Tristeza e Redenção

© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: Um Motoqueiro Existencialista

TRISTEZA E REDENÇÃO
Fábio Magnani
[publicado originalmente em março de 2017]

Hoje recebi pelo correio um livro bem especial. Too Far Gone (2016) foi criado pelo fotógrafo Todd Blubaugh para contar sua viagem de moto por seis meses cruzando os Estados Unidos.

A ideia era sair do trabalho para fotografar o país em busca da chama artística que talvez tivesse se apagado. Só que, uma semana antes dele largar o emprego para pegar a estrada, recebeu um telefonema avisando que seus pais tinham morrido em um acidente. Arrumou o velório, passou uns dias deitado na cama sem querer se levantar, mas com a ajuda dos amigos resolveu fazer a viagem de moto mesmo assim.

A viagem deixou de ser uma questão artística e passou a ser uma questão de vida.

Uma tragédia é algo muito maior do que a gente, é como se fosse comandada pelo próprio universo, algo que não podemos compreender direito as causas, muito menos controlar. A morte de alguém da família, uma pessoa que deixou de te amar, a doença incurável de um amigo, a perda do trabalho que definia a sua identidade.

Quando acontece uma tragédia, tem gente que busca a ajuda dos outros, a conversa telefônica com um amigo enquanto os dois tomam cerveja, uma velha amiga para fazer um bolinho de chuva, aquela companhia para o cinema, uma música que parece ter sido feita especialmente para a sua situação, um livro que distrai.

Outras pessoas aprendem a se cuidar sozinhas, lavam suas roupas, colocam um band-aid no dedo machucado, põem um chá para esquentar, se oferecem um refri para adoçar a boca, se cobrem na cama com carinho, colocam uma música confortante no som. Todos atos singelos que significam que estão cuidando de si mesmas.

Tem até gente que sabe tanto pedir ajuda quanto se cuidar sozinha.

Tem gente que sai de moto para uma viagem, tem gente que se atira em um projeto cultural. Tem gente de todo tipo. Cada um com seu jeito de superar a tragédia.

Um pouquinho antes do último natal, eu publiquei o texto Viagens Tristes, sobre como as viagens de moto podem servir como cura para uma tragédia. Não pelo esquecimento. Muito pelo contrário, uma viagem de moto, assim como uma obra artística, primeiro te faz entrar em contato com a própria dor. Porque só depois disso é que você estará preparado para seguir em frente.

É preciso saber curtir o seu luto, se não ele nunca vai te abandonar. É preciso saber a hora de chorar, de quebrar tudo, de ficar quieto, de pegar a moto, de se enfiar no trabalho, de se cuidar, de relaxar, e de pedir ajuda. Só depois do luto bem vivido é que a vida volta a dar o ar da sua graça. E que graça.

Uma música que eu acho muito forte, porque de certa forma cria a atmosfera instantes antes da tragédia, é Let’s Face the Music and Dance, que já foi gravada por um monte de gente, mas que gosto mesmo é com o Renato Russo. Na letra, ele diz que muita coisa difícil pode acontecer logo ali no futuro, e por isso é importante aproveitar o presente, encarar a música e dançar.

Pode haver sofrimento à frente, pode ser que fiquemos sem a lua, que cantarolemos uma outra melodia, que haja lágrimas para verter. Então, antes que os violinistas partam, antes que nos peçam para pagar a conta, enquanto ainda temos a chance, enquanto ainda há luar e música e amor e romance, vamos encarar a música e dançar, vamos encarar a música e dançar.

Talvez a música mais triste do mundo seja uma dos Engenheiros do Hawaii, Simples de Coração. A segunda estrofe me causa arrepios de solidão todas as vezes que escuto. “Casa vazia, luzes acesas, só pra dar a impressão. Cores e vozes, conversa animada, é só a televisão”. Será que existe algo mais triste que ligar as luzes e a televisão só para disfarçar a solidão? A música enfia a faca no peito só para então, na próxima estrofe, se transformar na mais redentora das mensagens. “Já perdemos muito tempo brincando de perfeição. Esquecemos o que somos: simples de coração”. Provavelmente essa música foi composta pensando em um relacionamento amoroso, mas para mim significa o relacionamento de uma pessoa com o seu próprio espírito. Primeiro aqueles momentos em que se sente sozinha, abandonada por si mesma, e depois a plenitude que essa pessoa sente quando se lembra que o caminho a seguir é aquele que nos leva de volta a nós mesmos. Fico com essa impressão porque uma parte da letra diz “Volta prá casa, me traz na bagagem”. Esse “me traz” é que me faz imaginar que ele está cantando para si mesmo, para o seu espírito que havia deixado a casa vazia.

Outro dia alguém postou um texto que tem mais ou menos essa intenção: “Há de chegar a hora em que com alegria você vai se cumprimentar ao chegar à porta de casa, em seu próprio espelho, e cada um sorrirá diante da acolhida do outro, e dirá, sente-se aqui. Coma. Você amará de novo o estranho que era si mesmo. Dê vinho. Dê pão. Devolva seu coração a ele mesmo, ao estranho que amou você desde que você nasceu, que você ignorou por outro; que o conhece de cor. Tire as cartas de amor da estante, as fotografias, os bilhetes desesperados, tire sua própria imagem do espelho. Sente-se. Celebre sua Vida.” Parece que é de Derek Walcott, um ganhador do Prêmio Nobel de Literatura.

Voltando ao livro de moto que chegou hoje, Too Far Gone, dá para antever que a história é bem profunda. Para intensificar a experiência mais ainda, a própria forma do livro ajuda bastante a entrar na atmosfera. Além das dezenas e dezenas de fotos artísticas, tem cartas pessoais escritas à mão, recortes de jornais que vêm colados nas páginas, um desenho que a mãe havia feito, um bilhete que o pai havia escrito, um monte de textos filosóficos, partes da viagem feitas em solitude, trechos feitos com amigos, encontros, desencontros, reencontros, tristeza e redenção.

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