Navegando Pelas Ruas, Imagens e Palavras

© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: Conversas Técnicas Sobre Motos

NAVEGANDO PELAS RUAS, IMAGENS E PALAVRAS
Fábio Magnani
[publicado originalmente em setembro de 2013]

Com o passar dos anos, a equipe do jornal EQUILÍBRIO EM DUAS RODAS já testou várias tecnologias acessórias. Algumas funcionaram bem, como canetas, blocos, livros, celulares e câmeras digitais. Já as filmadoras, os navegadores de tráfego, os géis anti-furo, os protetores de pescoço e mais uma carrada de geringonças demonstraram ser as mais completas furadas. Em geral, essas tecnologias são apenas quinquilharias que somos convencidos a comprar pelas propagandas geniais das empresas. Burros que somos, sempre deixamos a esperança triunfar sobre a experiência, comprando mais uma tranqueira. A novidade agora aqui na redação é um tal de telefone esperto, que seria capaz de juntar várias tecnologias em uma só – um negócio tecnochique conhecido como convergência tecnológica. O que mais nos chamou a atenção foi a sua teórica capacidade de integrar de forma funcional uma câmera digital a um telefone celular, o que ajudaria bastante em nossas reportagens investigativas. O fato é que, depois de uma forte campanha interna, conseguimos convencer a Fundação Fábio Magnani a liberar uma verba para comprar o tal telefone esperto no crediário. Como uma das vantagens que vendemos aos diretores foi uma maior produtividade na geração de novos textos, segue uma análise sobre o seu potencial, tanto para tirar fotos quanto para navegar pelas ruas caóticas das cidades.

Textos Frios

A produção de um texto aqui no EQUILÍBRIO EM DUAS RODAS é um processo lento, rígido e solitário. Cada texto tem que passar pelo desenvolvimento da ideia, pela vivência de experiências específicas, pelo estudo acadêmico do assunto, pela coleta de referências, vídeos e imagens, e pela escrita propriamente dita – a qual por sua vez tem suas várias etapas. Claro que não necessariamente tudo ocorre nessa ordem, pois muitas vezes a ideia para um texto nasce da vivência ou do estudo. Por exemplo, a ideia deste texto daqui nasceu da experimentação com o navegador do meu novo celular e de conversas com colegas. Não precisei estudar muita coisa, pois já havia me interessado por esses navegadores há alguns anos atrás – mas ao menos tive que reler o que havia escrito. Depois coletei um monte de fotos dos equipamentos que eu usava nas viagens, e também alguns relatórios sobre modos de transporte; material esse que nem entrou no texto final. Acho que só uns 10% de tudo que é pensado, coletado e escrito é publicado. Isso que dá trabalhar com gente autoritária.

Se isso já não fosse chato, o fato é que boa parte desses textos levam vários meses desde a concepção até o polimento. E, como demoram muito, acabo trabalhando em vários deles ao mesmo tempo. Como na semana passada, em que estive envolvido em vários assuntos diferentes: apareceu a ideia para um texto sobre as palestras dos estudantes de Estudos Sobre Bicicletas e Motocicletas; vivenciei mais uma maratona motoqueirística pelas oficinas para consertar a minha moto; estudei a sociologia da mobilidade; coletei informações na internet sobre as cadeiras de roda robóticas; e escrevi o texto sobre a exposição dos motoboys no MASP. Acho que tenho uns 50 textos encaminhados, cada um em um estágio diferente.

Claro que tenho orgulho de publicar textos relativamente maduros aqui no jornal, mas nem sempre quero esperar que tudo fique pronto para poder postar. Pois, além de publicar aqui no jornal, também gosto de dar opiniões rápidas sobre notícias – sem ter que pensar muito -, ou até mesmo de compartilhar uma notícia sem fazer qualquer comentário. Gosto de divulgar o trabalho dos outros, apresentar algumas curiosidades do que venho estudando, e também de registrar o dia a dia. Por exemplo, hoje de manhã, antes de pegar no selviço, me deparei com uma visão engraçada: uma bicicleta sozinha ocupando o espaço que daria para quatro motos.

Só que o conselho editorial dessa bimboca não deixa publicar essas “informações soltas”. Até posso usar informações do dia a dia, ou de notícias de jornal, mas preciso esperar até que sejam relevantes a algum texto maduro. Uma forma de resolver isso foi a criação da fanpage Motomagnani no facebook, onde publico as informações mais curiosas e as opiniões mais polêmicas – de forma completamente leviana e inconsequente. As outras notícias, mais sérias, ficam sem comentários nas páginas de notícias, de vídeos, ou de estudos – aqui do jornal mesmo. Existe até uma conta no twitter, mas nunca consegui usar a contento.

Textos Quentes

Então, temos um lugar para textos maduros aqui no jornal e outro local para divulgar rapidamente o material dos outros na fanpage. Faltava apenas um lugar para registrar o dia a dia. Pensei em duas opções: esperar que aquelas informações pudessem ser inseridas em um texto amadurecido, como no caso das Lanças Empaladoras de Veículos, ou então publicar no meio da fanpage, junto com as notícias.

O problema com esperar para publicar no jornal é que às vezes não consigo encaixar o registro em algum texto que esteja escrevendo, ou então demora tanto que até perde a graça, ou ainda a imagem é publicada fora do seu contexto original, abafando assim boa parte do seu frescor. Como exemplo – mais um -, tirei a foto abaixo no dia em que fazia o levantamento das lanças empaladoras, mas pensando em um futuro texto sobre os vários tipos de bicicleta que rodam no Recife. Mas, ao conversar com o senhor da foto, fiquei impressionado com o orgulho que ele tinha de rodar pela cidade em cima dessa bicicleta diferente – o que talvez dê para perceber pela sua fisionomia. A foto ficou arquivada para ser usada um dia, mas provavelmente eu não teria a oportunidade de falar sobre esse nobre ciclista. Ainda bem que nesse caso consegui enfiar essa história em um texto, mas a triste verdade é que quase todas essas histórias morrem dentro da minha cabeça. É o preço que se paga para produzir um jornal só com textos (pretensamente) maduros.

A outra opção, colocar essas experiências pessoais junto com as notícias da fanpage, também não é satisfatória, pois daí essas pequenas histórias valiosas para mim acabariam se perdendo na multidão das notícias dos outros. Para resolver isso, i.e., registrar experiências minhas mais ou menos na hora que acontecem, resolvi testar um outro meio de publicação, criando a página motomagnani no Instagram. Vamos ver o que vai dar.

Antes de terminar essa parte da conversa, quero dizer que as fotos não são apenas vítimas do autoritarismo das publicações. Às vezes elas é que acabam engessando demais o texto, forçando você a ir por um caminho que não está com vontade. Pode ser que durante uma viagem você tenha tirado uma foto muito legal de uma praia, mas não tem nenhuma história boa para contar sobre aquele lugar. Ao colocar a foto junto com o texto, você acaba tendo que adequar todo o resto só para explicar a função daquela imagem – o que me fez diminuir bastante as fotos que tiro por aí. Mas agora tenho a esperança que, ao usar esse novo meio de publicação (Instagram), vou dar tanto a liberdade para que as imagens falem por si só, quanto aos textos para que percorram seu próprio caminho. Como eu já disse, não sei onde isso vai dar, mas no mínimo vai dar mais trabalho.

Convergência de Mídias

Pensando nesse lance do Instagram, acabei investindo em um celular com câmera digital, pois assim posso tirar as fotos e publicar na hora, sem muita burocracia com o editor do jornal – embora ele ainda tenha que dar um aval para dizer se a imagem publicada tem a tal da “MotoMagnani Esperienza”. Esse novo celular acaba servindo também como bloquinho de anotações para outras ideias. No final das contas, isso significa a convergência de vários equipamentos que eu levava no bolso (telefone) e no bauleto (bloco, caneta, câmera, gravador de voz, GPS, livro, mapa e bússola). Ganho ainda o acesso à internet. Por outro lado, há o risco de ser roubado, molhado, ou de acabar a bateria, o que me tiraria temporariamente todas essas ferramentas. Se bem que esse último risco pode ser minimizado adaptando um carregador na bateria da moto. A grande vantagem, mesmo, é que a câmera está sempre no bolso, o que aumenta muito a probabilidade de registrar os tais flagrantes do cotidiano. O problema é se eu for derrubado da moto, porque acho que nenhum seguro vai querer pagar o celular, que foi caro pra dedéu. Digo que é importante que a câmera esteja no bolso porque quando ela está no bauleto eu sempre penso dez vezes antes de parar no meio do trânsito para pegá-la.

O celular que eu comprei tem ainda vários outros aplicativos que estão facilitando a minha vida, como um leitor de código de barras para pagar contas, outro para comprar ingressos do cinema, browser de internet, agenda e e.mail. Sem contar as ferramentas de publicação de fotos e textos. Estou gostando muito, embora ele não seja perfeito, já que é ruim para escrever grandes textos e para transferir informações de um aplicativo para o outro.

Escrevi sobre esses brinquedos em vários lugares aqui do jornal, mas três textos são bem diretos: Fotografia em Viagens de Moto, GPS, e Presentes de Natal. Embora essa convergência seja legal, ainda falta muito para realmente servir ao motoqueiro moderno. Além dessa integração de telefone + câmera + computador + navegador, seria interessante integrar as motos ao sistema de resgate, integrar as motos ao sistema de transporte público e ao sistema residencial, e integrar as motos ao sistema de comunicação entre veículos, coisa que hoje em dia é feita apenas pelo contato visual entre os condutores e pelas buzinas. Em outras palavras, eu queria uma moto que chamasse o resgate no caso de acidente, queria andar com ela no metrô, guardar dentro de casa, queria que ela registrasse as besteiras que os carangueiros fazem perto de mim, que monitorasse a minha pilotagem (só para o meu uso), e também que houvesse um sistema que parasse automaticamente os veículos no caso de colisão iminente. Um dia chegamos lá.

Navegadores

Navegadores são dispositivos eletrônicos que incluem um localizador por satélite – que diz onde você está -, um mapa – que mostra os vários caminhos para onde você pode querer ir -, e um processador – que decide qual é o melhor caminho – pelo menos do ponto de vista dele. Eu acho os sistemas de GPS bem legais para viagens, pois dizem onde você está caso se perca. Mas não tenho tanto apreço pelos navegadores – que acoplam o sistema de localização a um software de recomendação -, pois não gosto que tomem decisões por mim quando estou em uma aventura. Além disso, sou um romântico, então adoro fuçar em mapas de papel.

Isso em viagens, pois no dia a dia da cidade eu não tenho problema algum com alguém pensando por mim. Mesmo assim, acabo não usando um navegador porque eles não funcionam direito nas motos e nas bicicletas: são fáceis de serem roubados, nem todos são a prova d’água, são frágeis, não cabem direito no bolso, não dá para escutar a voz da guria, são caríssimos, e tiram muito a concentração.

Por falar em não dar para escutar a voz da menina, por que os carangueiros podem andar com o som ligado nas alturas e nós não podemos andar com fone de ouvido?

Os sistemas navegadores mais modernos têm uma outra característica bem legal, que é o monitoramento do trânsito, que indica quais as ruas que estão mais livres em determinado momento. Ainda, esses sistemas permitem que você se comunique com os outros usuários ou ainda que avise a todos sobre buracos, obras e que tais. Resolvi experimentar um desses, o Waze, depois de ouvir maravilhas de alguns colegas carangueiros.

Essa imagem aí de cima mostra como estava o trânsito aqui perto de casa hoje pela manhã. Eu tinha que ir para as Graças, e um dos caminhos era a Av. Caxangá – rua especializada em caixões de defunto. Pela imagem dá para ver que o trânsito estava horrível (vermelho). Eu até poderia ter ido por lá, já que sei que os corredores são largos para as motos, mas preferi ir pela Rua da Lama – que não tem lama e tem um espação para as motos. Já a Renata estava levando o Dante para a escola de carro, então não podia passar pelo corredor – ou pelo menos assim eu espero -, por isso, ao ver o mapa, decidiu ir pela Rua da Amendolândia – que vende amendoins. Então dá para ver que, mesmo que seja só para ver antes de sair de casa, esse sistema já é bem legal, pois mostra o que está parado.

Mas eu queria testar o sistema de forma mais completa, então passei uns dias usando a maquininha dentro do carro. Isso mesmo, ouviu bem, em um quadrúrrode. Além de rodar com minha moto e com a minha bicicleta, eu também ando de carro de quando em vez. Preciso levar meu filho na escola alguns dias da semana, fazer compras, e passear com toda a família. Agora, por que não posso fazer isso com os meus veículos de duas rodas? Várias são as razões: elas não carregam muita carga, os lugares são distantes, o trânsito é perigoso, e as vias são totalmente desconfortáveis – estorricantes, sujas, esburacadas e poluídas. Não que esses sejam problemas intrínsecos a esses veículos. Na verdade são problemas conjunturais, causados pela tal “ditadura do automóvel”. Mas, independente da causa, esses problemas existem mesmo assim.

Eu sou um carangueiro medíocre. Até gosto de viajar pelas estradas, e também gosto de andar de carro nos dias em que estou com a cabeça cheia ou adoentado, pois é perigoso andar de moto ou de bicicleta no trânsito urbano quando você não pode se concentrar direito. Até que sei dirigir direito, com a exceção das manobras de estacionamento. Não sei se é falta de prática, se é uma deficiência congênita, ou se é uma resistência psico-filosófica à hibridização do meu corpo com o de um automóvel (processo que aceito sem problema no caso dos veículos de duas rodas), mas sei que só me meto a estacionar quando a vaga é bem grande. O que causa histórias interessantes. Lá em casa a briga é por quem não dirige. Como a Renata tem que dirigir quase a semana toda, eu concordo em dirigir quando estamos em família ou para fazer compras, mas desde que ela se comprometa a estacionar se o lugar estiver apertado demais. Então, não raro, eu paro o carro perto de uma vaga, desço e fico esperando ela ajeitar o bicho. Um dia desses, eu estava esperando na calçada quando um velhinho puxou conversa. “Ela está aprendendo a dirigir?”. Eu respondi, na maior cara de pau e sem deixar a Renata ouvir, que estava ensinando a menina a fazer manobras para prestar o exame do governo. A história ia correndo bem até que ela desceu e o velhinho comentou: “Você tem sorte que seu marido te ensine a dirigir. Estacionou muito bem. Parabéns”. Eu dormi no sofá por uma semana. Ainda bem que, quando a Renata trocou de carro, mandou instalar um sensor de estacionamento, o que melhorou bastante a nossa vida conjugal.

Primeira Impressão

Está difícil ficar no mesmo assunto hoje, mas voltemos à análise do navegador do meu celular que comprei para tirar fotos. Logo de cara, percebi que esse sistema de navegação no trânsito não foi desenvolvido para motos e bicicletas – só para os carros. Já dá para ver pelo nome: navegador. Se fosse para moto chamaria motoqueador. Falando sério, como só carangueiros usam, o sistema reflete apenas o trânsito dos carros, o que deforma a informação para os bírrodes. Pode ser que uma determinada rua esteja toda parada para os carros, mas que seja rápida para as motos. Ou então, de repente, um bicicleteiro poderia pegar um atalho empurrando sua bicicleta alguns metros pela calçada, mas o sistema não mostra esse tipo de rota, já que os carros não podem andar na calçada. Por falar nisso, para piorar, o sistema não mostra buracos na calçada, carros estacionados em locais que impedem a passagem de pedestres, e por aí vai.

O que me fez pensar em alguns experimentos sociais. O que aconteceria se motoqueiros, bicicleteiros, cadeirantes, sapateiros, esqueiteiros e afins andassem pelas ruas congestionadas com o navegador ligado, registrando o trânsito como se fossem carros? No mínimo seria engraçado, pois o sistema acharia que a rua estava fluindo bem, atraindo mais carros ainda. Ou, então, e se todos os passageiros de um ônibus quebrado ligassem seus celulares, dando a impressão que uma rua livre está toda parada, espantando os carros de lá? E se você parasse em um boteco para tomar cerveja com os amigos e todos ligassem o navegador? Talvez daqui um tempo alguém faça novas versões desses navegadores, adaptando o sistema para motoqueiros, bicicleteiros, cadeirantes, sapateiros e outros VTI (veículos de transporte individual), mas por enquanto só nos resta a diversão com esses experimentos. Se bem que talvez já estejam brincando, pois outro dia a noite o sistema me avisou que duas ruas estavam com o trânsito lento (imagem abaixo), mas quando passei por lá não havia trânsito algum naquelas ruas – só carros estacionados. Será que aqueles carangueiros deixaram os seus Wazes ligados ao pararem por ali?

Voltando ao estudo que eu fiz como carangueiro, o sistema mostrou aspectos positivos e negativos. Por um lado me tirou das ruas mais congestionadas, mas por outro me levou por várias ruazinhas esburacadas. O problema com ruazinhas pequenas é que nem sempre é fácil entrar de novo nas grandes artérias, pois os carros em velocidade não deixam você entrar. Ou, então, eles param no cruzamento, impedindo você de cruzar a pista. Em uma ocasião, o sistema não sabia que havia uma obra imensa e uma proibição de retorno mais à frente, o que me fez andar três quilômetros a mais.

Do ponto de vista do carangueiro, no caso eu, senti uma diminuição na minha concentração como motorista, já que estava bem mais preocupado em saber como estava o tráfego mais a frente do que com a análise do local, o que poderia ter colocado motoqueiros, bicicleteiros e sapateiros em perigo.

Mesmo nos outros dias em que usei o sistema para andar de moto, e, portanto, só olhei um pouco antes de pegar a rua, senti uma grande distração. Como o caminho que ele propôs era diferente do que eu estava acostumado, eu me peguei várias vezes mais preocupado em me lembrar do que teria que fazer mais à frente do que com o que estava acontecendo no momento. Cometi um engano que nunca cometo quando estou concentrado: um ônibus parou em um cruzamento para dar passagem a um carro. Eu ultrapassei o ônibus, sem ver o que vinha na frente, e quase bati. Não costumo fazer essa bobagem, pois sempre me preocupo de ter um pedestre passando pela frente do ônibus. Em outro momento, fiquei tão distraído com o meu destino que não percebi que minha carteira quase caiu do bolso – sorte que um motoqueiro percebeu e me avisou. Parece que esse sistema, mesmo sendo usado só em casa, acaba distraindo a pessoa. O motoqueiro passa a ter a cabeça no mapa, passa a viver em outro tempo e em outro lugar, não no aqui e no agora. Perigoso.

Oráculo

Ainda é muito cedo para chegar a conclusões gerais sobre o uso desse sistema de navegação, mas não vou me furtar a algumas conjecturas. Afinal, todo mundo entende de política, futebol, religião e trânsito.

O primeiro impacto parece ser que os motoboys não poderão mais fazer bicos ou vários serviços ao mesmo tempo, já que serão monitorados. Outro possível efeito será o monitoramento feito pelo governo para multar os infratores. Ou ainda pelas empresas, para oferecer quinquilharias quando você passar perto de alguma loja. O efeito mais imediato, no entanto, acho que será sobre o tráfego na cidade – óbvio ululante.

Ao meu ver, o tráfego da cidade é regido por quatro sistemas sobrepostos: individual (o carinha toma as suas decisões a cada momento), o social (uma série de regras e recomendações não escritas de como se portar no trânsito de uma determinada região), a sinalização (placas, faixas, quebra-molas, policiais) e os tais navegadores.

Eu moro em um lugar cheio de ruazinhas estreitas, usadas só por quem mora por ali. Essa microregião, de cerca de 500x500m é cercada por grandes avenidas. Quem mora por ali sabe onde estão os buracos, quais são os pontos perigosos, quais são as preferenciais, onde as crianças brincam e por aí vai. Quem é de fora em geral não passa por ali, preferindo as grandes avenidas.

Ultimamente, no entanto, tem havido mudanças radicais. Essas grandes avenidas estão ficando congestionadas, o que leva os de fora a experimentarem as ruazinhas. Além disso, esses navegadores dos celulares estão informando aos forasteiros como transitar em nossas ruas locais – que não têm sinalização. O resultado é que esses carros de fora passam correndo perto das crianças, andam na contramão no que nós os locais convencionamos serem ruas de mão única, e não respeitam as preferenciais não sinalizadas mas que assim foram definidas com o passar do tempo. Isso sem contar que as nossas ruas não foram preparadas para um trânsito tão intenso, e portanto estão ficando cada vez mais esburacadas.

Tenho sentido também uma diferença quando ando de moto nas ruas principais. Antes, os carros ficavam todos parados nos seus congestionamentos, enquanto os motoqueiros e bicicleteiros passavam pelos espaços livres. Agora, de uma hora para outra, os carros saem das ruas principais para entrar nas ruazinhas, quase colidindo com os veículos menores. Quer dizer, esses novos navegadores vêm mudando o costume das ruas, talvez criando mais colisões.

Parece que algumas coisas são bastante previsíveis. Enquanto poucas pessoas usarem esses navegadores, elas serão beneficiadas. Tudo bem, desde que isso não venha junto com mais acidentes causados por essa “mudança de comportamento” do tráfego.

O problema é que, aos poucos, esses carros que passam pelas ruas locais vão criar mais buracos, acidentes e congestionamentos, já que essas ruas não foram pensadas para esse tipo de trânsito. Agora, quando a maioria dos carros estiver usando, daí os resultados serão completamente imprevisíveis. Esse sistema (equipamentos + softwares + pessoas) irá sobrepor completamente qualquer planejamento de tráfego das prefeituras locais. Será que o sistema conseguirá processar tantas informações? Ele será mais inteligente que um sistema centralizado? Será que as limitações dos seres humanos serão amortecidas ou amplificadas por esse sistema? O sistema aprenderá a compreender as limitações físicas das vias antes que os buracos apareçam? As pessoas vão se acostumar com esses navegadores e voltarão a ter a mesma atenção no trânsito?

São várias perguntas cujas respostas virão só no futuro. Só espero, no entanto, que nossas autoridades já estejam se preocupando com isso no presente. Não para proibir, mas para aproveitar as qualidades desse sistema adaptativo, descentralizado e democrático, e para corrigir suas eventuais limitações – principalmente em relação aos VTI (e.g., motos, bicicletas, cadeiras de rodas e sapatos).

Além da Tecnologia

Além de reger o tráfego, esse sistema traz consigo também alguns impactos sobre as relações humanas. Por exemplo, ele permite que todos saibam onde estão as blitz da polícia – o que desperta uma questão ética que precisará ser discutida com maturidade pela sociedade, pois envolve o direito à informação, o direito do indivíduo de não ser desnecessariamente constrangido pela polícia, e o combate ao crime. Essa não é uma questão tecnológica, mas sim de como a sociedade quer fazer uso dessa tecnologia.

Outro ponto importante é que sempre que leio sobre esses sistemas penso que aí vem mais uma onda de desumanização e afastamento das pessoas – mas nem sempre é assim. Esse sistema de navegação por celular permite que você identifique um amigo que está passando ali por perto. Já pensou, você sozinho em um congestionamento, bem perto do seu amigo, também sozinho, e vocês não perceberem? Sem esse sistema os dois ficariam um tempão isolados de tudo. Com o sistema, os dois podem trocar mensagens, parar em um boteco e tomar um café até que o trânsito volte a andar.

Tudo tem no mínimo dois lados. Vamos aproveitar a liberdade de movimento e o contato com os outros que esse sistema nos traz. E vamos minimizar os riscos, o controle exagerado e os possíveis engessamentos. Que venha o novo, e que saibamos fazer um bom proveito. Enquanto isso, vamos navegando pelas ruas, imagens e palavras.

Uma Palavra dos Nossos Anunciantes

Brincadeira. Não temos anunciantes, pois nossos patrões acham que a pobreza enriquece o espírito, molda o caráter e enobrece o homem. Este anúncio foi só para lembrar da página MotoMagnani no Instagram. 8)

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