Um Dálmata de Vespa


© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: Motoqueiros Famosos

UM DÁLMATA DE VESPA
Fábio Magnani
[publicado originalmente em dezembro de 2012]

Dizem que os humanos se parecem com seus cachorros. Não acredito muito nisso. Mas queria que fosse verdade, já que as duas cachorras com quem vivi tinham grandes qualidades: independência, coragem e inteligência. Não eram daquelas que lambem as suas botas quando você chega em casa. A Diana foi da minha época de criança. Sempre é difícil descrever uma vira-lata, mas, se eu fosse obrigado, diria que ela lembrava uma Fox Paulistinha. Nada a segurava presa, pois era capaz de se equilibrar por mais de 30 metros de um muro alto para fugir de casa. Depois rodava sozinha por toda a cidade e voltava tranquilamente alguns dias depois. A outra cachorrinha, a Kika, eu conheci quando ambos já tínhamos certa idade avançada: eu com mais de 30 anos e ela perto dos 10. A cachorrinha ainda era capaz de saltar sobre os móveis e ficar sobre as duas patas algumas semanas antes de morrer, aos 14. Não era dessas Poodles fru-frus. Usava o pelo bem curto, das orelhas ao rabo. Afinal, ela queria ser admirada pela inteligência, não pelo seu corpinho.

Sim, mas o que essas cachorras estão fazendo em um blog de motoqueirismo? O que cães têm a ver com motos? Tudo. Todo mundo sabe que os cachorros adoram andar com a cabeça para fora da janela do carro. Não sei bem o porquê, só tenho certeza que gostam. Aliás, esse é um mistério só menos indecifrável do que a razão pela qual os cachorros gostam tanto de correr atrás de rodas. Só sei que, já que eles gostam de andar na janelinha do carro, muito provavelmente gostam muito mais de andar de moto.

Toda vez que vejo um cachorro levando seu humano para passear de moto eu me encho de admiração, inveja da boa e fé na animalidade – racional e irracional. Já encontrei essas amizades nos lugares mais diferentes. Quando eu pegava ônibus pela manhã na movimentadíssima e caótica Barão de Souza Leão, sempre passava um velhinho na sua mobilete, com o seu cachorrinho se equilibrando com as patas traseiras no quadro e as dianteiras no guidão. Era a minha inspiração para o dia.

Também sempre vejo esses motodogs no interior, como uma vez em Belo Jardim quando encontramos a cachorrinha Babi viajando em sua moto. O lugar mais distante foi em Ituzaingó, no interior da Argentina, onde uma vez ficamos ilhados à espera de combustível. No posto de gasolina, também esperando, estava uma cachorrinha e seu casal de bípedes sem pelos, rodando em uma cinquentinha carregada até a tampa de bagagem. A viagem perfeita.

Outra imagem que sempre me chama muito a atenção na estrada são as Vespas. Sei que do ponto de vista técnico eu deveria desprezá-las, com aquelas rodas pequenas, totalmente inapropriadas para as nossas vias. Mas a verdade é que as Vespas provocam a irracionalidade. Elas sempre me fazem apaixonado novamente. Deve ser o sangue italiano.

As Vespas nasceram na Itália logo depois da Segunda Guerra Mundial. Com a sua planta aeronáutica bombardeada, a Piaggio tinha que mudar de ramo. Uma opção era apostar na produção de carros, mas as estradas estavam completamente destruídas e os consumidores estavam sem dinheiro para artigos luxuosos. Mas os carros não eram a única opção de mobilidade. Na época havia muitas scooters Cushman trazidas pelos americanos, que provavam a utilidade das pequenas motos naquele ambiente.

Para o design, Piaggio convidou o grande Corradino D’Ascanio, que tinha projetado o primeiro helicóptero produzido em escala, para a Agusta. O problema é que D’Ascanio odiava as motos: eram volumosas, sujas e não confiáveis. Ele faria o projeto, mas seria algo completamente diferente do que tudo jamais visto. Nascia a Vespa.

Um pouco depois disso, na década de 50, os motoqueiros deixavam de ser vistos apenas como malucos amantes de graxa e velocidade. Principalmente por causa do filme The Wild One, com Marlo Brando, os grupos de motoqueiros eram agora imaginados como hordas de bárbaros que chegavam às cidades para quebrar tudo, matar as crianças e violentar as donzelas.

Mas a Vespa, além de ter um design surpreendente, também tinha um significado diferente. Com uma grande promoção em Hollywood (e.g. o filme Roman Holiday, estrelado por Gregory Peck e Audrey Hepburn), as Vespas se descolaram da imagem dos motoclubes. Funcionou. Até hoje, quando vemos uma Vespa, pensamos em mulheres independentes, sábios distraídos e casais de namorados.

Tenho vários livros sobre Vespas. Até escrevi dois textos que estão entre os meus preferidos. Um deles foi em comemoração ao meu ducentésimo livro de moto, onde falo sobre a Itália, Vespas, livros, filmes, música e Sophia Loren. O outro texto foi sobre o livro Vroom With a View, que uso para ilustrar o momento em minha vida de motoqueiro em que aprendi que

“(…) hoje em dia eu não preciso mais cruzar um estado para provar que sou livre, não preciso mais sair do país em busca da aventura ou rodar 300 km antes do café da manhã para saciar minha fome de viver. Não preciso nem ir para a Itália, embora fosse bom. Para me sentir aventureiro, livre e saciado, basta sair de casa de manhã, ligar o motor da minha moto, dobrar a esquina e me dedicar a ver algum detalhe novo no mundo. Sem pressa. (…)”.

Todas essas lembranças me ocorreram ao ler o livro Spotted in France: A Dog’s Life…On the Road (Gregory Edmont, 2003) que fala (surpresa!) sobre cachorros e Vespas. É a história da viagem de 900km que Greg e JP fizeram entre Paris e a Provença (La Garde-Freinet). Pena que não é na Itália, é na França, mas tudo bem.

JP não é bem o nome do cachorro. É o apelido dele. O nome completo do dálmata é Jarny-Prince du Bois-de-Tanagra, filho de Prince des Coeurs du Bois-de-Tanagra e Charmeuse du Domaine Clix. Très chic.

Já Greg, o humano, não tinha nada de chic. O jovem era um americano simples que foi para a França tentar uma pós-graduação. Não deu certo. Sem trabalho, sem escola e sem qualquer outro plano de ação, Greg resolveu ficar uns tempos perambulando por Paris antes de voltar para Nova Iorque. O problema é que, se em geral os nativos de um lugar não gostam de forasteiros, os parisienses gostam muito menos ainda de americanos. Greg se sentia completamente isolado. Um típico déraciné.

Embora deslocado, o americano Greg aprendeu alguns pontos do que é “ser francês”: saber quando não rir e quando rir (raramente), como não fazer e como fazer compras (um pequenino pedaço de queijo a cada viagem ao mercado do bairro), onde comer e onde não comer (nunca comer em lugares famosos) e, acima de tudo, que para parecer um francês de verdade você tem que fazer tudo com um cachorro ao seu lado.

E, assim que conseguiu adotar JP, Greg viu que aquilo era a mais pura e simples verdade. O cachorro se transformou em um passaporte para cafés, bares e restaurantes. Mesmo no interior da França, onde até os parisienses não são bem aceitos, JP abria as portas para Greg.

Tudo isso é contado na introdução do livro. A história mesmo se passa em dois momentos. A primeira metade na estrada, onde Greg e JP vivem suas aventuras, conhecem gente interessante e passam a compreender melhor o valor dos franceses. A segunda parte do livro conta a estada em La Garde-Freinet, lugar em que JP vive suas desventuras amorosas, até cair nas patas do grande amor de sua vida. Leitura leve e muito bem-humorada. Muito bom para ler nas férias. Recomendo.

Agora, para saber mais sobre a viagem e sobre o romance, só lendo o livro. O que posso adiantar é que esse é um daqueles livros tradicionais sobre Vespas, onde a parte boa da viagem não está na estrada, mas nas paradas. Pois, como já dizia o sábio: a viagem real não está no que foi planejado, pois isso já foi viajado anteriormente em sua mente; a viagem de verdade está nos imprevistos.

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