A Liga Extraordinária Contra os Motoqueiros da Maldade

© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: Má-Criações em Duas Rodas

A LIGA EXTRAORDINÁRIA CONTRA OS MOTOQUEIROS DA MALDADE
Fábio Magnani
[publicado originalmente em julho de 2014]

Vrum, vrum, vrum, po-po-po-pó. Zum, zum, zum, to-to-to-tó. O motoqueiro é tão bacana, mas também não é nenhum banana. Vrum, vrum, vrum, po-po-po-pó. Zum, zum, zum, to-to-to-tó. Quando a moto torce o cabo, pode ser o diabo, e ora vejam só. Vrum, vrum, vrum, to-to-to-tó. Era uma vez (e é ainda) certo país (e é ainda) onde os motoqueiros eram tratados como bestas (são ainda, são ainda). Tinha um chefão (tem ainda) espertalhão (tem ainda), só voava e então achava a vida linda (e acha ainda, e acha ainda). Vrum, vrum, vrum, po-po-po-pó. Zum, zum, zum, to-to-to-tó. O motoqueiro é paciente, mas também não é nenhum demente. Vrum, vrum, vrum, po-po-po-pó. Zum, zum, zum, to-to-to-tó. Quando o homem exagera, motoca vira fera, e ora vejam só. Vrum, vrum, vrum, to-to-to-tó.

Era uma vez um país muito muito distante. Nesse país eles não sabiam fazer veículos seguros. Vejam que loucura: tanto os para-brisas dos carros quanto as viseiras das motos eram todos pintados de preto. Não dava pra ver quase nada, a não ser pelas frestas. Com esse projeto, um veículo não sabia que o outro se aproximava, a não ser quando já estavam muito próximos, e daí não havia mais nada para ser feito. Por exemplo, se você estivesse andando muito rápido no seu carro, tipo a 50 km/h, quando percebesse um outro veículo entrando repentinamente no cruzamento, ou então uma criança correndo para a faixa de pedestre, não dava mais tempo para parar. Se você tentasse desviar, podia até causar um “acidente” pior ainda. Sei que é difícil acreditar que eles eram tão burros assim, que não viam que os veículos é que causavam as milhares de mortes no trânsito, e que eles teriam que melhorar a comunicação entre os veículos ou então baixar a velocidade se quisessem diminuir as mortes. Mas podem acreditar em mim quando digo que tudo isso foi verdade.

No tal reino distante, que não era o Brasil, os veículos, por serem tão mal projetados e ineficientes, pesavam centenas de quilogramas, e, embora a lei dissesse que podiam rodar no máximo a 60 km/h, vinham com potência suficiente para trafegar a mais de 120 km/h. Além disso, a mesma concepção de projeto era usada para veículos vendidos em cidades grandes e pequenas, congestionadas e livres, para estradas asfaltadas ou de terra. Quer dizer, eles eram uma porcaria na maioria das situações. Ainda bem que não era no Brasil.

Nenhum desses veículos era integrado ao transporte coletivo, o que obrigava a construção de avenidas imensas, que viviam congestionadas, quentes e com ar envenenado. Os veículos não podiam ser guardados dentro de casa, fazendo com que parte considerável da cidade fosse destinada a garagens, estacionamentos públicos e privados. Outro problema é que os veículos consumiam 30 vezes mais energia do que seria possível com a tecnologia existente. O que por um lado era ruim para quem pagava pelo veículo e pelo combustível, mas em compensação era excelente para quem fabricava os calhambeques, para quem construía as ruas, para quem produzia a gasosa e para quem recolhia os impostos.

Morriam mais de 10.000 motoqueiros por ano, e cerca de 100.000 se envolviam em “acidentes” gravíssimos. O mesmo destino sanguinolento era reservado aos sapateiros, cadeirantes e bicicleteiros. Claro que as vítimas percebiam que o problema estava na concepção das vias e principalmente na concepção dos veículos, mas as autoridades, a mídia, as fábricas, os empregadores e a classe média insistiam em dizer que a culpa estava somente na imprudência dos motoqueiros.

E assim conseguiram empurrar o mal com a barriga por um tempo, pois a elite só rodava de carro blindado, de helicóptero ou de avião, e, também, porque a economia do país andava de vento em popa, então a mídia estava toda bem humorada com seus anunciantes públicos e privados. Nada impedia que as metas anuais do país fossem alcançadas, pois para cada motoqueiro trabalhador morto havia outros três para colocar no lugar. Sapateiros e bicicleteiros sobressalentes apareciam aos borbotões.

Só que as mortes criavam famílias descontentes, mal humoradas, chatas, chorosas e ressentidas, que deprimiam o bem estar do país. Ainda, os motoqueiros mortos estirados no chão atrapalhavam o trânsito, espantavam os turistas e assustavam as criancinhas. Sem contar os altíssimos gastos com o resgate dos “acidentados”, tratamento hospitalar e pensões indenizatórias. Alguma coisa precisava ser feita.

Foi então que o sábio imperador resolveu criar a Liga Extraordinária dos Célebres Cidadãos Respeitáveis Contra os Malcheirosos Motoqueiros da Maldade. Sua sigla era pouco memorável, LECCRCMMM, por isso criaram uma grande campanha publicitária para explicar à ralé qual era a pronuncia correta: LECREM, como na chic expressão “Crème de la crème”, simbolizando que a liga era formada pela nata da sociedade.

O imperador então reuniu os cidadãos mais famosos do reino para que propusessem uma solução para tantas mortes, pois ele não aguentava mais tantos gastos nos hospitais e tanta reclamação do populacho. Até convidaram um motoqueiro para a reunião, pois isso serviria para dizer que era um evento democrático. Sempre é bom que o povo esteja presente para ouvir o que pensam os cidadãos bem sucedidos.

Ata da Douta Reunião Com os Célebres Cidadãos

O Formosíssimo Rotundíssimo Ilustradíssimo Imperador, em sua imensa sapiência e bondade, convocou os mais célebres, eruditos e articulados pensadores do nosso amado país para discutirem como diminuir as reclamações e os prejuízos causados pela imprudência, irresponsabilidade e subversividade dos motoqueiros. Eu, secretário executivo da LECCRCMMM, transcrevo fidedignamente a reunião como ocorreu depois do canto do glorioso ‘Hino ao Petróleo’, da cerimônia de entrega do título de ‘Doctor Philotimicus Causa’ ao gerente regional da ‘MotoMoída Maquiladora de Motocicletas’, e dos comentários sobre a festa de noivado da filha do nobre empresário José das Medalhas. Acabando a enrolação, digo, socialização, entrou o Imperador. Os presentes se levantaram. Rufaram os tambores. Rolou o som.

“Urge dracon, ave cesar
Magnificus, supremus, augustus
Divinus, superbus, vitalicius
Professor, diktator, imperator
Professor, diktator, imperator

Evoé colofé

Salve o nosso guia
Pro que der e o que vier
Salve o nosso guia
Jorge Mautner”

MESTRE DE CERIMONIA: “Desculpem, desculpem, desculpem. Mil desculpas. Alguém colocou a música errada”.

IMPERADOR: “Deixa essa bosta pra lá. Vamos ao que interessa. Não aguento mais tanto gasto e tanta reclamação com esses acidentes de moto. Todos sabemos que a culpa é dos motoqueiros. Portanto, não estamos aqui para discutir as causas dos acidentes, que já conhecemos muito bem, mas sim para encontrar uma maneira para que os motoqueiros parem de se matar”.

DOUTOR JUSTO (representante da comissão antimotoqueiros do congresso): “Humoristíssimo Imperador, acredito que a própria realização desta douta reunião já elimina boa parte do problema, pois daremos uma mensagem à população de que algo douto está sendo feito. Afinal, nunca antes pessoas tão doutas, importantes, célebres e articuladas estiveram reunidas”.

DONA MARICOTA (representante das senhoras shoppingueiras bem casadas): “O que devemos fazer é simples e direto. Vamos fazer uma campanha desancando esses motoqueiros. Alguém tem que colocá-los em seus lugares. Hoje em dia ninguém mais pode falar mal de ninguém que já dizem que é preconceito. Todos querem seus direitos: favelados, empregadas, negros, animais, nordestinos, mulheres, velhos, crianças, ladrões, bichas, maconheiros e putas. Ainda bem que falar mal de motoqueiro ainda pode. Vamos aproveitar”.

SEU SUCUPIRA (representante das fábricas): “Temos uma proposta concreta. Podemos criar um novo sistema de frenagem para os veículos, o qual diminuirá o espaço de frenagem em 1,87%. Custará um pouco caro, mas se criarmos uma lei obrigando o seu uso, então todos serão beneficiados: desde as fábricas que aumentarão suas receitas, o governo que arrecadará mais impostos, até os trabalhadores que terão motos mais modernas. Claro que o governo que terá que pagar pelo desenvolvimento dessa nova tecnologia”.

JOSEFINO M. (motoqueiro popular e anônimo): “Pera aí. Como assim, ‘moto mais moderna’? Esse sistema vai diminuir consideravelmente as mortes? E as colisões laterais e os atropelamentos? E quanto aos carros que batem na gente, nos desequilibram e nos jogam para fora da pista? Afinal, esses são os ‘acidentes’ mais comuns. Como um sistema de freio na moto pode diminuir esse tipo de evento?”

SEU SUCUPIRA: “O senhor é contra a segurança dos motoqueiros?”

DOUTOR JUSTO: “Não percamos o foco. Como ficarão as vendas e os impostos com esse novo freio? Será que realmente aumentarão? Vejam que temos que diminuir as reclamações e os prejuízos, mas sem desacelerar a economia”.

SEU SUCUPIRA: “Já pensamos nisso. O novo sistema de freio será totalmente incompatível com as motos atuais. Todos terão que trocar de moto. É um jogo em que todos ganham”.

M.: “Todos menos os motoqueiros, que terão mais gastos com a mesma insegurança. Deixa eu dar uma ideia. Que tal diminuirmos a velocidade dos carros? Seria só uma questão de mudar o software de controle nos veículos existentes. Depois, começaríamos a comercializar carros menos potentes, que custariam menos, beberiam menos e, mais importante, seriam bem menos perigosos. Coisa simples e barata de se fazer”.

SEU SUCUPIRA: “Que asneira. Moto e carro são coisas para macho alfa, que gosta de velocidade. Quem gosta de moto lerda é mulherzinha. Estou começando a desconfiar da masculinidade desses tais motoqueiros”.

CORONEL PEDRADA (representante das indústrias de petróleo): “Pior do que isso: veículos que correm pouco não precisam ser tão potentes, nem tão pesados. Por isso consomem menos combustível, o que afeta o crescimento do PIB e a geração de empregos. Ou será que alguém aqui é contra novos empregos para os trabalhadores tão sofridos de nosso país?”

M.: “Por que então não desenvolvemos veículos elétricos? Por serem mais eficientes, são mais leves e, consequentemente, mais seguros”.

CORONEL PEDRADA: “Você é surdo ou burro? Quer diminuir a empregabilidade no país? Quer diminuir a produção de petróleo, o orgulho da nossa nação? De que lado você está? Seu egoísta. Será que não consegue pensar no povo?”

M.: “Quem sabe então um sistema eletrônico de comunicação entre veículos, que alertasse sobre a presença de pedestres e de outros veículos nos cruzamentos?”

SEU SUCUPIRA: “Em primeiro lugar, estamos desenvolvendo essa tecnologia chique nos EUA, mas ainda estamos muito longe de conseguir algo efetivo. Mas não pretendemos trazer para países do terceiro mundo, pois essa tecnologia, embora bastante simples já que nada mais é que um aplicativo de celular, é patenteada, o que faz com que as motos fiquem muito caras. O ponto principal, no entanto, é que a comunicação entre veículos tira a privacidade das pessoas. Portanto, ao vermos o motoqueiro defender essa tecnologia, podemos ver de que lado ele está. Esse nazistinha de merda quer a volta da ditadura que controlava a vida dos cidadãos”.

DONA MARICOTA: “Por falar em nazistas, por que não obrigamos os motoqueiros a usarem uniformes numerados? Talvez com uma estrela bordada. Melhor ainda, com o número da placa tatuado no punho deles. Essa medida pode até não diminuir os acidentes, mas aposto que diminui os estupros. Lembram do maníaco do parque? Será que ele teria cometido aqueles crimes se tivesse uma estrela bordada na roupa?”

DOUTOR JUSTO: “Lembrança muito apropriada essa da senhora. Eu propus uma lei no congresso para obrigar todos os motoqueiros a usarem roupa completa, toda espumada, com joelheiras, cotoveleiras, luvas e todo o resto. Sem contar a moto, que terá que circular com uma carrada de acessórios cromados”.

DONA MODINHA (representante das lojas de roupas e acessórios, e digníssima filha do Doutor Justo): “Fantástico, papai… digo, deputado. Aliás, por coincidência, estou com um estoque parado cheio de modernas armaduras medievais chiquérrimas, daquelas que protegem todo o corpo. Inclusive, tenho também armaduras para cavalos, que podem ser usadas nas motos”.

DONA MARICOTA: “E o fedor dos motoqueiros, não vai piorar?”

DONA MODINHA: “Não se preocupe. Para o mal cheiro dos motoqueiros nós comercializamos um pó antibacteriano feito com extrato de pímpola orgânica produzida nas fazendas da nossa família”.

DOUTOR JUSTO: “Que será de uso obrigatório se minha lei for aprovada”.

M.: “Mas essa roupa toda não tira a agilidade dos motoqueiros? E o calor, será que não vai causar desconcentração, aumentando mais ainda os ‘acidentes’? E a moto mais pesada, não fica mais difícil de controlar?”

DOUTOR JUSTO: “Nunca ouvi tanta tolice. Você está do lado de quem? Além disso, como os vermelhos verdes andam reclamando da poluição, que segundo eles mata o mesmo que os acidentes, pensei até em integrar uma máscara de gás aos capacetes”.

DONA MARICOTA: “E que tal se as lojas vendessem tudo em pretinho básico, para diminuir a poluição visual causada pelos motoqueiros?”

DOUTOR JUSTO: “Ótima ideia. É um projeto de fácil implantação, pois já fazemos isso informalmente com as capas de chuva, que são completamente pretas. Elas não dão contraste nem quando chove nem durante a noite, e ainda dão o maior calorzão quando abre o sol. Melhor ainda, quando chove, nós sempre aparecemos na TV fazendo campanha para que os carros andem com luz acesa, o que tira completamente o contraste das motos. Não consigo evitar o riso quando lembro dessas nossas sacanagens com os motoqueiros”.

DONA MARICOTA: “Esses motoqueiros são todos uns fedidos por causa do calor. Ou, quando não estão fedendo, então estão molhados como cachorros por causa da chuva”.

M.: “Mas não vivemos em um país tropical? Não é natural transpirar e depois se refrescar na chuva?”

DONA MARICOTA: “Como esse povinho pensa pequeno. Pra que inventaram o ar condicionado? Vá um dia no shopping para ver como todo mundo é cheiroso. Até os pobres que trabalham lá são limpinhos. Parece até um hospital da Europa. Chique”.

RODÃO DESCOLADO (representante dos ‘motociclistas’): “Tudo muito bom, tudo muito bem, mas ninguém ainda tratou do principal dos problemas, que é a confusão entre os ‘motoqueiros’ e os ‘motociclistas’. Exigimos mais respeito a nós, os ‘motociclistas’ diferenciados. Que não sejamos parados nas blitzes. Que ouçam apenas a nossa versão nos programas de TV. Que nossas festas sejam autorizadas pelas prefeituras. Os ‘motoqueiros’ que se danem. Eles são imprudentes e merecem o inferno em que vivem. Nós ‘motociclistas’ diferenciados é que precisamos de apoio”.

M.: “Oi Rodão, tudo bom? Sabe que nunca vou entender o porquê dessa nova mania de separar os motoqueiros em ‘motoqueiros’ mauzinhos e ‘motociclistas’ bonzinhos? Até bem pouco tempo atrás, motoqueiros eram todos que andavam de moto. Tá até no dicionário. Faz parte da nossa cultura”.

RODÃO DESCOLADO: “Para você é Senhor Rodão. É claro que você nunca vai entender a diferença, pois tu é burro. Todo mundo sabe que ‘motoqueiro’ é quem anda de moto pequena, quem trabalha, quem é pobre, maloqueiro, maconheiro, imprudente, que gosta de funk brasileiro. Todo mundo sabe que ‘motociclista’ é quem usa moto para lazer, que gosta de rock americano, que tem moto de boutique, roupa de marca, que respeita a lei, deseja a ordem e ama o progresso. E não venha com essa história de dicionário, pois o Código de Trânsito do nosso país, que não é o Brasil, e as autoridades, que não são as brasileiras, nos chamam de ‘motociclistas’. Seu fedelho de uma fruta”.

SEU SUCUPIRA: “Calma, pessoal, calma. Não percamos a fé de que é possível adestrar os motoqueiros. Quem sabe, podemos fazer um grande evento para entregar prêmios aos educadores que criarem as melhores práticas pedagógicas de convencimento de que o motoqueiro é sempre o culpado. Essas ações poderiam até virar cursos obrigatórios”.

SEU MOTINHO (representante do sindicato): “O sindicato pode ficar responsável pela montagem desses cursos”.

M.: “Quando aparece dinheiro no meio todos se interessam”.

SEU SUCUPIRA: “Você está sendo injusto e ignorante, pois as fábricas investem muito dinheiro no estudo do comportamento do motoqueiro em seu habitat natural, reprodução em cativeiro, hibridização, clonagem, tendência ao suicídio, atração ao risco, encarceramento e inseminação artificial. Estudos esses que visam principalmente provar que os motoqueiros são imprudentes e que não praticam uma boa manutenção de suas máquinas, que são as duas principais causas dos acidentes, como todos sabem. Também temos uma série de premiações para as campanhas mais fofinhas ridicularizando os motoqueiros ou mais sanguinolentas mostrando como eles são cruéis. Sem contar os vários cursos de catequização e disciplinamento de motoqueiros, financiados com renuncias fiscais e espalhados por todo o reino”.

RODÃO DESCOLADO: “O mais importante nesses cursos é deixar bem claro que nem todos são ‘motoqueiros’. Nós somos diferenciados, somos ‘motociclistas'”.

M.: “Que bobagem essa separação. Essa segregação, essa guerra artificial entre semelhantes, só serve para desviar a atenção de que a principal causa dos acidentes são os veículos, que são rápidos demais, pesados demais, cegos demais e burros demais. Todos somos motoqueiros. Todos somos vítimas. Somos todos iguais. Será que morrem proporcionalmente menos ‘mototuristas’ que ‘trabalhadores’? Há algum levantamento nesse sentido?”

RODÃO DESCOLADO: “Somos todos iguais, mas alguns são mais iguais que os outros. Além disso, não precisamos de levantamentos. Todos sabem que os ‘motoqueiros’ são os causadores dos acidentes. Tu é burro ou surdo? Não está entendendo nada do que está sendo discutido aqui? Tá vendo como vocês precisam de mais educação, de mais cursos?”

SEU SUCUPIRA: “Nesses cursos podemos ensinar aos motoqueiros a importância de lavar as mãos, desinfetar as capas e de trocar de moto todo ano. Isso gera empregos”.

RODÃO DESCOLADO: “Poderíamos aumentar os impostos pagos pelos ‘motoqueiros’. Assim eles arcariam com os acidentes que eles mesmo causam e, melhor ainda, teríamos uma diminuição no número de pobres que rodam de moto manchando a nossa imagem de ‘motociclistas’. Mas claro que o aumento do imposto seria só para os ‘motoqueiros’, não para os ‘motociclistas'”.

SINHÁ ALEXANDRA (representante dos ‘ciclistas’): “Esses motoqueiros ameaçam os ‘ciclistas’ diferenciados o tempo todo. Nós queremos trazer uma nova era para esta cidade, mais democrática, mais autêntica e mais livre. Só que essa gentalha de moto só atrapalha”.

DOUTOR CASTRANDO (representante dos médicos): “Os motoqueiros são uma praga. 13% dos motoqueiros chegam ao hospital com álcool no sangue. Os outros 87% são imprudentes”.

M.: “Como o senhor sabe que os outros 87% são imprudentes se trabalha dentro do hospital? Não seria necessário passar meses nas ruas para observar isso? Mesmo os que caem sozinhos, não pode ter acontecido por causa de um projeto mal feito, seja do veículo ou da via? Ainda, será que os laudos de onde o senhor tirou esses números são tecnicamente confiáveis? E a questão do álcool, qual é o percentual dos cidadãos que fazem uso dessa droga? Não é um problema que está além dos motoqueiros, atingindo toda a população?”

DOUTOR CASTRANDO: “Você é surdo ou burro? Não é preciso nenhum levantamento para saber que 87% dos motoqueiros são imprudentes. Vi um acidente na TV que serve muito bem para provar que todos os outros casos são exatamente iguais. Além disso, sempre observo os motoqueiros quando estou tomando um uísque com meus amigos na pausa do trabalho. Tem gente que não consegue perceber o óbvio”.

CANINHA POPISTAR (representante da mídia): “Nossa rede de TV que fez essa reportagem, com a encenação de um acidente que provou definitivamente que todos os motoqueiros são imprudentes. Inclusive, ganhamos um prêmio da MotoMoída por essa reportagem”.

M.: “O problema é que só mostraram um único motoqueiro. E o cara ainda estava encenando. E a grande maioria que anda direitinho? Sem contar que há imprudentes também entre os que dirigem carros, ônibus, helicópteros. Mas a questão principal é que a maior parte dos ‘acidentes’ não ocorre por imprudência, mas sim pela grande complexidade do tráfego e pela velocidade dos veículos. Ao mostrarem cenas de poucos motoqueiros imprudentes, vocês acabam desviando a atenção das reais causas dos ‘acidentes’. As reportagens que vocês mostram são falaciosas e tendenciosas”.

CANINHA POPISTAR: “Vejo que você não entende nada de jornalismo. Sabe de nada, inocente”.

DOUTOR JUSTO: “Sobre jornalismo, fui incumbido de criar um grande instituto de modernas técnicas de propaganda, que será chamado de Instituto de Informação Joseph Goebbels, para juntar todo o conhecimento que já temos contra os motoqueiros, escrever discursos pseudoeruditos para o Imperador, elaborar vídeos engraçadinhos, financiar escritores fantasmas para os blogs pessoais das nossas celebridades, editar revistas ‘científicas’, patrocinar encontros ‘acadêmicos’, produzir eventos culturais, e, principalmente, manipular as redes sociais para que a plebe rude acredite que tem opinião própria. Tudo de acordo com pensamento do Imperador, e, claro, alinhado aos interesses das empresas de sucesso que engrandecem nosso amado reino. Agora, para trazer um cheirinho de povo, vamos usar a elite radical chic como comissão de frente. Com tanta ‘diversidade’ de mídias, com tanta ‘democracia’ na comunicação, qualquer pensamento dissonante será afogado no novo tsunami de informação”.

SINHÁ ALEXANDRA: “Adoro a aparência democrática das redes sociais. Elas conseguem unir o que há de mais manipulativo tanto das assembleias ‘democráticas’ das esquerdas quanto do sistema da ‘democracia’ representativa das direitas. Falando nisso, o que acham de humilharmos os motoqueiros em público para ver se aprendem algo? Tive uma ideia fantástica. As empresas de motoboys podiam obrigar seus funcionários a ficarem parados em uma bicicleta ergométrica enquanto uma moto passa bem pertinho deles, raspando, acelerando na toda, fazendo o maior barulho com a buzina, só para eles sentirem o que sentimos nas ruas. Depois podemos passar na TV e espalhar na internet. Vai ser um sucesso de likes“.

M.: “Mas, e a grande maioria dos trabalhadores de moto que não arriscam a vida dos colegas bicicleteiros trabalhadores, também vão passar por essa humilhação? Não é uma brincadeira muito perigosa? Eles perderão o emprego se não toparem essa monstruosidade?”

SINHÁ ALEXANDRA: “Não se preocupe, será tudo ‘por livre e espontânea vontade’. Além disso, se nós os ‘ciclistas’ diferenciados passamos sustos com os motoboys, por que eles também não podem sofrer o mesmo martírio? Pode não diminuir os ‘acidentes’, mas pelo menos nos vingamos. Veja o lado bom. É até capaz de alguém da nossa tchurma se eleger vereador depois disso. Eles merecem. Nós ‘ciclistas’ diferenciados nos conhecemos desde o jardim da infância. Na realidade, nossas famílias se conhecem há gerações. Tradição. Já vejo o slogan no horário político: ‘ciclistas diferenciados unidos por uma cidade que respeita as pessoas'”.

JUÍZ MORALATO (representante do juizado): “Perfeito, Sinhá Alexandra. Você é sempre um anjinho, sempre preocupada com os outros. Mande um abraço para o seu pai, também fomos amigos na infância. Sobre a sua ideia, estou até aqui pensando em obrigar os motoboys que passarem na minha vara trabalhista a participarem desse experimento social belíssimo, no qual os motoqueiros vão viver os medos que assolam vocês ‘ciclistas’ diferenciados. Quem sabe não colocamos uma buzina de caminhão para assustar mais ainda os pobres coitados? Vai ser muito engraçado ver os motoqueiros se borrando todos em cima daquelas ergométricas. Outra coisa, precisamos aumentar as penas contra os motoqueiros. O que acham de inventarmos uma categoria supergravíssima para quem morrer em um acidente de moto? O elemento poderia perder 87 pontos na carteira”.

SEU PALADINO (representante das motoescolas): “Precisamos é de mais educação formal, maior carga horária nos cursos de formação. Precisamos vender mais educação para os motoqueiros”.

M.: “Eu tenho uma grande dificuldade em entender o que vocês chamam de educação. Vocês usam essa palavra como se pudesse resolver tudo. Como se fosse uma palavra mágica. Às vezes parece que ao falarem sobre educação vocês estão propondo um curso sobre legislação, como se alguém nesse mundo não soubesse que é proibido andar na contra mão. Outras vezes um treinamento de pilotagem, como se isso fosse impedir que alguém fosse atingido por um carro em um cruzamento. Também têm as campanhas ideológicas para educar toda a população para que acredite que o motoqueiro é sempre o malvado da história. Muitas vezes as propostas me fazem lembrar das disciplinas de educação moral e cívica, ou então a defesa da tradição, família e propriedade. Afinal, o que é educação para vocês?”

DOUTOR CASTRANDO: “Logo se vê que o senhor não tem educação. Por definição, se um povo tem educação, não existem acidentes de moto. Se existem acidentes de moto, o povo não tem educação. Educação é isso. Simples de entender. Pelo menos para quem tem educação”.

M.: “Educação para cá, educação para lá. Ainda não entendi o que vocês querem dizer com educação”.

SINHÁ ALEXANDRA: “Deixa eu explicar bem mastigadinho. Educação é o que acabará com todos os acidentes. A educação é que trará a paz, a ordem e o progresso para a nossa nação. Por exemplo, quando eu chego em um lugar com minha bicicleta holandesa, toda vestidinha de cycle chic, os porteiros e os zeladores me cumprimentam sorridentes. O povo adora os ‘ciclistas’ diferenciados. Isso é um sinal de que esses empregados foram bem educados, entendeu? Agora, por que você faz tantas perguntas? Você é contra a educação dos motoqueiros? ”

JUÍZ MORALATO: “Essa educação precisa ser vendida principalmente para os homens pardos mais jovens, que constituem 87% dos mortos. São uns irresponsáveis”.

RODÃO DESCOLADO: “São é uns ladrõezinhos de favela, vamos falar o português claro”.

M.: “Mas, vossa santidade, se 87% dos motoqueiros que rodam no dia a dia são homens mais jovens, não seria de se esperar que constituíssem 87% dos mortos? Isso não quer dizer que sejam irresponsáveis, mas simplesmente que são em maior número. O mesmo vale para as estatísticas das regiões mais pobres. Há mais ‘acidentes’ por lá não porque os pobres são menos educados ou mais irresponsáveis, mas simplesmente porque regiões mais pobres tem mais motos. Os veículos é que são perigosos. Quanto mais veículos, mais mortos. Matemática simples”.

CANINHA POPISTAR: “Que conversinha chata. Não entendi nada dessa enrolação numérica do ‘motoqueiro’. Fala muito, fala muito. Mas, falando agora do que interessa, alguém viu o último lançamento da MotoMoída? Está no nosso caderno de veículos, na página dos ‘motociclistas’. Uma supermoto que chega aos 300 km/h”.

RODÃO DESCOLADO: “Cara, a vermelha é linda. Se eu pego uma moto dessa meus amigos vão ficar verdes de inveja. Sou capaz de chegar em Pirarucu em 20 minutos, só tirando fina dos carros. Vou comprar uma para oferecer à gurizada lá no meu curso de pilotagem esportiva. Que motão. Coisa pra ‘motociclista’. ‘Motoqueiro’ não serve nem para polir uma belezura dessas”.

DONA MARICOTA: “Não entendo esse amor que os motoqueiros têm por suas motos. Por isso que são pobres. São uns preguiçosos. A pizza nunca chega quente. E, se depender da velocidade que chegam os remédios, estaríamos todos mortos lá em casa. Os motoqueiros não se importam com ninguém. Deviam se divertir menos com suas motos e trabalhar mais para levar comida para seus filhos”.

SINHÁ ALEXANDRA: “É, pensando nas mulheres e nos filhos dos motoqueiros, eu até entendo que os motoqueiros tenham que trabalhar. São uns pobres coitados. Mas, por que eles insistem em rodar à noite e aos finais de semana? Por que não ficam em casa em segurança? Por que se arriscam a tomar vento desnecessariamente?”

M.: “É que nós não usamos a moto só para trabalhar. Usamos também pra passear com nossas namoradas, pra ir à praia, pra dar um rolê com os amigos. É gostoso andar de moto. Vocês não gostam de andar de bicicleta?”

SINHÁ ALEXANDRA: “É diferente. Nós ‘ciclistas’ diferenciados temos uma ideologia evolucionária, nós somos a vida da cidade. Vocês nunca entenderão a diferença”.

CANINHA POPISTAR: “Oi Alexandra, tudo bom? Lembra quando eu ia na sua casa nas festinhas do seu irmão? Bons tempos, né? O que você acha de fazermos uma reportagem sobre a empresa de biciboys dos seus amigos? Aqueles rapazes bem educados que montaram uma empresa de entrega por bicicleta estão realmente trazendo um novo tempo para a cidade”.

SINHÁ ALEXANDRA: “Seria ótimo. Eles estão mesmo precisando de uma propaganda grátis do jornal, para ver se conseguem desbancar as empresas de moto. Ainda bem que somos bem articulados com a imprensa da cidade, né? Pode deixar que depois falo para o meu pai aumentar os anúncios da nossa loja de bebida lá no seu jornal. Só não chame meus amigos de biciboys, porque eles não gostam de ser confundidos com motoboys“.

M. “Mas eles não são trabalhadores que entregam documentos usando bicicletas? Não são os velhos office-boys de antigamente?”

SINHÁ ALEXANDRA: “Você jamais entenderá a diferença entre meus amigos ‘ciclistas’ diferenciados que montaram uma empresa alternativa e os office-boys que trabalham de bicicleta. Nós não somos iguais a esses ‘bicicleteiros’ que trabalham, que só andam de bicicleta por pura falta de opção. Nós pedalamos por ideologia, por filosofia, por amor à igualdade, por respeito ao povo. Os office-boys nada mais são que trabalhadores como quaisquer outros, que por acaso andam de bicicleta – eles não pensam no bem da cidade. São egoístas. Eles são uns, uns, uns… ‘bicicleteiros’. Vocês jamais entenderão a diferença. Jamais”.

M.: “Para mim são trabalhadores do mesmo jeito, explorados do mesmo jeito, que arriscam sua vida do mesmo jeito”.

SEU AGELO (representante das empresas de motoprofissionais): “Loucura. Que desrespeito comparar os biciboys com os motoboys e com os office-boys. Os biciboys são rapazes com boa educação, da classe média, que escolheram trabalhar na entrega de produtos queridos aos cidadãos. São altruístas, inteligentes e gentis. Eles até se vestem iguaizinhos e usam bicicletas iguaizinhas às dos mensageiros de Nova Iorque – são super autênticos, como diria minha filha. Os motoboys não são assim, pois só trabalham de moto por pura falta de opção, como os ‘bicicleteiros’ que entregam cartas e água mineral com aquelas bicicletas de carga bem bregas. Vocês não servem para mais nada. Vocês não têm disciplina nenhuma, não respeitam nada. Vocês motocas precisam é reconhecer a autoridade dos senhores e das senhoras que estão neste recinto. Nós sabemos o que vocês realmente pensam. Nós sabemos o que é bom para vocês”.

M. “Autoridade do senhor, senhora ou senhorio? Um motoca jamais reconhecerá a autoridade de quem não conhece a realidade das ruas. Nós somos pressionados para entregar logo a pizza, o documento e o remédio, somos pressionados para chegar logo ao trabalho, somos obrigados a trabalhar em um lugar longe demais. Mas depois reclamam que corremos muito. Liberam o tráfego nos corredores, nos pressionam a ocupar aquele espaço, depois reclamam que somos suicidas. Fecham os olhos para os carros que nos ameaçam constantemente. Nunca vi um carro ser multado por ter passado muito perto de uma moto ou por ter ficar cheirando a bunda de uma moto. Por isso rodamos como rodamos: para fugir dos carros! Todos olham para os poucos motoqueiros que são temerários, mas ninguém quer ver os carros que tentam nos matar, ninguém quer ver que os veículos são velozes demais e pesados demais e burros demais. De grandes vítimas passamos a vilões”.

SINHÁ ALEXANDRA: “Mas você tem que convir que alguns motoqueiros são imprudentes, principalmente os entregadores que rodam pelo corredor”.

M.: “Concordo que há alguns pouquíssimos motoqueiros que eventualmente têm comportamento temerário. Acredito que eles agem assim porque são pressionados para aumentar a produtividade no trabalho ou então para se expressar, já que não têm opções culturais, de lazer, de esporte ou uma carreira satisfatória. Até concordo que eles são mais espetaculares que a grande maioria dos motoqueiros que andam direitinho, e por isso chamam muito a atenção de quem não anda de moto. Mas isso não implica que a imprudência cause todos os acidentes. Na verdade, penso que os temerários são irrelevantes nas estatísticas dos acidentes. A maior parte dos acidentes ocorre não pela imprudência, mas pelo mau projeto dos veículos, que são rápidos demais, pesados demais, cegos demais e burros demais. Agora, se vocês estão tão preocupados com esses raros temerários, por que não tentam descobrir por que agem assim ao invés de ficarem só reclamando? Por que não perguntam a opinião do pessoal da psicologia, estatística, sociologia e serviço social?”

DOUTOR CASTRANDO: “Não é necessário. Já temos a opinião de um médico. Todos os motoqueiros são imprudentes. Ponto”.

DOUTOR JUSTO: “Por isso mesmo estamos aqui, para propor soluções para acabar com a imprudência dos motoqueiros. Afinal, os acidentes são causados pela imprudência dos motoqueiros, isso ninguém pode negar”.

DONA MARICOTA: “Agora mesmo, quando vim para cá, um motoqueiro passou raspando pelo meu carro. Devia estar doidão. Aposto que bateu logo depois”.

DOUTOR JUSTO: “Viu? Está provado cientificamente que todos os motoqueiros são imprudentes”.

SINHÁ ALEXANDRA: “Penso nos filhos que esse motoqueiro deixou. Uma tristeza só. É fundamental fazermos algo para acabar com essa imprudência que deixa tantas crianças órfãs”.

PROFESSOR TANAGREIA (representante das universidades): “A questão fundamental é a hermenêutica quântica…”

SEU AGELO: “A questão fundamental é entregar a pizza. Qualquer mudança agora vai demitir todo mundo e parar essa cidade”.

M.: “Tem jeito de diminuir os ‘acidentes’. De repente, podemos tirar a tinta preta dos vidros dos carros, ou quem sabe permitir que levantemos a viseira em algumas ocasiões”.

DONA MARICOTA: “Que bobagem. E o sol na cara? E a segurança contra os ladrões? Melhor proibir de vez essas motos malditas e fedorentas”.

M.: “Algum de vocês já pensou em perguntar o que os motoqueiros acham disso tudo? Talvez eles tenham boas ideias sobre como reduzir os ‘acidentes'”.

DOUTOR JUSTO: “Como assim? O ‘motociclista’ diferenciado não está aqui exatamente representando os ‘motoqueiros’? A ‘ciclista’ diferenciada não está aqui para dizer como pensam e o que é melhor para os ‘bicicleteiros’? O médico não está falando sobre o bem da população? A Dona Maricota não faz parte da sociedade civil ordeira e organizada? A imprensa não está fazendo o seu trabalho de quarto poder? O judiciário não está representando o ideal da justiça? As fábricas e as lojas não estão propondo tecnologias mais seguras? O professor não nos trouxe toda a sabedoria acumulada em milênios pela civilização ocidental? O sindicato não defendeu os trabalhadores? O setor econômico não está defendendo a geração de empregos? Os empresários não estão defendendo uma melhor educação para todos? E o senhor? Não foi convidado democraticamente para participar deste fórum de discussão, tendo toda a liberdade para se expressar? Se o senhor não está gostando da discussão é porque não está acostumado com ambientes democráticos. O que prova cabalmente que os motoqueiros não são seres pensantes. Caia na real, meu filho: vocês são um bando de asnos sobre rodas. Uns fudidos fedidos de merda”.

M.: “Parei. Sabe de uma coisa? O que mais me dói não é nem viver sob o jugo de uma elite egoísta, exploradora e corrupta. O problema é ter a vida nas mãos de gente burra. Gente de alma bem pequena, que vê a luz mas não ilumina suas minicertezas, que vive contando dinheiro e não muda quando é lua cheia. Gente que não aceita que o povo pode ter uma cabeça bonita. Senhor, tenha piedade desses miseráveis”.

JUIZ MORALATO: “Que ultraje”.

SEU SUCUPIRA: “Como são hostis esses selvagens”.

SEU PALADINO: “Esta sátira passou de todos os limites”.

SINHÁ ALEXANDRA: “Que feio”.

SEU AGELO: “Que falta de civilidade”.

DONA MARICOTA: “Que pobre”.

RODÃO DESCOLADO: “Eu bem que disse para não convidar esse motoqueiro maloqueiro cachaceiro maconheiro desgracento lazarento”.

IMPERADOR: “Então esse motoqueiro acha que o povo tem cabeça bonita, é? Que nós cidadãos respeitáveis merecemos a piedade do Senhor pela nossa imbecilidade? Eu é que não terei piedade com esse zé povinho aí. Cortem-lhe a cabeça! Cortem-lhe a cabeça!”

O corpo decapitado de M. foi jogado aos leões gordões comilões bonachões, o que, segundo os presentes, diminuiu em 87% os problemas tratados na douta reunião. Limpado o salão e terminadas as sempre unânimes votações, ficou decidido pela LECCRCMMM a obrigatoriedade do uso de armaduras medievais chiques e a realização de campanhas para reafirmar à população que o motoqueiro é sempre o culpado de todos os acidentes possíveis e imagináveis, no passado, no presente e no futuro, em todos os locais, em todas as situações, por definição, a priori, ao infinito e além.

Ficou decidido, ainda, que será taxado como inimigo do povo e punido com campanhas difamatórias todo aquele que defender qualquer uma das seguintes ideias subversivas quanto ao projeto dos veículos: (1) tirar a tinta preta dos vidros e das viseiras, (2) diminuir a velocidade máxima dos veículos, (3) melhorar a eficiência energética, o que diminui o peso e, consequentemente, aumenta a segurança dos veículos, ou (4) desenvolver uma tecnologia de comunicação entre os veículos que alerte a proximidade nos cruzamentos, ultrapassagens e travessias. Afinal, como todos presentes concordaram, essas ideias são delirantes, cruéis e impossíveis para um país que luta pelo progresso, pela geração de empregos, pela melhoria da mobilidade urbana, pelo desenvolvimento econômico e pelo ordenamento social. Assim, a Liga Extraordinária dos Célebres Cidadãos Respeitáveis Contra os Malcheirosos Motoqueiros da Maldade deixa claro que está do lado das pessoas de bem. Sem mais nada a adicionar, subscrevo-me.

Epílogo

Ao final, o imperador deixou o recinto, convidando os mais à direita para que fossem servidos de uísque e brioches. Para a esquerda, havia cerveja artesanal e especiarias africanas. Todos receberam de brinde, patrocinado pela MotoMoída e pela PetroPower, um chaveirinho em forma de bicicleta de bambu e o convite para uma apresentação da orquestra sinfônica de rua de Copenhague. Ao fundo se ouvia uma multidão a cantar, baixinho, quase como em oração, a música de uma terra muito muito distante, em homenagem ao motoqueiro que lutara até o fim pela proteção dos seus colegas e que sacrificara a vida como símbolo da honestidade intelectual. Rolou o som:

“Me diziam, todo momento
Fique em casa, não tome vento
Mas é duro ficar na sua
Quando à luz da lua
Tantas motos pela rua
Toda a noite vão roncando assim

Nós, motos, já nascemos pobres
Porém, já nascemos livres
Senhor, senhora ou senhorio
Motoca, não reconhecerás”

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