Um Oficial e Cavalheiro

© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: Um Motoqueiro Existencialista

UM OFICIAL E CAVALHEIRO
Fábio Magnani
[publicado originalmente agosto de 2011]

Tem filmes que são sobre andar de moto, como One Week (2008) ou Girl on a Motorcycle (1968). Outros filmes têm cenas legais de moto, mas só isso, como Terminator (Exterminador do Futuro). Tem também uma categoria que fica aí no meio. Não são filmes exatamente sobre motos. Na realidade, nesses filmes as motos até que aparecem pouco. Mesmo assim, elas são muito importantes para representar a motivação ou a personalidade dos personagens. Acho que o exemplo mais famoso disso é The Great Escape (Fugindo do Inferno, 1963), em que Steve McQueen usa uma moto para fugir da opressão dos alemães. No filme, a moto representa tanto a liberdade literal quanto a individualidade do personagem, já que todos os outros fugitivos escolheram outro meio para a fuga. Além disso, só um pode fugir em uma moto.

Eu queria agora falar um pouco de um dos filmes que estão nessa categoria do meio. É An Officer and a Gentleman (1982). Aqui no Brasil lançaram o filme como A Força do Destino. O título original, que deveria ser traduzido como Um Oficial e Cavalheiro, foi extraído do código de justiça militar americano, que diz que será punido em corte marcial aquele que não apresentar uma conduta “de oficial e de cavalheiro”.

A história é bem simples. O jovem Zack Mayo (Richard Gere) viveu desde a adolescência acompanhando o seu pai ao redor do mundo. Seu pai, que era marinheiro, não lhe dava muita atenção. Então Mayo teve que se virar em um mundo cheio de brigas, enganação e prostituição. Cresceu forte, mas desconfiado de tudo. Quando atingiu a idade certa, decidiu entrar na marinha para ser piloto de jato. Isso se tornou a sua obsessão. Superficialmente, o filme, que se passa quase todo na escola preparatória, é a história de como Mayo enfrenta o seu instrutor na academia e as suas escapadas para encontrar a namorada. Só que, na realidade, o filme discute temas bem mais profundos. Temas que geralmente me fazem pensar.

O primeiro tema é sobre qual o ponto de equilíbrio de uma pessoa na sociedade. Ela deve ser autêntica, deve se conformar às expectativas dos outros em troca de oportunidades ou deve se rebelar contra todas as regras? Responder da boca para fora é fácil: a pessoa tem que ser autêntica. Mas no mundo real isso significa muitas vezes se afastar dos outros, não ser admirado e perder chances. Se rebelar é uma prisão quase igual ao conformismo, só que no sentido contrário. A grande dificuldade de resolver essa questão é que, ao mesmo tempo em que queremos ter a oportunidade de sermos nós mesmos (sermos autênticos), também temos a necessidade de participar de uma comunidade. Parece que essas duas coisas às vezes são antagônicas. Mas daí o filme mostra exatamente o contrário: que é possível ser autêntico e viver em comunidade. O personagem Mayo durante quase todo o filme vive como um rebelde, o que o afasta dos outros. Só quando ele descobre quem realmente é – uma pessoa forte, com princípios e que ama aos outros – é que passa a viver de forma autêntica. Por mais incrível que possa parecer, no exato momento em que ele decide ser autêntico, ele passa a ser aceito na comunidade. Então, pelo menos no filme, autenticidade e vida em comunidade não são contrários. O problema é que às vezes confundimos autêntico com rebelde, ou respeito à comunidade com conformismo. Não precisam sempre ser sinônimos como estamos acostumados. Aliás, lá no fundo não são. Não mesmo.

O outro tema é o amor, coisa que no filme é levado de forma bem complexa. Mayo foi abandonado pelo suicídio da mãe. A garota do filme, Paula Pokrifki (Debra Winger), trabalha em uma fábrica na cidade, junto com várias meninas para as quais o casamento com um dos oficiais da academia é a grande chance de um futuro melhor. Então, pelo menos inicialmente, parece que o romance gira em torno disso: Mayo precisa de uma substituta para a mãe e Paula precisa de um provedor. Mas os dois são personagens complexos e fortes, que lutam contra essa situação e que não querem que o outro seja a sua salvação. Por isso terminam o namoro quando começa a ficar sério. Só no final do filme mesmo é que eles ficam novamente juntos, em uma cena que poderia ser da Cinderela, onde Mayo resgata Paula de dentro de uma indústria que mais parece o purgatório. Essa cena final é de difícil interpretação. Para alguns pode parecer que é uma capitulação dos dois, que buscam a salvação temporária nos braços do outro. Mas outra interpretação possível, que é a que eu mais gosto, é que eles no final conseguiram atingir um estado de amor verdadeiro, onde duas pessoas inteiras resolvem compartilhar a vida. Vendo desse jeito, o amor deles vai se transformando durante o filme, de um simples anestésico para preencher um vazio até atingir um outro nível de existência, só possível quando duas pessoas já saudáveis compartilham a vida.

O terceiro tema do filme é a velha discussão sobre hierarquia, disciplina e autoridade. No filme, Mayo fica o tempo todo brigando com o seu instrutor e contra a estrutura militar. No final ele acaba se conformando com isso. Agora, até que ponto você deve respeitar a hierarquia em prol de um interesse maior? Difícil saber… um tema com que eu me bato de tempos em tempos. De certa forma, acaba voltando um pouco naquele tema anterior sobre autenticidade e comunidade, conformismo e rebeldia. Talvez, se você realmente encontrar o seu eu autêntico, terá a capacidade de diferenciar quando uma hierarquia é benéfica para o coletivo e quando é usada só para o poder dominador.

E a moto, onde entra nessa história? Bem, aparentemente é só um meio de locomoção para Mayo, mas na verdade é usada pelo diretor para representar a sua solidão, a sua integridade e a sua busca por companhia verdadeira. Pode parecer infantilidade dele – provavelmente é – mas Mayo tem a necessidade de expressar a sua individualidade andando sozinho de moto. Devido ao seu abandono no passado, para existir no presente Mayo precisa ser visto como um ser humano único. No caso do filme, ele escolhe andar de moto para gritar isso. Então, a moto tanto serve ao diretor como uma representação de um traço de personalidade do personagem, quanto serve ao próprio personagem para expressar o seu caminho.

Claro que um único filme não pode ser a solução para todas essas questões, mas achei legal a forma não conclusiva e complexa com que ele lida com tudo isso. Para quem não quer ver, é só um filme sobre sentimentalidades, mas acho que vai bem além disso. Eu penso que a maior lição de todo o filme é que você deve se prender à autenticidade, doa o quanto doer, esquecer completamente o passado e seguir adiante, confiante de que vai encontrar outras pessoas autênticas no caminho.

Para terminar, deixa eu falar um pouco sobre a música do filme (Up Where We Belong), que ganhou um monte de prêmios. Da mesma forma como o segundo tema que discutimos, a música fala do amor de uma forma um pouco ambígua. É sobre o amor que vem anestesiar as dores ou é o amor de verdade? Não sei a intenção do compositor, mas quando eu escuto prefiro dessa segunda forma: o amor não como uma salvação, mas sim como a conseqüência natural de se trilhar o caminho certo. Bem, independente da letra, a música é muito legal. É interpretada pelo Joe Cocker, um dos meus cantores preferidos, tanto por causa da voz quanto pelos arranjos que ele escolhe. Gosto muito de várias músicas dele. You Are So Beautiful para aquecer o coração, You Can Leave the Hat On para apimentar a noite, With a Little Help From My Friends para celebrar a amizade, e Summer in the City para lembrar para que serve a noite.

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