Livro: Bicicletas em Equilíbrio
Fábio Magnani
[publicado originalmente em janeiro de 2013]
O título do livro da Bella Bathurst não podia ser menos criativo: The Bicycle Book (“O Livro da Bicicleta”). Acho que comprei na época só porque estava interessado em fazer uma mini-coleção de livros com títulos iguais. Assim que a encomenda chegou, há seis meses atrás, coloquei o livro em seu lugar de honra, onde podia desempenhar plenamente a sua função neste mundo: expor a sua lombada ao lado dos seus irmãos homônimos. Quietinho.
Acontece que eu nunca saio sem um livro em minhas mãos. Vai que a reunião demora para começar, o pneu da moto fura, a fila da lanchonete está muito grande ou há mais uma daquelas palestras de alguém de alto cargo que tenta me convencer que o futuro do estado é a produção de carros, petróleo e viadutos. Para esses momentos inglórios, eu antes de sair sempre escolho um livro da minha estante, apenas com a intenção de dar uma folheada enquanto o mundo se encarrega de dissipar da minha visão esses eventos irrelevantes. E foi em uma dessas ocasiões em que saí correndo da minha sala que peguei esse tal livro que havia comprado só pelo título. Que bela surpresa.
The Bicycle Book (Bella Bathurst, 2011) é um livro diferente por várias razões. Primeiro, Bella Bathurst é uma escritora, não é uma especialista em bicicletas. Por isso sua primeira intenção não é vomitar informações fáceis, mas sim criar um mundo literário onde o leitor sente as mesmas emoções que sentiria se (1) estivesse presente nas ocasiões descritas e se (2) tivesse a mesma inteligência da autora para perceber o mundo ao seu redor. Pois não basta estar em um lugar para vivê-lo plenamente. Isso porque a vida de verdade, queiram ou não, só existe dentro de nossa mente. Para alimentar essa doce ilusão precisamos ter contato com o mundo real, o que nos traz os imprevistos e a riqueza de detalhes. Mas também precisamos de guias sábios, que nos ensinem a absorver o que o mundo tem de real valor. Por isso devemos viajar. Por isso devemos ler.
O segundo aspecto que distingue o livro é que ele não nos poupa da verdade. Por exemplo, quando descreve o papel do ânus dos ciclistas profissionais nas táticas para se livrarem do antidoping, quando explicita que alguns ciclistas usam a bicicleta como remédio para algum tipo de neurose ou ainda quando entrevista cientistas que comprovam que o ciclismo tem sim certos malefícios para a saúde.
O terceiro ponto especial do livro é o seu caráter fragmentado, sem a intenção de ser uma grande enciclopédia. Os capítulos individuais são como pinceladas, que formam um quadro único quando vistas como um todo. É uma sensação deliciosa. Você vai lendo os capítulos sem aparente conexão. Ao final do livro você percebe que adquiriu uma visão integradora do bicicletismo – uma visão construída pelas emoções, não pelas informações ou por uma narrativa estruturadora.
Não me sinto à vontade para falar sobre o quarto aspecto que faz este livro diferente. Odeio quando alguém carimba uma obra como “feita por um homem” ou “feita por uma mulher”. O gênero do artista não é importante, a obra é que é. Mas neste caso sou obrigado a me render a essa visão retrógrada. Parece sim que há uma visão feminina neste livro, que o faz diferente dos outros. Isso fica bem claro quando ela fala sobre as brigas de trânsito sem sentido, sobre a necessidade que alguns ciclistas têm de “realizar algo” durante as suas férias e principalmente na vida dos atletas profissionais. Se bem que posso estar errado. De repente a visão de Bella Bathurst seja na verdade completa, mas pareça ser apenas feminina por ser diferente dos textos machistas que comumente encontramos por aí. É isso! Retiro o carimbo “feito por uma mulher”. O certo é “feito por uma pessoa inteligente”.
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O livro tem cerca de 300 páginas, com uma bibliografia bem útil no final. Quero deixar bem claro que, a partir de agora, passo a fazer uma apresentação de cada um dos capítulos. Então, se você não quiser perder a surpresa, pode pular para a última seção. Mas não vejo problema nenhum em saber do assunto de cada capítulo, pois o livro é tão rico em detalhes, opiniões e emoções, que este post não chega nem perto de ameaçar o prazer que o leitor terá em vivê-lo.
Framebuilding. O primeiro capítulo foi o que mais me causou inveja de Bella Bathurst. Ela foi até Lincolnshire para fazer um curso de uma semana com Dave Yates, o famoso construtor de quadros. Para se ter uma ideia, a lista de espera para esse curso é de dois anos. Aqui ela fala tanto do processo de construção, como do tipo de gente que passa por ali, e também da importância de saber para o que a bicicleta vai ser usada. Mas, principalmente, ela falar sobre o uso do amor para a transmutação dos materiais.
You Say You Want a Revolution. O segundo capítulo quase me fez desistir do livro. Conta a história da bicicleta, legal, mas com informações encontradas em outros lugares e com algumas imprecisões. Mas mesmo assim dá para pinçar algumas discussões legais, como o clube/jornal National Clarion Cycling Club que usava o ciclismo para promover o socialismo. Também há uma crítica interessante sobre o preconceito racial no final do século XIX.
Feral Cycling and the Serious Men. Depois o livro passa a discutir o bicicletismo urbano, com os acidentes reais, as brigas evitáveis e os jovens burgueses que usam a “luta pelo ciclismo” como motivo para poderem dar piti em público. A coragem da autora aqui é defender que é impossível tratar todos os ciclistas como uma única entidade homogênea. Há muitos interesses diferentes, desde aqueles que querem uma vida urbana mais saudável até os que usam esse movimento para promoção política.
The Great Wheel. Nesse capítulo Bella Bathurst vai até a Índia. É o meu preferido, pois traz um ambiente desconhecido para mim, recriando o mundo dos rickshaws – que são aqueles triciclos que levam passageiros. Além de ser uma curiosidade cultural, há aspectos importantes desse meio de transporte da Índia. Embora eles estejam vivendo um grande crescimento econômico por lá, o que permite que muita gente troque sua bicicleta por um automóvel, as cidades simplesmente não suportam mais veículos. Por isso as bicicletas continuam sendo o único meio viável de transporte no centro das grandes cidades, que agora estão completamente congestionadas. Parece com Recife…
Watercycling to France começa com Zetta Hills, uma ciclista francesa que usava uma bicicleta sobre cascos flutuantes para bater recordes de travessias aquáticas. Mas o tema principal do capítulo é a história da liberação feminina, que teve grande contribuição das bicicletas. Talvez seja a informação mais relevante de todo o livro, mas é uma discussão que se encontra em vários outros livros, por isso achei um pouco cansativo.
The Worst Journey in the World é o capítulo mais pesado. Fala sobre corridas profissionais. Mas não sobre o lado glamoroso. Há toda uma indústria perversa por trás disso, que tira jovens de suas escolas e famílias, que força homens a usarem doping e que cria uma estrutura de “corredores ajudantes” que jamais alcançarão a glória. Ao ler este capítulo, você vai admirar muito mais esses ciclistas profissionais, que literalmente destroem as suas vidas por causa de um sonho. E você vai desprezar os eventos esportivos, que na verdade nada mais são do que máquinas de moer carne humana. Máquinas mantidas para vender revistas, bicicletas e documentários. Triste que muitos “jornalistas” do mundo todo compactuem com esse crime ao mostrarem apenas o lado festivo.
The Silent Black Line continua de certa forma o capítulo anterior, discutindo trabalhos acadêmicos que estudaram o lado negativo do ciclismo: impotência, mudanças fisiológicas, deterioração do corpo e pressão psicológica com efeitos para toda a vida. Nem tudo é perfeito no bicicletismo.
The Burning Man vem com uma entrevista com Graeme Obree, a lenda que desafiou a UCI. Obree fabricava suas próprias bicicletas, inventada novas posições de ciclismo e criava toda uma motivação para bater recordes nas pistas. Mas este nosso mundo não gosta de indivíduos que desafiam a ordem vigente. Obree foi devidamente expurgado das competições, mas de uma forma tão sutil que ele demorou doze anos para perceber. É um capítulo sobre coragem, honra e grandeza. Afinal, é disso que são feitas as lendas.
Bad Teeth No Bar conta a pequena contribuição das bicicletas durante as guerras. Embora tenham tentado, de tempos em tempos, produzir bicicletas para combate, a função principal das magrelas sempre foi a de levar e trazer mensagens. Também achei esse capítulo um pouco cansativo.
Axles of Evil mostra a cena dos mensageiros de bicicleta na Inglaterra. Hoje em dia eles são em número reduzidíssimo, pois os faxes, motos e emails diminuíram muito a necessidade por este tipo de serviço. Na verdade, hoje eles são muito mais um ícone cultural, consumido pelos burgueses de classe média que idolatram as fixas (fake messenger: fakessenger – mensageiro de enganação). Mesmo assim, Bella Bathurst conseguiu falar com um grupo de originais, que contam sobre a vida grandiosa nos anos 80.
Knobbled é sobre as mountain bikes, as bicicletas da moda de nossos tempos. Mas aqui, ao invés de falar sobre o cidadão comum que usa sua bicicleta para um pouco de esporte no final de semana, ou então sobre a história da sua criação, Bella preferiu entrevistar alguns atletas campeões.
Conclusion – Love and Souplesse. A conclusão do livro não tenta – ainda bem – achar um sentido em tudo isso. Afinal, a intenção do livro sempre foi mostrar a riqueza deste mundo, e não fazer um pobre resumo de poucas páginas. Para terminar, entre outros assuntos, Bella Bathurst escolheu contar a vida de alguns acidentados que, depois de uma recuperação penosa, voltaram a pedalar. É um capítulo difícil de explicar. Não é um alerta sobre os perigos da bicicleta. Também não é um daqueles textos de auto-ajuda onde é possível vencer qualquer desafio. Acho que essa conclusão tenta falar de algo mais profundo, sobre uma ligação direta que temos com a bicicleta, algo que não podemos compreender. Algo que não podemos evitar.
Recomendo a leitura deste livro – muito. Não é daqueles livros que falam exatamente o que você queria ouvir. Também não é um livro definitivo. Ao ler este livro, muitas vezes fiquei bravo com a irrelevância do que estava escrito, ou então com a idiotice das opiniões defendidas. Mas bastavam alguns parágrafos para que eu percebesse que eu estava na realidade aprendendo sobre novos mundos, sobre novos argumentos e sobre novas formas de ver as coisas. O processo do real aprendizado nunca é fácil, pois tira o chão debaixo dos seus pés. Mas a ideia não é tirar o chão para fazer você cair. A ideia é fazer você voar.