estacionamento subsidiado. Essa é uma discussão interessante, pois, segundo o autor, e eu concordo, a maioria das pessoas não está muito preocupada com esses custos sociais. Os governos, no entanto, deveriam obrigatoriamente levá-los em conta.

O legal do capítulo são os resultados, pois, ao contrário do que eu fiz aqui, o autor foi bem profissional na representatividade dos dados. Por exemplo, ele compara a velocidade efetiva em vários países. Em Camberra (Austrália) a velocidade efetiva dos carros é de 18 km/h, já em Nairóbi (Quênia) pode ser tão baixa quanto 3 km/h. Essa diferença é causada pelo maior salário dos australianos e porque suas ruas são feitas para favorecer o fluxo de automóveis. Londres e Nova Iorque têm velocidades efetivas de 9 km/h.

Quanto aos ciclistas, em Camberra um ciclista teria que andar com velocidade média acima de 21 km/h para ser melhor que um carro. Já em Nairóbi, basta pedalar acima dos 3 km/h para bater os carros. Em Nova Iorque, Tóquio, Toronto, Los Angeles e Hamburgo, um ciclista teria que rodar acima dos 14 km/h para ser melhor que um carro. Aqui no Recife, pelas minhas contas e pelo meu cenário, um ciclista teria que pedalar acima dos 5 km/h para ter velocidade efetiva mais alta que um ônibus; 7 km/h para ter velocidade efetiva maior que a do carro; e acima dos 18 km/h para ser melhor que uma scooter. Lembrando que esses meus resultados são para um trajeto de 5 km e salário de R$ 5.000.

O conceito de velocidade efetiva é interessante para fazer comparações entre os vários veículos. Mas é bom tomar cuidado, pois acaba distorcendo um pouco os resultados, dizendo que os ricos devem andar de carro e os pobres devem andar de bicicleta. Isso acontece não por causa de uma falha no conceito, mas sim porque muitos custos do transporte são “socializados”: produção de petróleo, estacionamento livre, tempo perdido em congestionamentos, gastos com acidentados, mitigação dos efeitos das mudanças climáticas, abertura de novas ruas etc.

Se os motoristas dos automóveis tivessem que pagar pelo que usam, esse veículo ficaria muito menos atrativo. Agora, que governante tem a coragem de colocar pedágios em todas as estradas para que apenas os seus usuários as paguem? Que governante tem a coragem de criar uma taxa para cobrir custos com os efeitos da poluição e dos congestionamentos? Nenhum. Isso porque esses carinhas não têm compromisso com a qualidade de vida das pessoas. Eles têm apenas interesse em se manterem no poder. Quando a qualidade de vida nas cidades influencia o seu projeto de poder, então eles até lidam com isso. Agora, quando os eleitores não dão bola para a qualidade de vida, então os governantes deixam o problema quieto.

Qual é o nosso papel, então, como cidadãos? Nosso papel é dizer nas urnas e nos blogs que não aguentamos mais viver em cidades cheias de carros. Carros que impedem a nossa mobilidade, carros que nos atropelam, carros que nos derrubam das motos e bicicletas, carros que emporcalham tudo, carros que gastam uma parte considerável dos nossos impostos, carros que enfeiam a cidade, e carros que são uma afronta à inteligência de qualquer engenheiro – pois é ridículo uma montadora oferecer um veículo que, embora custe muitos meses de salário, consegue desenvolver apenas 20 km/h em nossas cidades e um veículo que consome 100 vezes mais energia do que deveria. Patético. Patético e irritante. Patético, irritante e criminoso!

Reference: City Cycling (Ed.: Pucher e Buehler, 2012). Contents: 1 Introduction: Cycling for Sustainable Transport; 2 International Overview: Cycling Trends in Western Europe, North America, and Australia; 3 Health Benefits of Cycling; 4 Effective Speed: Cycling Because It’s “Faster”; 5 Developments in Bicycle Equipment and Its Role in Promoting Cycling as a Travel Mode; 6 Bicycling Infrastructure for Mass Cycling: A Transatlantic Comparison; 7 Cycling Safety; 8 Integration of Cycling with Public Transportation; 9 Bikesharing across the Globe; 10 Women and Cycling; 11 Children and Cycling; 12 Cycling in Small Cities; 13 Big City Cycling in Europe, North America, and Australia; 14 Cycling in Megacities: London, Paris, New York, and Tokyo; 15 Promoting Cycling for Daily Travel: Conclusions and Lessons from across the Globe.

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