Motoqueiros em Fuga

© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: Um Motoqueiro Existencialista

MOTOQUEIROS EM FUGA
Fábio Magnani
[publicado originalmente em março de 2014]

O desenho Poça D’Água (1952) é um dos menos exibicionistas de M.C. Escher. Gosto dele porque consegue representar muito bem os vários tipos de viajantes que convivem em uma estrada. Dá para ver os rastros de dois carros, as trilhas de duas bicicletas, e as pegadas de dois pedestres que caminham em direções opostas. Ou, quem sabe, no lugar dos dois carros passaram na verdade quatro motos, daquelas com pneus antigos de perfil quadrado. Talvez não tenham sido dois andarilhos que se cumprimentaram, mas um só, que foi, mas depois se arrependeu de algo e voltou. O que não é o caso, pois as marcas dos sapatos são diferentes, mas não deixemos a realidade estragar nossa estória. Se bem que, de repente, o cara foi até a sua casa com o sapato do trabalho, deu uma desculpa qualquer, e depois saiu com a roupa de domingo.

As marcas deixadas no chão não passam qualquer impressão de conflito, então provavelmente todos aqueles viajantes se deslocaram em momentos diferentes, em harmonia. Interessante, pois se você não pensar muito tentando imaginar o que aconteceu, e olhar rapidamente só a imagem, ficará com a impressão de uma grande bagunça. Mas só a impressão. Essas duas possíveis impressões (conflito ou harmonia) nascem da nossa escolha, ao olharmos para a imagem, de imaginarmos que tudo aconteceu ao mesmo tempo ou em sequencia. Sempre é bom tomar cuidado com as impressões, como no caso dos carangueiros que acham que o corredor é o lugar mais perigoso para os motoqueiros, muito embora a maior parte dos acidentes graves ocorra em cruzamentos. Essa impressão ocorre por causa da escolha deles de olhar para o tráfego com o preconceito de que só os motoqueiros são imprudentes nos corredores, esquecendo a imprudência dos próprios carangueiros nos cruzamentos.

O desenho do Escher não é o registro de um único momento, mas sim de uma série de eventos que ocorreram em tempos distintos. Não é apenas uma fotografia, mas sim uma história. Ou melhor, uma fotografia que conta uma história. E por falar em fotografia, embora as pessoas acreditem que elas representem toda a realidade, mesmo que de um único momento, isso não é verdade. A fotografia é incapaz de registrar a velocidade e a aceleração e o som e a vibração, é incapaz de mostrar outros pontos de vista e outras frequências eletromagnéticas e outras escalas espaciais, e, principalmente, é incapaz de expressar os sentimentos dos seres envolvidos. Esse desenho do Escher não é uma fotografia do mundo real, é uma criação artística fictícia. Mas nem por isso trata menos da realidade do que uma fotografia. Ao criar essa composição, o artista nos trouxe uma maior compreensão do mundo real, com todos seus viajantes. Interessante como a ficção pode falar muito mais da realidade do que pequenos detalhes reais escolhidos a esmo.

Outro ponto interessante é que, se você olhar bem para dentro da lama, ao contrário de se perder na escuridão verá uma floresta iluminada pela lua cheia. Ao olhar só para o centro você vê, na verdade, toda a amplitude que cerca aquele ponto no chão. Diferente do que diz a máxima de que você precisa escolher olhar ou para as árvores ou para a floresta, em alguns casos é possível descobrir o infinito olhando para o átomo, aprender sobre a condição humana conversando com uma única pessoa, amar de todas as formas uma única mulher, e viver toda uma vida em apenas uma viagem de moto.

A obra de M.C. Escher – que não é um MC de rap – é fundamentada nessa exploração dos paradoxos (e.g., ao olhar para o centro você olha para o entorno), da multiplicidade de pontos de vista (e.g., cada trilha deixada na estrada tem a sua própria história) e de tecelagens (e.g., o desenho só revela o seu sentido completo quando todos os caminhos são sobrepostos). Dos elementos do trabalho de Escher, Poça D’Água expressa mais a tecelagem e, um pouco menos, os pontos de vista.

Outros desenhos do Escher são mais expressivos, como as preferidos dos engenheiros Mãos Desenhistas (1948), Subindo e Descendo (1960) e Queda D’Água (1961), que lidam mais com o paradoxo. Já Relatividade (1953) tem como seu forte os pontos de vista, com uma imagem que conta histórias diferentes dependendo de onde você começa observá-la. O mesmo em Convexo e Côncavo (1955).

A Arte da Fuga

Existem vários tipos de motos. Altas e baixas, para terra e asfalto, tranquilas e rápidas. Uma simples troca de moto faz você rodar em outro ritmo no tráfego da cidade, e com isso todo um novo mundo surge à sua frente. Isso mesmo: ritmo, pois a música é uma ótima analogia para o trânsito. É como se cada tipo de veículo fosse um instrumento, e cada veículo em particular fosse uma nota. Os trens e metrôs são sons de uma bateria que dão o ritmo da cidade. Os ônibus e caminhões são as notas do baixo que marcam a harmonia das ruas. Os carros por sua vez são a melodia da cantora lírica, a parte mais chamativa da música.

Mas a música da cidade é mais complexa, tem outros instrumentos. Os motoqueiros, por exemplo, formam o som imponente da guitarra elétrica, que teima em rivalizar com a vocalista. Os pedestres, ciclistas e cadeirantes são as flautas, percussões e harmônicas, que dão vida à música.

O tráfego tem vários ciclos, que podem se alternar em segundos, como no caso da abertura de um semáforo; durante o dia, variando da alta densidade no horário de abertura das escolas até o calmo final da noite; de um dia para o outro, como quando começa a chover depois de uma semana ensolarada; ou durante a semana, principalmente na sexta em que todo mundo vai trabalhar de carro e volta correndo para casa, ou então no domingo que mistura carros lentos a passeio com carros agoniados depois de um dia na estrada.

Eu evito andar de moto nas sextas à noite e não gosto de andar aos domingos. O medo mesmo vem nos dias de chuva. Quando começa a chover você precisa andar devagar em sua moto, pois a lama torna as frenagens perigosas e você nunca sabe quando há um buraco escondido sob a lâmina de água.

Voltando à nossa conversa sobre música e fixando nossa atenção apenas na guitarra, ou apenas nos motoqueiros, podemos ouvir várias melodias se entrelaçando. Alguns rodam como se fossem carros. Alguns rodam nos corredores, que permitem velocidades um pouco maiores que a dos automóveis. Outros motoqueiros preferem costurar o trânsito. Outros sobem nas calçadas. Ainda têm aqueles que rodam na contramão.

Imaginando essa cena, não consigo fugir da lembrança dos átomos de Epicuro, que inicialmente deveriam todos percorrer trajetórias paralelas como em uma parada da polícia do tráfego, mas que, pela ação da casualidade intrínseca aos átomos, ou do livre-arbítrio dos motoqueiros, saem da ordem inicial, se recombinando em formas e processos e experiências e movimentos extraordinários. Assim como a desobediência dos átomos ao determinismo cria a vida no universo, a desobediência civil dos motoqueiros às leis feitas só para os carros cria a vida nas cidades. Os motoqueiros são a prova cabal da casualidade sobre o determinismo. São a prova do poder criativo do caos em contraponto à ânsia destruidora da morte, quero dizer, da ordem.

Afinando mais ainda o ouvido, vemos que mesmo entre aqueles que aparentemente andam do mesmo jeito, no corredor por exemplo, há diferenças. As motos altas de média cilindrada permitem andar mais rápido quando há um grande espaço e também quando há carros comuns, pois o seu guidão mais alto passa por cima dos retrovisores. Já as baixas menos potentes são mais ágeis em corredores que demandam manobras curtas, e se dão bem entre os SUVs, porque seus guidões passam por debaixo dos espelhos laterais.

Então, se o tráfego urbano como imaginado pelas autoridades e sonhado pelos cidadãos de bem parece mais um quarteto bem comportado, então o tráfego real parece mais um concerto de punk-progressivo (visceral e complexo, dionisíaco e apolíneo) – se é que isso é possível. Acho que a melhor comparação com a realidade seria uma banda de jazz, mas não tenho cultura para isso.

Aliás, não tenho cultura nem para a analogia rockiana. Agora, quando olhamos só para as motos – para todas as motos -, acho que a melhor comparação musical é com a fuga. Essa tal de fuga é um tipo bem antigo de música no qual as variações de um mesmo tema são repetidas por várias vozes entrelaçadas. Basta ouvir só um pouquinho o Glenn Gould tocando uma fuga do Bach. Há um só piano, mas parece que são quatro músicas tocadas ao mesmo tempo.

Para quem gosta de blues, dizem que o lendário Robert Johnson, que teria vendido a alma ao diabo em troca do sucesso, tocava seu violão como se fossem dois. Para os BRoqueiros tem o Plebe Rude, com o famoso refrão “o concreto já rachou” na música Brasília; e, para os roqueiros internacionais, (o) The Clash, com duas letras misturadas, uma em inglês outra em espanhol, em Should I Stay or Should I Go. Nessa música o cara não sabe se fica ou se vai. Talvez seus passos incertos sejam exatamente aqueles que aparecem na Poça D’Água do Escher. Mas não fujamos da fuga.

Visualize agora uma avenida em uma grande cidade, logo no início da manhã, quando todos os motoqueiros estão saindo de casa para trabalhar, estudar ou passear. Para mim A Arte da Fuga (BWV 1080) do Bach é a trilha sonora perfeita para esse enxame de motos que, pelo menos nessa minha imaginação, não tem qualquer colisão ou qualquer conflito. Algumas motos saindo rápido no semáforo, outras acompanhando os carros, outras ainda serpenteando nos espaços vazios. Como uma revoada de andorinhas. Todas indo no final das contas para a mesma direção, construindo o tráfego, fazendo a música da cidade.

Adoro o Glenn Gould. A trilha do 32 Short Films About Glenn Gould (1993) é minha grande companheira quando preciso dirigir algum carro – o que gosto de fazer às vezes para observar o tráfego e a cidade. Também adoro fugas, pois expressam o que o ser humano tem de melhor: sensibilidade, criatividade e intelecto. Uso aqui o termo criatividade no sentido mais artístico e o termo intelecto no sentido mais racional. Por falar em fuga, uma curiosidade é que o próprio termo fuga tem tudo a ver com os motoqueiros, pois vivemos fugindo da ordem pela ordem, da morte, do trabalho, da monotonia, do isolamento e da previsibilidade. Os motoqueiros vivem em fuga porque seu movimento é um entrelaçamento de muitas trajetórias complexas e vivem em fuga porque não suportam nada que é tacanho.

Para aqueles que não andam de moto e não entendem porque os motoqueiros são tão apressados, um bom exemplo é imaginar o que acontece quando você está andando com seu carro em uma estrada e tem que passar perto de uma frota de dez caminhões. O que você faz? Passa o mais rápido possível, pois dá medo ficar tão perto daqueles caminhões imensos, que, se precisarem desviar de um buraco, vão te tirar da estrada, ou então poderão passar por cima de você se o motorista estiver distraído no celular. É a mesma coisa com as motos. Andamos apressados para sair logo de perto dos carros. Se você andar quietinho atrás de um carro, sempre vai aparecer um outro carro te espremendo para ocupar aquela posição. Pena que as bicicletas não podem fugir dos carros como as motos podem.

Há entrelaçamento nas fugas de Bach e há entrelaçamento nos desenhos de Escher. E claro que não fui eu quem achou essa relação. Aprendi isso ao ler Godel, Escher, Bach: An Eternal Golden Braid, que Douglas R. Hofstadter publicou em 1979, quando tinha 34 anos. Nesse livro, Hofstadter fala sobre a importância dos entrelaçamentos na construção e também na compreensão do mundo. Quem move um ser humano? Seu DNA, o RNA, suas células, o sistema nervoso, seu cérebro, sua mente, a cultura na qual se insere, o ambiente da Terra ou as leis da natureza? Se você tirar qualquer um desses elementos, ainda poderia definir a inteligência tal qual a conhecemos?

Os fenômenos sempre são misturas de eventos que ocorrem dos tempos muito pequenos aos muito grandes. O movimento da sua moto depende tanto da decisão quase instantânea que você toma ao desviar do buraco quanto das dezenas de anos necessárias para que as regras informais da conduta de trânsito se desenvolvam em uma sociedade.

Os fenômenos sempre são misturas de eventos que ocorrem desde os espaços muito pequenos aos muito grandes. O movimento da sua moto depende tanto das colisões microscópicas das moléculas de oxigênio e de hidrocarboneto dentro do cilindro quanto dos muitos quilômetros da avenida pela qual você transita.

Modifique qualquer um desses elementos – sua mente, o comportamento dos outros condutores, a queima do combustível ou a própria avenida -, e o movimento da sua moto também será modificado.

Para explicar isso para a gente, mas sem usar as motos como exemplo como eu estou fazendo, Hofstadter conta a história de três gênios: o músico J.S. Bach, o artista M.C. Escher e o matemático Kurt Gödel, que têm suas obras marcadas por esses entrelaçamentos de tempos, escalas, processos e regras. Mas o mais legal de tudo é que o livro, para falar do entrelaçamento nas obras desses gênios, também tem uma estrutura entrelaçada. O leitor flutua de um trabalho para outro, depois de um texto técnico para um conto, depois de visão geral para um tatear bem de pertinho. Tudo parece caótico, como para o garupa de um mototaxista arrojado, que não percebe como vai chegar ao seu destino no meio daqueles movimentos aparentemente aleatórios. Ou então para uma pessoa, que, para realmente compreender o tráfego, precisa andar de moto pequena, de moto grande, bicicleta, “diapé”, ônibus, metrô, carro; pelas ruas, pela internet, pelo chão de fábrica, pelos filmes e livros, pelas pistas e trilhas, pelas bibliotecas, pelo mundo acadêmico e pelo bate-bapo sem compromisso; e depois olhar as coisas como um usuário, como um planejador, como um técnico, como um humanista, como um artista e como um pensador. Hofstadter, Gödel, Escher e Bach, por meio dos seus entrelaçamentos, paradoxos, pontos de vista diversos e temas recursivos, criam algo impossível de ser criado de forma sequencial.

Nos momentos mais artísticos do livro, Hofstadter às vezes usa textos do Lewis Carroll, como Through the Looking-Glass, que é uma espécie de continuação de Alice no País das Maravilhas, duas obras que nada têm de simplórias. Não mesmo. Nesse segundo tomo, um dos temas é o xadrez, o que tem tudo a ver, pois uma das primeiras lições do xadrez é que você precisa olhar tanto o movimento de peças específicas algumas jogadas à frente (tática) quanto para o posicionamento global do tabuleiro ao longo de todo o jogo (estratégia). Como são dois jogadores, o jogo de xadrez é uma dança com quatro movimentos e infinitas combinações, em ritmos e propósitos diferentes.

O título desse livro do Lewis Carroll me fez lembrar de uma música do Kraftwerk, Hall of Mirrors, que tocava em uma propaganda de sapato quando eu era adolescente. Não sei porque escolheram essa música, mas a cena da TV mostrava um cara andando em solitude por uma linha de trem, uma imagem bem forte para mim, que costumava perambular pelas linhas férreas na minha infância e que via o trem como uma fuga daquela cidade da qual não gostava. Hall of Mirrors fala de como estamos presos em uma sala de espelhos, onde na verdade boa parte do que vemos é o reflexo de nós mesmos – projeções, como diria uma amiga psicóloga.

Só que, ao colocar de novo os pés no chão e procurar essa música na internet, me confundi misturando o seu título (Hall of Mirrors) com o do livro do Lewis Carroll (Through the Looking-Glass) – digitei “Through the Mirror” -, talvez porque em inglês tanto “mirror” quanto “looking glass” signifiquem espelho. O fato é que nessa pesquisa não apareceu nem um nem outro, mas um álbum da Siouxsie and the Banshees, que tem o título do Lewis Carroll e a faixa do Kraftwerk. Conheço um pouco da Siouxsie por causa de uma fita VHS com coletânea punk que gostava de assistir, mas principalmente por causa da versão dela de You’re Lost Little Girl que eu conhecia com o Jim Morrison d(o) The Doors. Outra música que eu gosto de ouvir com a Siouxsie é The Passenger, que por acaso era a música tocada pelo Iggy Pop naquela tal coletânea VHS de punk.

O Iggy Pop compôs essa música baseado em um pequeno poema do Jim Morrison (publicado em The Lords/Notes on Vision), que fala como a vida moderna é parecida com uma viagem na qual os passageiros mudam de carro em carro, sujeitos a uma transformação infinita ao olharem pelas imagens que passam pela janela. Um texto com referência aos flaneurs, hobos, beats e hipsters (os originais, não esses burguesinhos chatos de hoje em dia).

Na mística que envolve (o) The Doors, tudo teria começado quando Jim Morrison ainda criança presenciou a morte de um xamã em um acidente de trânsito. O espírito desse índio teria então o guiado por toda a vida. Jim Morrison é o meu artista preferido. Não por ser o melhor poeta do mundo – eu não saberia dizer. Nem por ser o melhor músico do mundo. Ele só sabia tocar pandeiro. O que eu gosto é o total compromisso que ele tinha com a sua arte, tendo oferecido a sua própria vida em sacrifício. Acho que artista é alguém que vive sua arte por completo, não só quando está cantando, não só quando está declamando. Jim Morrison começou como cineasta amador, mas é mais conhecido pela sua obra literária e musical.

E talvez essa seja uma segunda razão para admirá-lo, pois minhas formas de arte preferidas são exatamente os filmes, as músicas e os livros. Gosto de quase tudo d(o) The Doors, mas em um lugar especial está People Are Strange, bem gráfica e literária, e que fala sobre o andar pelas ruas, principalmente quando você é um estranho, seja por ser de outro lugar, por ter outra cultura ou, quem sabe, por ser um existencialista. Tomando a liberdade de ser um pouco pop, diria que é algo como se sentir um americano em Paris.

Então o Jim Morrison cantava minhas músicas preferidas, que mais me tocaram. Mas não escreveu meus livros preferidos, pois ele só escrevia poesia, e eu sou completamente incapaz de ler uma poesia (assim como alguém que não sabe ler uma partitura musical) se ela não for cantada, com a única exceção das declamações do Antônio Abujamra na televisão, como no poema Crazy and Saints de Oscar Wilde. “Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila. Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante”. Como Oscar Wilde, eu também não escolho meus amigos pela cilindrada da moto ou pela roupinha estereotipada – de qualquer tribo que seja -, mas pela autenticidade do pensamento. “Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça”. E assim como Oscar Wilde, eu também quero amigos assim, que sejam sérios na aprendizagem eterna, mas que nunca esqueçam o papel da fantasia. Mas infelizmente, sinto dizer, encontro muito mais esses amigos loucos e santos nos livros do que nas ruas e no mundo acadêmico. Acho que está me faltando uma pitada de sorte nos encontros que o acaso me reserva. “Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo. Deles não quero resposta, quero meu avesso. Que me tragam dúvidas e angústias e aguentem o que há de pior em mim. Para isso, só sendo louco”. O fato é que tenho tido pouca sorte em encontrar loucos por aí.

Consequência desse fato de pouca sorte nos encontros é o outro fato de que os livros são meus grandes amigos. Que patético. E por falar neles, os livros, se eu tivesse que escolher o livro que mais me influenciou, um único livro, só um, eu não conseguiria. Mas, assim como Hofstadter escolheu três gênios para ilustrar a sua história de entrelaçamentos, eu vou humildemente escolher os três livros acadêmicos que mais abriram a minha mente.

O primeiro é o próprio Godel, Escher, Bach: An Eternal Golden Braid (Douglas R. Hofstadter, 1979, 34 anos de idade), com toda essa história de recursões infinitas. O segundo, mais do ponto de vista psicológico, é The Outsider (Colin Wilson, em 1956, aos 25 anos de idade), que conta como outros três gênios, esses com emoções mais afloradas, lidaram com um mundo medíocre que vê a genialidade como coisa estranha: Nijinski no ballet, Van Gogh nas artes plásticas, e T.E. Lawrence na política e na filosofia – este um grande motoqueiro da história, tendo escrito um dos melhores textos (The Road) sobre a experiência em duas rodas e, no final, morrido em um acidente de moto. O terceiro livro tem mais a ver com o meu trabalho profissional, The Structure of Scientific Revolutions (Thomas S. Kuhn, 1962, 40 anos), que explica como realmente funciona a ciência, com suas modas, interesses pessoais e políticas, bem diferente do ensinado pelo tal Método Científico.

Pensando bem sobre o que escrevi ali em cima, pode ser que fique a impressão de que fui mais influenciado por livros acadêmicos do que pela literatura, o que certamente não é verdade. Como Hofstadter escolheu três linhas (Godel, Escher e Bach), e como eu escolhi três livros acadêmicos (Hofstadter, Wilson e Kuhn), e como três vezes três são nove, resolvi fazer uma lista com os meus nove livros preferidos de literatura:

The Sea Wolf – Jack London (1904, 28 anos)
O Estrangeiro – Albert Camus (1942, 29 anos)
Hunger – Knut Hamsun (1890, 31 anos)
The World According to Garp – John Irving (1978, 36 anos)
O Castelo – Franz Kafka (1922, 39 anos)
A Idade da Razão– Jean-Paul Sartre (1945, 40 anos)
Homo Faber – Max Frisch (1957, 46 anos)
O Lobo da Estepe – Hermann Hesse (1927, 50 anos)
A Insustentável Leveza do Ser – Milan Kundera (1984, 55 anos)

Ao organizar essa lista me lembrei de um amigo que sempre me zoava porque eu guardava meus discos em ordem. Qualquer ordem. Podia ser pela cor da capa, ordem alfabética, data de lançamento, língua, banda, preferência, estilo musical ou ainda a ordem em que tinham chegado em casa. Usava qualquer ordem, mas alguma ordem. Esse meu amigo falava como se todas as outras pessoas também não ordenassem os seus discos, mesmo que fosse, exatamente como eu, na ordem em que tinham sido ouvidos ultimamente. Mas eu não tentei explicar isso a ele pois seria inútil. De qualquer forma, em qualquer ordem, eu não me incomodava com essa crítica, pois usava a ordem só para achar mais fácil os discos, ou então para compreender qual a relação entre eles, curti-los, tateá-los ou relacionar suas chegadas com a minha história pessoal – tudo isso enquanto ouvia algo bem alto. Não usava a ordem para sentir a música, mas sim para traçar um esboço de um caminho. Assim como não uso um mapa para viver uma viagem de moto, mas sim para saber pelo menos em que direção sair de manhã.

O que me faz pensar nessa tal ordem que querem impor sobre o mundo das motos, separando as pessoas em ‘motoqueiros’ e ‘motociclistas’. Não vou entrar nesse tema aqui, pois já escrevo sobre isso há muito tempo, mas a questão é que sou totalmente contrário, pois essa ordem na realidade serve apenas para criminalizar os motoqueiros pobres, vender mais motos e mais jornais, e safar as fábricas e as autoridades da responsabilidade pelos acidentes. Mas ainda não é esse o ponto. O ponto é que nesse caso sou contra a ordem (“motociclistas são bonzinhos, motoqueiros são mauzinhos”) porque aqui a ordem age para simplificar um problema complexo que não pode ser compreendido ou resolvido de forma simplória; e porque ela age a favor da segregação social, da ganância e da incompetência.

Nem toda a ordem trabalha para a ignorância e para a maldade. Por exemplo, precisamos de uma certa ordem nas palavras para conversarmos, precisamos de uma certa ordem na razão para pensarmos, e precisamos de uma certa ordem social para vivermos. Claro que existem motoqueiros que agem às vezes de forma imprudente; poucos, mas existem. E claro que, para compreender e agir, precisamos classificar alguns atos como de imprudência. Mas daí há uma grande distância para o que estão fazendo, como generalizar que todos os motoqueiros pobres são imprudentes o tempo todo, ou simplificar que um determinado motoqueiro que foi imprudente uma vez será o tempo todo, ou mesmo ainda ter a certeza absoluta ao julgar todos os comportamentos como ou prudentes ou imprudentes.

Tenho certeza que não gosto de quem tem certeza das coisas e de que gosto de quem se dá ao direito de simplesmente achar. Essa mania de pensar que não se pode achar nada é um saco. Penso que quem acha que só pode ter certeza leu isso em algum livro de autoajuda cheio de achismos. Eu acho, logo existo. Acho no mundo real, onde o humanos são incapazes de ter certeza de qualquer coisa. Eu tenho certeza que acho um monte de coisas. E tenho certeza de que quem tem certeza que é normal ter certeza de tudo é na realidade um grande imbecil. “Pois os vendo [meus amigos] loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que ‘normalidade’ é uma ilusão imbecil e estéril”.

Não quero fugir da crítica de que fui cartesiano ao classificar os meus nove livros preferidos de literatura. Na lista aí de cima, posicionei os livros pela idade que o autor tinha ao publicá-lo. Acho que fiz isso para me punir, porque ao ver como eram tão jovens perco a esperança de ainda fazer algo realmente útil nesta vida. Mas não vou negar que não tenha pensado em outras classificações. Por exemplo, tentei separar os livros pelo cenário. Nesse caso, ficariam na mesma caixinha de morte na praia: Albert Camus e Max Frisch. Ou então pela metáfora, Jack London (lobo do mar) e Hermann Hesse (lobo da estepe). Quem sabe pelo assunto? Daí poderia agrupar John Irving e Knut Hamsun, pois os dois escrevem sobre escritores. De repente pelo tema.

Para agrupar pelo tema eu tive que descobrir qual o tema de cada um dos livros, o que me surpreendeu, pois cada um deles falava sobre um homem que, ao perceber que o mundo não fazia tanto sentido como queriam os pequeno burgueses, vagava pelo mundo tentando criar sua própria identidade, tentando criar uma razão autêntica pela qual viver. Todos livros tinham o mesmo tema: a percepção da realidade, o estranhamento pela sua falta de sentido, a retração na individualidade, e a busca por uma motivação autêntica para seguir. O que era diferente entre os livros era a saída escolhida, podendo ser a criação artística, o amor, a solidariedade, a ação política pelo bem comum, a humildade, ou ainda a aceitação da complexidade da realidade, a aceitação do mundo como ele realmente é. No entanto, os elementos iniciais eram sempre os mesmos: percepção aguçada e autenticidade. E lá vou eu usar meu poder de classificar os discos em cores, mas talvez o rótulo menos ruim para agrupar esses traços comuns seja o existencialismo: “uma filosofia baseada no indivíduo, que toma como ponto de partida um senso de desorientação e confusão em face de um mundo aparentemente absurdo e sem significado”.

Uma frase que sintetiza muito bem o que penso, mas que não consigo descobrir o autor de jeito nenhum, diz que “O homem criou a ciência, a religião e a arte em busca de um sentido – ele não pode suportar o nada”. O existencialista (talvez devesse aqui usar niilista existencial, mas não vamos entrar nessas divagações) não aceita a ilusão da ciência, da religião e da arte para escapar do nada. Ao contrário, ele contempla o nada, com toda a angústia e o desespero que isso pode trazer. Alguns perdem a coragem e retornam para a confortável ilusão de que há um sentido absoluto. Outros não suportam o desespero e se matam – real ou simbolicamente. Mas há os que aprendem a conviver com o nada, e, acima de tudo, usam a ciência, a religião e a arte como ferramentas conscientes para criar um sentido. Eles conhecem tanto o poder quanto as limitações da razão e da criação estética. Para eles, essas são ferramentas, não vendas que tapam a visão do nada. Afinal, o nada pode ser aterrador ou libertador, dependendo de quem olha.

O motoqueiro, assim como o existencialista, sabe que a morte está esperando no próximo sinal, e sabe que a crença na ordem simplória da legislação não é suficiente para salvá-lo. Como se uma nova lei fosse diminuir os acidentes por decreto. E, assim como o existencialista, o motoqueiro não se abate ao contemplar toda a crueldade e toda a complexidade do tráfego urbano. O motoqueiro vive sua vida, cria sua segurança e potencializa a mobilidade com suas manobras artísticas, com seu conhecimento tácito e com sua solidariedade – sempre a partir de suas escolhas individuais.

Acho que o que mais me incomoda nessa questão de tentar colocar ordem nas coisas é quando ela simplifica demais. Como no caso das autoridades que tentam controlar os estupros escondendo as mulheres em roupas que mais parecem sacos, que tentam controlar os problemas calando os críticos, ou que tentam diminuir os acidentes com bicicletas proibindo as bicicletas. Nesses casos a ordem não existe para compreender e melhorar o mundo, mas sim para cerceá-lo.

Outra coisa que me incomoda é o dualismo, a dicotomia. Acho que o principal objetivo dos meus textos é exatamente tentar destruir esses discursos maniqueístas: ou direita ou esquerda, ou americano ou francês, ou acidente ou liberdade, ou vida ou morte, ou homem ou mulher, ou velho ou novo, ou motoqueiro ou motociclista, ou ciclista ou motoqueiro, ou ame as motos ou deixe-as explodir no inferno. Por isso mudo tanto de assunto. Falo de acidentes e de peripécias, grandes indústrias e construtores artesanais, acadêmicos e mecânicos. A ideia é aumentar as visões e propor um diálogo entre essas várias vozes, não escolher uma como a verdadeira e lutar até a morte por causa dela.

Se bem que volta e meia alguém pega um único texto meu, ou uma única frase que escrevi, e tenta me rotular por defender apenas esta ou aquela visão (parafraseando Lichtenberg, “um texto é como um espelho: quando nele olha um simplório nada vê além de um simplório”). Como alguém que tira uma única foto de um evento e diz que, só por ser um retrato da realidade, aquilo ali é toda a verdade.

Do ponto de vista intelectual, o que eu mais gosto é de observar a influência dos nossos atos, como as ondulações que surgem depois que você joga uma pedra n’água. Às vezes escrevo algum texto ou faço algum discurso que causa certa polêmica – um grande ‘tchibum’. Mas isso não me agrada e ainda bem que passa logo. Depois de um tempo, vejo que aquela ideia mudou de forma, se juntou com outras ideias e segue o seu próprio caminho. Isso é que é muito legal, ver as ideias se transformando e transformando o mundo. Uma espécie de meme de Richard Dawkins. O mesmo acontece com os estudantes, que se transformam, me transformam e logo transformarão o mundo com as ideias que são criadas em conjunto. Legal.

Outro dia republiquei um texto antigo sobre roubo de tecnologia entre as fábricas que participam das grandes competições, o que colocou o foco nas motos de alta velocidade produzidas do outro lado do mundo, que são bem pouco relevantes no dia a dia mas que chamam muito a atenção para quem gosta de moto, em especial para um engenheiro mecânico como eu. Sonhei a noite toda com a ressonância dos gases nos motores dois tempos. Pela manhã, ao aprontar meu filho para a escola, ouvi uma música do grupo Palavra Cantada que falava sobre a singeleza e a importância de andar de bicicleta, o que me fez imediatamente mudar a minha marcha mental. Corri para o computador para procurar essa tal música para postar na internet, como que me forçando a adicionar mais uma visão aos meus pensamentos, juntando motos e bicicletas, altas e baixas velocidades.

Para ilustrar a música Bicicleta, do Palavra Cantada, quem editou o vídeo no YouTube escolheu uma animação em pastel na qual um carinha de bicicleta tenta encontrar uma moça. Nos comentários, o editor do vídeo diz que não se lembra mais onde achou essa animação, e que estava chateado por não poder dar os créditos.

Já ouvi reclamações de que tenho olho clínico para cinturas finas, motos ágeis, pernas torneadas, bicicletas diferentes e saias com barras curtas. Pode ser, afinal ninguém pode fugir do seu DNA físico e cultural. Só que nesse caso o que mais me chamou na animação foi um livro em cima da cama da moça, com o título Rayuela. Nunca tinha ouvido falar. Ainda bem que hoje em dia é fácil descobrir essas coisas. O livro, cujo título significa “Jogo da Amarelinha” em espanhol, é do Julio Cortázar, esse sim que já ouvi falar, que já li e que gosto pra caramba, principalmente um conto do livro Todos os Fogos, o Fogo chamado A Autoestrada do Sul, que conta a história de um grande congestionamento no caminho a Paris. Ninguém sabia a causa do congestionamento e, conforme ia acabando a água e a comida, o tecido social era recriado para lidar com a tragédia. Claro que é um conto fantástico, mas, ao levar a situação ao extremo, vemos como nos transformamos no tráfego, como ele é responsável pelo nosso humor diário e, principalmente, as aventuras e encontros que ele nos proporciona. Mais uma vez, a ficção falando mais sobre a realidade do que pobres recortes factuais são capazes de fazer.

Por coincidência, coisa que minha amiga psicóloga não acredita, esse livro Rayuela que vi na animação da bicicleta acaba de fazer 50 anos, então estava em destaque na gôndola principal da livraria em que fui passear no dia seguinte. Claro que comprei na hora. O legal é que o livro é todo entrelaçado, com uma ordem toda maluca. Os cartesianos podem ler na ordem tradicional: 1, 2, 3, 4…; mas o autor sugere uma outra ordem mais interessante, mais complexa, como se fosse um jogo de amarelinha em que você vai e volta, pulando algumas partes. Como se fosse um motoboy que perambula pela cidade, misturando dever e aventura. Dois dos principais temas do livro são a ordem versus o caos, e o indivíduo versus a sociedade.

Conhecia os contos do Cortázar, mas quase nada da sua vida, a não ser que era (meio) argentino. Não resisti a investigar um pouco mais, e descobri que ele é, de certa forma, herdeiro dos existencialistas e precursor dos pós-modernistas. Então está explicado porque gosto dele, já que a minha lista aí de cima só tem existencialistas. Mas tem também esse lance de pós-moderno, que é um termo que aparece muito nas minhas leituras gerais e que é quase uma infâmia no mundo da engenharia, que é completamente baseada na visão modernista do mundo.

Uma forma de separar o moderno do pós-moderno é dizer que o primeiro aposta na possibilidade de produzir a ordem (as grandes avenidas trariam ordem às grandes cidades) enquanto o segundo é uma certa constatação do império do caos: a despeito das grandes avenidas, o tráfego é caótico, e vivo, e democrático, e anárquico. Mas a diferença é mais complicada que isso, pois o modernismo mais recente lida exatamente com sistemas complexos: Freud e as maluquices da mente, Darwin e as estratégias da natureza para evoluir, Marx e a organização econômica da sociedade.

A grande diferença entre a modernidade e a pós-modernidade não está na fragmentação e na complexidade, mas sim na esperança da modernidade de criar a ordem a partir de valores absolutos. Para um modernista, é possível criar um super sistema de controle de tráfego que trará “ordem” à cidade – a não ser que os motoqueiros atrapalhem tudo. Para um pós-modernista, os motoqueiros, com toda a mobilidade, toda a liberdade, toda a transgressão, é que são os agentes da real evolução da nossa sociedade.

O modernista tenta acabar com os motoqueiros, pois eles atrapalham a sua visão de um mundo parecido com um exercício militar em homenagem ao Führer. O modernista produz carros e motos e avenidas super rápidos, depois coloca a culpa dos acidentes nos motoqueiros. O duro fato é que a própria ordem dos carros velozes, que só na teoria andam em linha reta, é a principal causa dos acidentes. Por outro lado, a aceitação da desordem do tráfego urbano, com seus pedestres, ciclistas, motoqueiros, carangueiros, cadeirantes e ônibus, representa a criação de um mundo mais seguro para todos. Parece contraditório, não é mesmo, que a ordem destrua e que a aceitação do caos construa? Mas a história nos diz que não é contraditório, pois todas as chacinas e ditaduras tiveram como base ideológica a criação da ordem.

No mundo real, o bem estar de todos nasce da complexidade democrática e do diálogo entre os infinitos interesses, não de uma imposição simplista de uma ordem falida que tenta controlar a todos com seus valores absolutos. Esses modernistas acham que basta proibir garupas para acabar com os crimes, que basta um viaduto para acabar com os congestionamentos, e que basta imaginar uma nova lei para diminuir os acidentes. Simplórios. Simplórios e malditos.

Se bem que essa fascinação pela complexidade, pela multiplicidade de vozes e visões, e pela democracia, tem os seus perigos: a charlatanice (“se nada tem valor absoluto, então tudo vale”), o obscurantismo (“a energia dos chacras tem o mesmo potencial que a energia solar, apenas não entendemos isso ainda”), a inação (“não façamos nada antes de entender tudo e de ouvir a todos”), a pasteurização (“precisamos encontrar um consenso que satisfaça todas as opiniões”) e a demagogia (“estou fazendo isso porque é a vontade da maioria”).

Não dá para esperar compreender tudo para acabar com os acidentes e com a poluição. Tem horas que é preciso fazer alguma coisa. Mas não qualquer coisa. Não agir porque ainda não se sabe tudo é burrice, mas agir sem se basear no melhor conhecimento do momento é mais burrice ainda. Na hora de agir, é preciso sabedoria para juntar o conhecimento e para usá-lo. Então, escolhida a melhor ação baseada no que de melhor sabemos, vem a ação política, como na música do U2: “Tudo o que eu tenho é uma guitarra vermelha, três acordes e a verdade”.

Assim como é preciso ouvir especialistas e motoqueiros para aprender o que fazer para acabar com os acidentes, é preciso encontrar um ponto de equilíbrio na ação política. Não devemos ficar parados estudando até que tudo seja compreendido, nem ao menos devemos agir baseados apenas em nossas preconcepções. É preciso inteligência para atingir esse ponto de equilíbrio, com a melhor ação possível baseada no melhor conhecimento disponível no momento.

Essa questão muito me importa porque meus textos são, de certa forma, políticos. Certamente não podem ser classificados só como acadêmicos, só como pessoais, só como literários, jornalísticos ou só como técnicos. Às vezes o Equilíbrio em Duas Rodas me parece um embuste, pois uso conhecimentos técnicos, meus estudos e a minha vivência para conduzir as discussões para a direção que me convém. Outras vezes o vejo como uma nova forma de ensino, pesquisa e extensão, uma mistura de reflexão e de ação, uma forma de admitir que não dá para separar o sujeito do objeto estudado e vivido. Assim como as críticas e elogios à pós-modernidade, de que é obscurantista, democrática, sem valores, profunda e superficial, às vezes acho que meus textos são só para promoção pessoal e às vezes acho que eles contribuem sim para uma melhor compreensão das coisas das duas rodas.

Minhas ações como professor, escritor, pesquisador, cidadão e motoqueiro claramente têm um lado político, uma tentativa de mudar as coisas. Não há como fugir disso. Agora, a questão é que a ação política de um indivíduo pode ser motivada por vários interesses, muitas vezes inconscientes, como a promoção pessoal, ganhos financeiros, necessidade de controlar os outros ou o desejo de mudanças positivas. O segredo parece ser sempre usar a política apenas no último senso: mudanças positivas.

Sempre que percebo que estou usando a política como autopromoção, me lembro que quero sim, como todos, ser admirado. Mas não pela força política, e sim pela inteligência (não que eu a possua, mas isso não me impede de querer ser assim admirado) e pela proposição de novos pensamentos (“Não almejo despertar convicção. Almejo estimular o pensamento e perturbar preconceitos.” – Sigmund Freud), atributos esses que quase sempre são negados pela ação política. Pois essa, pela necessidade de concentrar esforços, acaba quase sempre limitando a liberdade de pensamento. Pior ainda, ao agir politicamente, em sociedade, muitas vezes precisamos entrar em acordo com os outros, cedendo em nossas crenças. Isso é horrível, intelectual e filosoficamente, pois, se somos psicologicamente íntegros, sempre temos uma posição clara e uma opinião certeira – que mudam com o tempo, é certo, mas isso é outra história. Nesse sentido, a ação política é uma facada na individualidade de quem a pratica.

Então, para mim, embora a ação política seja indispensável para melhorar o mundo, também é uma inimiga da honestidade intelectual e da integridade do indivíduo. É preciso equilíbrio para oscilar entre esses dois extremos, pois é tão errado agir por maus princípios quanto não agir por bons princípios.

Quanto às outras possíveis motivações para fazer a política, não tenho medo, pois fazer política por interesses econômicos é pífio e tentar controlar a vida dos outros é doentio – simples assim. Política só para contribuir na mudança do mundo para melhor. Dinheiro não preciso (“we fought for justice and not for gain“), controlar os outros também não, e admiração tento merecer por outros meios. “Tudo o que eu tenho é uma guitarra vermelha. O resto é com vocês”.

Essa música do U2, All Along the Watchtower, que na versão deles tem a frase sobre a guitarra, os acordes e a verdade, que acho que tão bem simboliza o momento da ação política, foi composta pelo Bob Dylan logo após o mais mítico acidente de moto da história do rock’n’roll. Ninguém sabe direito a extensão dos ferimentos, mas o fato é que Bob Dylan usou isso como desculpa para uma reclusão criativa.

As músicas de Bob Dylan são caracterizadas por sequencias de imagens. Quer dizer, ao ouvir uma música dele você assiste um filme passando pela cabeça, como em Blowin’ in the Wind, em que ele fala sobre homens caminhando em estradas, bolas de canhão voando pelos céus, e pombas brancas descansando na praia depois de uma longa viagem pelo mar. Essas imagens em flashes são mais claras em Chimes of Freedom, na qual um músico se solidariza com aqueles que estão por baixo ou sendo tratados com injustiça, usando para isso a imagem de pessoas se protegendo de uma tempestade, assim como os motoqueiros se protegem da chuva debaixo dos viadutos.

Dizem que essa técnica foi inspirada por Jack Kerouac, escritor iconoclasta da Geração Beat famoso pelo livro On the Road, que por sua vez inspirou outros milhões a trilharem as estradas da vida, em busca de uma nova filosofia, de uma nova sociedade, de novas experiências e sensações. Esse livro foi recentemente adaptado para o cinema por Walter Sales, mais famoso no mundo motoqueirístico pela direção de Diários de Motocicleta do Che Guevara.

Além de ter influenciado Bob Dylan, On the Road influenciou o Jim Morrison aí de cima, que talvez nem tivesse criado (o) The Doors se não tivesse lido o livro. Outro cara influenciado, que eu gosto muito, é Hunter S. Thompson, que escreveu a road novel Fear and Loathing in Las Vegas e, principalmente para nós os motoqueiros, Hell’s Angels: The Strange and Terrible Saga of the Outlaw Motorcycle Gangs, contando suas experiências com os famosos motoclubeiros americanos.

O que mais me chama a atenção no Hunter S. Thompson nem é a sua forte relação com as motos, mas sim o seu jornalismo, que mistura investigação com ação política, observação com a participação do jornalista nos eventos, e que também mistura ficção e dados; no que ele chama de Jornalismo Gonzo, uma corrente só dele do Novo Jornalismo.

Esse último ponto é o mais interessante, a mistura de ficção e dados. É comum, e errado, assumir que dados não mentem. O problema é que você pode mentir escolhendo só os dados que te interessam – como qualquer jornalista, político ou marqueteiro podem atestar. Por outro lado, a ficção, muito embora não seja a reprodução fiel dos dados, pode sim representar a realidade de forma muito mais completa. William Faulkner disse que “os fatos e a verdade não têm realmente muita coisa em comum”, com o que concordo completamente. Hunter S. Thompson tinha compromisso com a verdade, não com os dados, e por isso tomava certas liberdades literárias nas suas reportagens. Para quem tiver interesse em conhecer um pouco mais sobre ele, recomendo o filme The Rum Diary, feito por seu amigo Johnny Depp baseado em um livro do próprio Thompson, uma ficção inspirada no começo da sua vida de jornalista. “E se a bebida não te trouxer problemas, uma mulher certamente o fará – e tente parecer normal” – diz o trailer.

O cuidado que precisamos ter é que esse Novo Jornalismo, assim como o caos e a pós-modernidade, também pode ser usado para o mal. Nele, o jornalista é colocado no olho do furacão, produzindo um relato bastante subjetivo. Isso pode ser perigoso quando o cara é um mau-caráter e pode ser muito chato quando ele é desinteressante. Não tenho paciência nenhuma quando um jornalista sem graça se coloca como centro da matéria.

O jornalismo dever ter compromisso com os fatos ou com a realidade? Quem descreve melhor a realidade de um evento, uma fotografia (baseada apenas em dados reais, mas limitada no tempo, espaço e ponto de vista) ou um texto (que pode expressar emoções, vários pontos de vista, e falar de outros lugares e de outros tempos)? Depende. O importante aqui é que é possível mentir com fotografias, com números e com textos, e é possível expressar a realidade com fotografias, números e textos. Você pode se ater a uma técnica (fotografia, escrita ou matemática, ficção, oratória ou documentário) ou a um princípio (o dinheiro, o poder ou a verdade). Eu escolho a verdade.

Dia desses encontrei, no blog do Geraldinho, que viajou para o Atacama comigo, uma foto minha bem legal com o Oceano Pacífico ao fundo. Essa foto não é uma montagem, é baseada totalmente em dados. Agora, olhando só para ela, dá para perceber que atrás da câmera estava a Cordilheira da Costa que nos levaria para o Deserto do Atacama? Aparecem os amigos que estavam junto comigo? Expressa a saudade que eu estava do meu trabalho na universidade? Representa que tenho muito mais dedicação ao motoqueirismo das ruas do que ao mototurismo das estradas? Para mim, que estava lá, e que sei que levava vários livros junto comigo ali na moto, e que sei tudo o que já vivi em minha vida, a foto representa as coisas que mais desejo: sabedoria e fantasia, mobilidade e aventura, encontros e desencontros. Um livro no alforje, uma moto na estrada e uma pitada de sorte nos encontros que o acaso nos reserva. O que mais alguém pode querer da vida?

Embora essa foto seja baseada em dados da realidade, ela dá muito mais liberdade para criações literárias na cabeça de quem a vê do que se eu escrevesse um texto contando como havia sido aquele dia. Engraçado, pois nesse caso a fotografia realista estaria a serviço da imaginação, e a criação artística estaria a serviço da realidade.

Óbvio que a fotografia também é uma forma de arte, pois o fotógrafo escolhe o momento, a iluminação, o foco, e a distância; eu forcei a barra apenas para reforçar o meu argumento. O que importa, vou repetir, é que é possível falar a verdade ou mentir usando várias técnicas diferentes – seja ela a fotografia, a escrita ou qualquer outra.

Deixando isso de lado, o que eu mais gosto dessa foto no Pacífico são os contrastes. Entre a máquina e a natureza. Entre o mar, o céu e a terra. Entre o preto e o azul claro. Cores essas que coincidentemente se chocam tanto na minha vestimenta quanto entre minha moto e o céu. Por outro lado, embora tenha esses contrastes, é uma imagem que passa equilíbrio. Afinal, o equilíbrio pode ser alcançado tanto com a homogeneização (como querem os modernistas que adorariam que as motos desaparecessem) quanto com o eterno movimento entre os extremos (como na harmonia entre os cadeirantes e os ônibus).

É possível ter equilíbrio tanto na igualdade autoritária quanto nas diferenças democráticas. É possível ter equilíbrio em sua moto quando você está parado no chão, estático, morto, ou quando está em movimento, dinâmico, oscilando eternamente de um lado para o outro. A diferença é que um tipo de equilíbrio (estático) significa a pobreza, a morte e a estagnação, enquanto o outro (dinâmico) significa a diversidade, a criação e o movimento.

Espero que o Equilíbrio em Duas Rodas trabalhe para esse equilíbrio vivo, dinâmico. Equilíbrio entre o transporte público e o individual; entre bicicletas, motocicletas e automóveis; entre propulsão humana, motores de combustão interna e motores elétricos; entre autoridades e motoqueiros; entre organizações e indivíduos; entre o mundo acadêmico e o mundo real; entre a teoria e a prática; entre a ordem e o caos; entre a engenharia e as humanidades; entre a sociedade e o cidadão; entre a ciência e a arte; entre o moderno e o pós-moderno; entre o frio e o calor; entre a cidade e a estrada; entre a terra e o asfalto; entre o claro e o escuro; entre o tradicional e a novidade; entre o pensado e o intuitivo; entre o racional e o artístico; entre o lido e o escrito; entre o falado e o ouvido; entre a loucura e a lucidez; entre o uniforme e a nudez; entre o fim do mundo e o fim do mês; entre a verdade o rock inglês; entre os outros e vocês. O que me lembra da música A Revolta dos Dândis I, dos Engenheiros do Hawaii, que faz dupla referência ao Albert Camus, aquele da lista dos

Os Engenheiros do Hawaii eram estudantes de arquitetura, que é uma atividade bem peculiar, pois é ao mesmo tempo utilitária e estética, baseada na arte, na sociologia e na engenharia. A banda tem lá as suas razões para ter escolhido esse nome, mas não vou deixar, de novo, a realidade estragar uma boa ideia. Para mim, a expressão “engenheiros do hawaii” significa tanto os choques quanto as criações que surgem quando juntamos tecnologia com humanismo, ordem e caos, Apolo e Dionísio.

Essa é uma discussão antiga, pois em geral os engenheiros acham que os humanistas são charlatães, enquanto os humanistas chamam os engenheiros de simplórios. Gosto da arquitetura porque tem a capacidade de juntar esses dois mundos, assim como o design. Se bem que é bom tomar certo cuidado, pois a arquitetura também pode ser mal usada, como por Le Corbusier em suas grandes avenidas sem vida, ou por Jane Jacobs, que com seu discurso pseudodemocrático propunha uma alternativa que na prática favorecia o elitismo social e a estagnação cultural.

De certa forma, mesmo que sejam vistos como ferrenhos adversários ideológicos, vejo que tanto Le Corbusier quanto Jane Jacobs são modernistas, pois acreditam que um planejamento central (seja a construção de uma avenida ou uma lei que obrigue a eternização das pracinhas) vai resolver tudo. Pós-modernos mesmo, no bom sentido, democrático, adaptativo e inteligente, são os motoqueiros que transgridem as regras que causam as desgraças.

Há três possibilidades aqui. Podemos acabar com os motoqueiros (a cidade pára e fica chata), podemos fazer mais regras contra os motoqueiros (os acidentes aumentam) ou podemos ouvir o que os motoqueiros têm a dizer (produzimos uma cidade mais legal, segura, culturalmente rica e economicamente mais ativa).

No mundo real dos motoqueiros há tensão entre as classes, colisões, mortes, brigas, e a eterna luta do indivíduo contra a ordem do estado; mas também há diversão, agilidade, vida, e diversidade. Na verdade, contrariando quase tudo que escrevi até aqui, percebo agora que o mundo dos motoqueiros nem sempre pode ser bem representado pelas obras musicais, que no final das contas buscam uma ordem, mesmo que uma ordem incompreensível para os pobres imbecis como eu.

Embora eu tenha dito que as fugas podem representar bem o tráfego urbano, acho que isso só acontece na sua capacidade de representar a complexidade da forma, mas não de representar a busca de um equilíbrio democrático entre os mais diversos interesses da vida. Esse tipo de música busca a ordem, a vida busca a vida. E nem sempre a ordem está a favor da vida, como a ordem de Hitler de purificar a Alemanha. A fuga é apolínea, enquanto o tráfego de motos é dionisíaco. A fuga é moderna, enquanto o motoqueirismo é pós-moderno. Sim, porque andar de moto não é apenas utilitário, mas também, e talvez acima de tudo, uma atividade estética, política e cultural. Rodar de moto é uma expressão artística que nos remete aos sentimentos mais profundos da humanidade, como o fascínio por compreender a morte e o acaso, a vontade de viver e a rebelião contra o autoritarismo. Por isso talvez a classe média e as autoridades, control freaks, tenham tanto medo, repulsa e ódio dos motoqueiros.

Precisamos de certa ordem para compreender o mundo, mas não podemos restringir o mundo a seguir uma ordem que é apenas uma pálida lembrança de todo nosso potencial criativo. Como eu disse ali em cima, mesmo sabendo das limitações da ciência, da arte e da religião, precisamos delas para compreender o mundo e para agir no mundo; mas sem deixar que uma parte da sociedade massacre a outra, sem deixar que a ordem destrua a vida.

Um dos livros que citei como preferido foi A Insustentável Leveza do Ser, que conta uma mesma história a partir de quatro personagens: Tomás, Tereza, Sabina e Franz. Tomás é um indivíduo massacrado pela autoridade do estado, o que representa bem o massacre ideológico que o estado, as fábricas e a mídia estão realizando sobre os motoqueiros: nem lhes dando voz, nem resolvendo de fato os problemas.

O mais interessante no livro do Kundera – além da sua discussão sobre o kitsch que me marcou muito por dar nome para um conceito que flutuava disperso em minha mente na adolescência -, no entanto, é sua estrutura entrelaçada formada a partir de quatro vozes tão diferentes. Essa estrutura aparece em outros livros legais, comoCloud Atlas, que tem como tema a violência do ser humano sobre outro ser humano; Os Imperfeccionistas, com a história de um jornal vista por repórteres, editores, leitores e proprietários; e Corelli’s Mandolin, que mistura guerra, paixão, cultura, uma moto e muita música.

O livro desse tipo entrelaçado que mais tem a ver comigo é An Instance of the Fingerpost, que se passa na Inglaterra dos anos 1660, época em que Boyle, Locke e Wren contribuíam na construção da ciência moderna, com todas as suas contradições, limitações e fascinações, ajudando assim a destruir a visão escolástica tacanha da Igreja e trazendo mais luz ao mundo.

Uma das razões de eu gostar tanto de Termodinâmica, que é a disciplina que mais vezes ministrei, cerca de 50 turmas, é a sua história. No final do século XVIII, grandes cientistas, como Lavoisier e Laplace, fizeram grandes contribuições. Mas no meio de tanta grandiosidade, os caras defendiam algumas bobagens, como uma tal de Teoria do Calórico, que advogava por algo que não existia. Os caras eram tão bons no que faziam, e acertavam tanta coisa, que era quase impossível provar que estavam errados em certos casos. Essa tal Termodinâmica (1a Lei: A Energia se Conserva; 2a Lei: As Coisas Acontecem Naturalmente em Apenas Uma Direção), que veio do estudo prático dos motores que mais tarde moveriam nossas motos, era uma teoria científica contrária ao calórico de Laplace e Lavoisier, e que teve que nascer nas ruas e lutar contra essas autoridades acadêmicas para provar o seu valor. Benjamin Thompson era inventor, Sadi Carnot engenheiro do exército, Joule produtor de cerveja e Robert Mayer médico. Ciência feita nas ruas.

Por falar em Termodinâmica, um livro bem legal que une a segunda lei com a biologia humana com essa história toda de entrelaçamentos é The Touchstone of Life, de W.R. Loewenstein. Ele fala mais sobre a informação do que sobre a sua inversa entropia, e, também, trata de motores humanos e não sobre as máquinas térmicas que deram origem a essa ciência, mas é termodinâmica do mesmo jeito. Afinal, muito embora nós engenheiros mecânicos tenhamos sorte ao estudar termodinâmica porque a sua história coincide com a nossa, a verdade é que a termodinâmica é a base de todas as ciências naturais.

Sobre o início da ciência moderna tem o Baroque Cycle, que se passa mais ou menos na época do An Instance of the Fingerpost, muito antes portanto da termodinâmica, mas com a mesma guerrilha intelectual que apareceria novamente no século XIX. O interessante desse livro do Neal Stephenson é que mistura ciência com política com comércio, história real com ficção, vida nas ruas caóticas com planejamento arquitetônico centralizado, sabedoria acadêmica com aventuras de piratas, nobreza e burguesia e mundo acadêmico; em uma história montada a partir do entrelaçamento dos pontos de vista de vários personagens, dos mais simples aos mais estelares, todos eles, famosos ou não, igualmente responsáveis pelo mundo moderno.

Onde está a inteligência na ciência? Está nos grandes cânones como Newton, Lavosier e Laplace, ou está nos cientistas de guerrilha, como Carnot, Ulam e Lorenz? Está na mente dos gênios ou na cultura científica que permeia a todos. Onde está a inteligência do tráfego, que permite o deslocamento de milhares de pessoas? Está nos condutores, no projeto das vias, nos veículos, nas leis, nas regras ou nos costumes sociais? É fácil descobrir, tire um desses elementos e imagine o que aconteceria. Veículos sem condutores bateriam, condutores sem regras bateriam. Portanto, para manter um fluxo alto e seguro, é preciso uma eterna retroalimentação entre a inteligência dos indivíduos e a inteligência do sistema. Para manter a ciência em constante evolução é preciso da solidez dos gigantes e a leveza dos visionários. Para manter o tráfego seguro e com fluidez é preciso de vias bem feitas e motos bem projetadas e motoqueiros inteligentes.

Onde está a inteligência que irá diminuir os acidentes, a poluição, o desperdício, os congestionamentos e a segregação social? Está nos políticos que sabem como agir para mudar o comportamento da sociedade, nos acadêmicos que conhecem as principais causas dos acidentes, nas fábricas pós-modernas que irão finalmente projetar motos seguras ou nos motoqueiros que conhecem toda a complexidade do tráfego? Em todos eles. A inteligência está tanto nas partes como no todo. A inteligência está no estudo e na ação. A inteligência está no eterno diálogo.

Assim como em um desenho do Escher ou em uma fuga do Bach, não tenho a intenção de chegar um dia a um texto definitivo, ao modelo matemático perfeito ou à aula perfeita. Não creio que isso seja possível, nem para os gênios citados, nem para os medíocres como eu. O que eu espero é que o conjunto de todos os textos, todas as aulas, programas, viagens, palestras, deslocamentos urbanos e conversas que pratico crie uma mínima mudança positiva que seja. Pois eu acredito, mesmo, quase como uma crença espiritual, que as grandes mudanças só podem ser realizadas por um quase infinito número de visões, ideias e atores. A minha infinitesimal contribuição está nessas ações, bem menos que uma guitarra vermelha e três acordes, é certo, mas mesmo assim uma contribuição.

Voltando ao existencialismo, há uma crítica comum que diz que a única questão desse ramo da filosofia é determinar se alguém deve se suicidar (filosoficamente, simbolicamente) ou não. Afinal, se não há nada, por que viver, por que lutar, para onde ir, que lado escolher? Acho que a questão não é por aí. Talvez o que nos empurre a sempre desejarmos viver, aprender e sentir seja a busca para encontrar ou para criar a nossa própria identidade, e dessa forma nos sentirmos participantes na criação do todo.

Penso que há duas escolhas: ou aceitar as ilusões simplórias que são oferecidas ou ter a coragem de suportar o nada. Para sobreviver nesse segundo caminho talvez seja preciso perceber dentro de si o núcleo interno plástico e permeável, mas de altíssima inércia, o tal do Atman, que permite perceber a realidade do mundo sem precisar sair de centro, sem precisar fugir do nada, sem precisar inventar ilusões, ou sem precisar criar barreiras externas. Algo parecido com o ocidental self, um núcleo, coisa bem diferente do ego, que por sua vez não passa de uma casca imbecil e estéril. No entanto, talvez mesmo o Atman ainda seja uma ilusão, embora mais sofisticada, e precisemos então reconhecer Anatta, dissolvendo-nos no todo e no nada. Viver sem precisar ser desajustado, alienado, maria-vai-com-as-outras, psicótico ou mais-do-mesmo. Saber oscilar entre os pequenos fenômenos universais e os grandes eventos particulares, entre o que acontece super rápido e o que demora eras para retornar ao início mas nunca do mesmo jeito. Existir em um eterno entrelaçamento entre escalas físicas e temporais. Flutuar nas instabilidades, nas oscilações, tanto nos detalhes quanto nas tendências gerais. Fluir no tráfego, curtir os encontros casuais, viver no presente. Isso porque, para uma pessoa com um núcleo forte ou, melhor ainda, um núcleo difuso e caótico e anárquico, é possível tanto ser de forma integral quanto sentir de forma total.

Viver de verdade é agir como uma moto bem projetada, que oscila incessantemente de um lado para outro, em equilíbrio dinâmico, vivo, um equilíbrio em duas rodas, sem jamais cair, sempre indo em frente.

Ao rodar de moto encontramos pessoas, sentimos o mundo, enfrentamos a morte e a violência, nos mostramos de forma tola, nos ajudamos como santos e nos divertimos como loucos. Bem, assim como o Escher, que ao desenhar o mundo exterior em Mão com Esfera Refletora (1935) acabou encontrando a sua própria imagem refletida, ao pilotarmos nossas motos e ao pensarmos sobre as motos talvez encontremos o que há de melhor em nós mesmos. E nesse processo todo talvez deixemos um pequeno rastro em uma poça d’água da história, que será notado por um outro viajante, que por sua vez criará um novo pensamento. Ad infinitum, quod erat demonstrandum.

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