Motocas e Lendas Urbanas

© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: Má-Criações em Duas Rodas

MOTOCAS E LENDAS URBANAS
Fábio Magnani
[publicado originalmente em julho de 2011]

É só começar a chover que todos os motoqueiros param nos postos, viadutos e marquises para colocar a capa ou esperar o tempo melhorar. Alguns ficam irritados com o atraso que isso causa, mas outros encaram como uma grande confraternização. Trocamos dicas de mecânica, informações sobre o trabalho e fazemos novas amizades. Mas o que eu mais gosto é de ficar ouvindo as lendas.

Numa dessas paradas conheci o Josué, motoqueiro desde a década de 70. Ele contou que na época construíram um zoológico internacional na cidade. Tinha leão, girafa e até urso polar. Para os bichos do frio, eles montaram um sistema de refrigeração. A estrada que saía da casa do Josué passava bem ao lado da jaula dos pinguins, que ficavam o tempo todo andando em fila indiana, de lá para cá. A maior diversão do Josué era passar acelerando. Como todos os pinguins olhavam ao mesmo tempo para ver a moto, tropeçavam no pinguim da frente. Daí era todo mundo caindo, como se fossem peças de dominó.

Esse Josué adorava pregar peças nos colegas. Tinha um deles, o Mário, que parecia até que tinha TOC (transtorno obsessivo compulsivo). Quer dizer, as manias dele eram tão estranhas que o pessoal dizia que ele tinha COT (TOC, mas em ordem alfabética). Toda vez que o Josué encontrava com ele em qualquer canto, ele perguntava se o Mário tinha trancado a moto. Dito e feito, era só falar que o Mário tinha que ir até a moto para se certificar que tinha trancado ela mesmo. Às vezes ele voltava mais de dez vezes em uma mesma manhã.

O Josué virou motoboy depois que perdeu a oficina. Ele tinha trabalhado dez anos como açougueiro para juntar o dinheiro. Encomendou o projeto, construiu um galpão na frente da sua casa, pagou o alvará, comprou os equipamentos e começou o atendimento. O problema é que o engenheiro que fez o projeto esqueceu de incluir o peso das motos nos cálculos. Então, bastou o negócio melhorar que o prédio foi afundando por causa das motos que ficavam lá para o conserto. Tentaram de tudo, como amarrações e um novo piso, mas não funcionou. Depois de um ano a prefeitura interditou a oficina. O engenheiro continua vivo e rico até hoje.

Mas nem todas as lendas são do Josué. Outro falador das ruas é o Plínio. Parece que ele tem um imã para se meter em confusões. Uma vez ele bateu a moto no retrovisor de um carro parado. Antes de conseguir fugir, o vigia do prédio obrigou ele a deixar um bilhete preso no para-brisa, para que o dono do carro pudesse entrar em contato. Bem, o Plínio deixou o bilhete, mas com outros dizeres: “O vigia acha que eu estou deixando o meu telefone aqui, mas não vou deixar não. Abraço”.

Dia desses o Plínio e outro colega chegaram atrasados em um curso preparatório para os Correios, pago por uma ONG. O pessoal do curso não aguentava mais as desculpas que eles davam pelas faltas. Era dia de prova e não haveria perdão. Tudo bem, o Plínio inventou uma história que o pneu da moto tinha furado. O professor aparentemente aceitou. Cortou uma folha no meio e entregou um pedaço de papel para cada um dos amigos. “Agora cada um vai para uma sala e escreva nesse papel qual foi o pneu da moto que furou”.

Uma outra história que já ouvi por aí é do Cláudio. Ele estava em uma cidade vizinha bebendo quando encontrou uns amigos que tinham ido de ônibus para assistir a um jogo de futebol. Ele acabou bebendo demais e desmaiou. Os amigos não se tocaram que ele não estava na excursão. Colocaram ele no ônibus, voltaram para cá e o deixaram em casa. Quando ele acordou, não entendeu como tinha chegado até a sua cama. É que no dia anterior ele tinha viajado de moto com a sua namorada para passar duas semanas de férias em um hotel. Ele pagou a maior grana para um taxista, na esperança de chegar bem rápido e ainda encontrar a namorada dele. Que nada, ela tinha ficado tão brava que saiu do hotel e levou a moto junto.

Eu não sei se essas estórias do Josué, Plínio e Cláudio aconteceram de verdade. Acho que não, por isso chamo de lendas. O pessoal conta como se fossem de verdade, mas estão rodando pelo mundo em outras versões há tanto tempo que provavelmente são só adaptações. Só que, mesmo não tendo acontecido na realidade, eu acho que o fato de acreditarmos em uma lenda faz dela um pouco real. Quando nós usamos nossa energia criativa para modificar o que ouvimos, colocamos um pouco dos nossos valores e preocupações na estória. As lendas podem não ser reais, mas nós somos. Então, pode até ser que loira defunta que aparece nos banheiros não exista de carne e osso, mas o nosso medo dela é real do mesmo jeito.

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