© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: Motocicletas de Mármore
Fábio Magnani
[publicado originalmente em março de 2021]
Engenharia Mecânica
Em 1986 eu ainda morava em uma cidadezinha no interior de São Paulo, tão longe da capital que talvez fosse até mais fácil falar que era no Mato Grosso. Não fazia a menor idéia do que era uma universidade, muito menos o que fazia um engenheiro mecânico. Na escola, eu gostava só de física, história e matemática, o que não podia ser diferente, já que eu faltava nas outras matérias para pegar a estrada com a minha Monark 10. Morávamos a 700 km da praia mais próxima, que era Santos. Camboriú ficava a 1000 km, não muito mais longe, por isso era o lugar da moda para as férias de verão da classe média – tanto da classe média média que ia todo ano quanto da classe média baixa como nós que ia uma vez na vida e outra na morte. Penso que todo mundo na minha cidade via aquela praia como a terra prometida. Florianópolis, que ninguém dava bola, ficava uns 100 km depois.
Nessa época, aos 17 anos, estávamos eu e um amigo olhando para um mural no colégio. Havia um monte de cartões pregados, cada um com uma universidade brasileira oferecendo seus cursos. Nós dois gostávamos era de computação, mas, por alguma razão que parecia fazer muito sentido na época, concordamos que não poderíamos fazer o mesmo curso. Meio arbitrariamente, entre as engenharias porque tinha física e matemática, eu escolhi a mecânica e meu colega ficou com a elétrica. Agora faltava o lugar. Florianópolis, né? Pertinho do paraíso da classe média baixa.
Só depois que passei no vestibular é que descobri que o curso de engenharia mecânica da UFSC era o melhor do Brasil. Vá ter sorte assim lá no primeiro círculo do inferno. Pelo mais puro acaso eu havia feito a escolha por um curso que aprenderia a gostar, ia morar em uma cidade muito mais legal que Camboriú, e ainda estudaria no melhor departamento do país.
Mas estou me adiantando, pois no começo do curso ainda não sabia muito bem o que eu ia fazer por lá. Nos primeiros dias de aula apareceu um professor para falar da área de Ciências Térmicas, que lá na UFSC reunia Termodinâmica, Fenômenos de Transporte e Sistemas Térmicos. Eu fiquei apaixonado. De uma hora para outra me transformei em um garoto que não sabia o que fazia na graduação em alguém que já sabia que ia fazer o doutorado. Dito e feito, nove anos depois de entrar na universidade, agora já com 26 anos de idade, eu defendi a minha tese. Exatamente como eu havia escolhido naquela aula no início do curso.
Interessante como pequenas escolhas, como definir um curso por causa de um papel pregado no mural, ou escolher uma carreira acadêmica por causa de uma única apresentação, podem determinar completamente a vida de alguém. Já pensou se tivessem mandado outro professor na aula? Ou se não tivessem pregado o papel da UFSC no mural? Depois eu viria para Pernambuco de uma forma parecida, por causa da música do Chico Science, mas isso é outra história.
Dentro dessa tal área eu já trabalhei em várias subáreas: Refrigeração, Meios Porosos, Termodinâmica, Otimização de Sistemas Térmicos e Transferência de Calor. Legal, mas tenho uma certa frustração por não ter trabalhado mais profundamente em outras: Energia Solar, Energia Eólica, Combustão e Turbulência. Paciência. Eu sei que não é por incompetência, mas simplesmente porque ninguém pode estudar minimamente bem todas as coisas do mundo.
Turbulência
Mesmo não trabalhando nessas subáreas, fiz um monte de disciplinas e continuo meus estudos solitários sempre que posso. Também gosto de ler livros de divulgação científica ou de ficção que tratem desses assuntos. Outro dia descobri um livro de 2010 chamado Turbulence (Turbulência), escrito por Giles Foden. Estava na lista do John Mullan (The Guardian) sobre livros bons que por acaso tinham motos no meio.
A história se passa em 1944, alguns meses antes da invasão dos aliados na Normandia. O famoso Dia D, que na época era conhecido como Operação Netuno. Por razões táticas, a invasão tinha que ser em lua cheia (para permitir visibilidade para as aeronaves), maré baixa (para que pudessem fugir das minas) e tempo bom (para facilitar o desembarque). Esse momento certo tinha que ser escolhido vários dias antes, para dar tempo para o deslocamento de quase 200.000 soldados. Para se ter uma ideia, usaram cerca de 5.000 navios. O problema era que até hoje não se consegue fazer uma previsão do tempo (no sentido climático, das condições atmosféricas) com muita antecedência, imagine naquela época em que não havia computadores para fazer os cálculos.
O cientista Wallace Ryman (personagem fictício baseado em Lewis Fry Richardson) tinha desenvolvido um método para previsão do tempo com um maior tempo de antecedência. Era isso que os aliados precisavam. O problema é que o cientista tinha se transformado em pacifista depois de ter vivido os horrores da Primeira Guerra Mundial. Depois daquilo, seu conhecimento era usado apenas para tentar entender porque as guerras começavam e o que fazer para evitá-las. Os militares então enviaram o jovem matemático Henry Meadows para tentar extrair alguma informação do velho cientista que vivia recluso em uma fazenda na Escócia.
A primeira metade do livro ocorre em Dunoon (Escócia), contando como Henry se aproximou de Ryman. Ali eles discutiram os efeitos da turbulência no tempo, como fazer medições no vento, como administrar um computador constituído de 5.000 homens fazendo contas, quais eram os limites da ciência e principalmente qual era a responsabilidade dos cientistas.
O exército havia deixado uma moto para Henry. Enquanto ele não conseguia tirar de Ryman as informações sobre o seu modelo de previsão do tempo, Henry circulava de moto pela região, conhecendo outros cientistas geniais, mulheres fatais e militares pragmáticos. Um pouco antes de Ryman morrer em um acidente, ele deixa algumas pistas para o jovem amigo motoqueiro.
Henry então volta para a Inglaterra, integrando agora um grupo de metereologistas responsáveis pela previsão do tempo. Essa segunda parte do livro também é bem legal, pois mostra um embate científico colossal. Cada um defendia uma abordagem: uso de dados históricos, cálculos teóricos ou confiança na experiência pessoal. Todas as reuniões eram cheias de conflitos e de discórdia.
A próxima janela (conjunção de lua cheia e de maré baixa) seria no dia 6 de junho, uma terça-feira. No domingo anterior, de repente, todos os cientistas resolveram concordar. O problema é que concordaram que o dia escolhido seria de mau tempo. Isso era ruim, porque os alemães já tinham percebido que as tropas aliadas estavam se deslocando. Se houvesse um adiamento, os alemães poderiam se preparar melhor.
Mas daí o jovem Henry conseguiu finalmente decifrar as pistas de Ryman. Depois de uma noite de intenso trabalho, calculou que haveria algumas horas de estabilidade na manhã da terça-feira. Exatamente o que eles precisavam. O resto é história, com os aliados desembarcando em relativa segurança, libertando a França e acabando com os nazistas.
A Moto e o Tempo
A moto aparece em toda a primeira parte do livro, quando Henry, um motoqueiro inexperiente, perambulava pelas trilhas de Dunoon em busca de conhecimento, amigos e romance. O autor usou a moto para criar um personagem solitário, que ainda não tinha um andar firme, mas que também não tinha medo de buscar caminhos alternativos para a sua vida. As mudanças no tempo também são muito usadas no livro, para demonstrar a incapacidade humana de prever e controlar o destino.
Para quem não anda de moto, pode parecer que um dos maiores inconvenientes é o tempo. Por isso eles andam protegidos em carros quase blindados para não ficarem suados com o sol, molhados com a chuva ou sujos com as lufadas de vento. É como se tivessem aversão a qualquer efeito da natureza, como se tivessem aversão às vicissitudes da vida. Tudo tem que ser limpinho, protegido, controlado, ordenado, previsível, seguro e silencioso. Parece até que o sonho deles é viver dentro de um hospital.
Quem anda de moto aprende que não pode controlar o tempo, que não pode lutar contra a natureza, contra o trânsito e contra a vida. Quem anda de moto aprende a andar pelos atalhos, a costurar nos congestionamentos, a saudar o sol queimando na sua pele e a receber a chuva de presente.
Pode apostar que um motoqueiro só não gosta dos elementos quando está indo para o encontro de alguém que não anda de moto: sua namorada que não suporta ser lembrada que seres humanos suam ou seu patrão que não aceita que alguém ande molhado.
Agora, se o motoqueiro não têm compromisso com o mundo dos quadrúpedes, então pode ter certeza que ele recebe de peito aberto a chuva que limpa, o sol que aquece na medida certa e o vento que refresca à perfeição. De bônus, vêm ainda o cheiro das flores, o canto dos passarinhos e um caldo de cana gelado na próxima parada.