Lanças Empaladoras de Humanos

LANÇAS EMPALADORAS DE HUMANOS
Fábio Magnani
[publicado originalmente em fevereiro de 2013]

A moda no Recife é a instalação de lanças empaladoras nas calçadas. Se um motoqueiro escorregar no lixo largado na sarjeta seu pescoço vai direto para elas. Essas lanças são mortais, são mal projetadas, são porcamente instaladas e enfeiam a cidade. Uma vergonha sob todos os pontos de vista, mas as autoridades não estão nem aí…

São várias as falácias usadas pelo pessoal de segurança no trânsito para justificar asneiras. A mais comum é “segurança nunca é demais”. Com essa falácia, por exemplo, justificam o uso de capacetes fechados, coletes retrorreflexivos e protetores de perna. Esses equipamentos podem até ajudar no caso de um acidente, mas certamente aumentam a probabilidade dos acidentes ocorrerem, já que limitam a mobilidade, abafam o som, diminuem a visão, causam desidratação e consequentemente dificultam a concentração. No final das contas, esses equipamentos têm dois efeitos contraditórios: por um lado aumentam os acidentes, mas por outro diminuem os seus efeitos. A questão então é descobrir se os dois efeitos em conjunto têm um resultado positivo ou negativo. Eu particularmente acredito que os capacetes de moto, desde que bem ventilados e abertos, têm um efeito combinado positivo. Mas tenho sérias dúvidas sobre o efeito positivo de: capacetes fechados (desenvolvidos para climas frios), capacetes para bicicletas, e qualquer tipo de vestuário quente, pesado e que diminua o movimento do piloto. Mas essas são só crenças particulares, de um simples cidadão. As autoridades, diferentemente, deveriam mostrar os dados científicos que usaram para tomar a decisão de tornar obrigatório o uso desses “equipamentos de segurança que diminuem a segurança”.

A segunda falácia que usam por aí é a generalização, onde a autoridade toma um único caso para justificar todas as suas ações. Por exemplo, outro dia uma toridade estava explicando algumas possíveis ações para a prevenção de acidentes de moto, como: aumentar o IPVA (para tirar os pobres da rua), exigir maior educação formal dos motoqueiros (mas sem discutir a qualidade ou efetividade dos cursos) e obrigar o uso de uniformes identificadores (para marcar os motoqueiros, assim como os nazistas faziam com os judeus). Mas essa toridade não apresentava nenhum estudo concreto para basear essas ações. A única justificativa usada por ela foi dizer que naquela manhã já tinha havido um acidente de moto ali por perto. E daí? Isso lá é justificativa para todas as “soluções” que ela estava propondo? Claro que não.

Essa mesma falácia foi usada recentemente duas vezes em uma revista do senado que falava sobre acidentes de moto. Logo no começo a equipe de reportagem descreve um acidente de moto em Brasília – como se um único acidente tivesse gerado toda a vontade de publicar aquele estudo. Essa técnica é até legal em textos literários – usar um caso específico para exemplificar questões universais -, mas vira sensacionalismo barato no caso de uma obra jornalística. Depois, no meio dessa mesma revista, publicaram um texto que descasca a banana nas motocicletas chinesas, mas citando como único caso concreto o pneu de uma moto que um motociclista comprou e com o qual quase se acidentou. A Honda, fábrica japonesa que domina o oligopólio de motos no Brasil, deve ter adorado essa crítica que desqualifica uma provável futura forte concorrente sua.

Isso sem contar os argumentos do tipo “os motoqueiros são todos bandidos irresponsáveis”, “a culpa é sempre do motoqueiro”, “ninguém mandou andar de moto”, “um motoqueiro quase se mata na minha frente hoje pela manhã”, “um motoqueiro acaba de bater no meu retrovisor” e “ele sabia que era perigoso andar de moto”. Esses argumentos transformam as vítimas em criminosos. Infelizmente, são argumentos muito eficazes para tirar a responsabilidade das autoridades e da sociedade em geral. Mas são argumentos falaciosos, já que boa parte dos motoqueiros é formada por trabalhadores responsáveis, que só querem voltar vivos para casa. São argumentos falaciosos porque boa parte dos acidentes são causados pelos carros que se jogam por cima das motos, são causados pelas motos mal projetadas para os nosso uso e são causados pelas ruas cheias de armadilhas. Só que é bem mais fácil culpar os motoqueiros do que culpar os carangueiros de classe média (que votam em outro ou param de comprar jornais quando contrariados), do que culpar as fábricas do oligopólio japonês ou do que culpar as autoridades responsáveis pelas vias públicas.

Sobre essa história toda de falácias, eu acredito que a maior parte das pessoas nem percebe o que está falando. Acho que elas apenas repetem argumentos errados que ouvem por aí, sem se dar conta que seus discursos são preconceituosos, injustos e que acabam servindo com justificativa para que as autoridades ajam de forma errada. Mas, a despeito dessa minha boa vontade, acredito também que muitos políticos e jornalistas são, ao contrário dos cidadãos comuns, plenamente conscientes dos crimes lógicos que cometem. Mesmo quando não praticam falácias, deixam-nas reinarem soltas por aí, não usando o seu dever público de esclarecer às pessoas sobre o grande erro que cometem ao transferirem a culpa dos acidentes aos motoqueiros.

O que me faz pensar na terceira falácia, que é justificar uma solução pelo problema. Por exemplo, digamos que exista um grande número de acidentes de moto em um lugar. Isso é um problema. Daí vem um carinha e diz que precisam colocar um uniforme identificador nos motoqueiros. A argumentação dele é do tipo: “precisamos colocar uniformes nos motoqueiros, pois há muitos acidentes”. Quando você tenta contra-argumentar, dizendo que aquela solução não resolverá o problema, ele responde: “então você não quer diminuir os acidentes?”. Daí, como a toridade é dona do microfone e dos jornais, claro que apenas a opinião dela é repercutida. No final, aquela asneira passa a ser vista como verdade. Patético.

Aparentemente o álcool também tem efeitos contraditórios, aumentando o número de acidentes mas diminuindo suas consequências – já que o motoqueiro alcoolizado cai com o corpo mais relaxado, assim como fazem os profissionais de corrida. Só que no caso do álcool o efeito total é claramente negativo. Por isso defendo veementemente a proibição do uso do álcool e outras drogas ao pilotar motos e bicicletas. Só não gosto da abordagem que fazem nas blitz, nas quais o cidadão inocente é tratado como um criminoso. A abordagem que estão usando é uma clara violação aos direitos individuais. Portanto, embora o álcool seja um problema, não necessariamente a solução proposta é boa: mais um exemplo de que não se pode justificar uma solução pela existência de um problema. Afinal, não queremos viver em um estado policial. O fato do álcool ser um grande problema não é suficiente para justificar soluções arbitrárias, autoritárias e socialmente violentas. Queremos terminar com o uso do álcool no trânsito, sim, mas temos direito a soluções inteligentes. Estamos pagando por isso.

A quarta falácia é o uso do terrorismo imaginativo: “já pensou se uma moto sobe naquela calçada e atropela uma criancinha?” ou “já imaginou se um motoqueiro estupra uma menina aqui do prédio?”. Esses argumentos são usados para justificar a construção de obstáculos nas ruas, guard rails nas estradas, lanças empaladoras nas calçadas, são usados para forçar os motoqueiros a andar sem capacete nos condomínios e a usar roupas identificadoras enquanto trabalham. O maior problema, no entanto, é que até as autoridades usam a imaginação ao invés de dados científicos. Por exemplo, os dois grandes estudos científicos sobre acidentes de moto (Hurt Report e MAIDS) apontam os carros como os principais culpados nos acidentes envolvendo motos. Mas as autoridades se recusam a usá-los como referência. Preferem acreditar na sua imaginação, na qual os motoqueiros são sempre os culpados.

Ainda há várias outras argumentações falaciosas por aí. Por exemplo, quando defendem estudos feitos em hospitais para identificar as causas dos acidentes. Como assim? No hospital só é possível descobrir as consequências de um acidente, nunca as suas causas. Outra falácia é defender que médicos, advogados e fabricantes são os únicos indicados para coordenar ações de prevenção de acidentes. Claro que não são: médicos são especializados nas consequências dos acidentes (não nas causas), advogados conhecem as leis que já existem (não as que deveriam existir) e fabricantes têm interesse econômico no assunto (jamais iriam propor o pagamento de multas por parte das fábricas que produzem motos assassinas). Mas nem todo lugar é assim. Por exemplo, os grandes estudos científicos foram realizados por comissões multidisciplinares, com médicos, advogados, fabricantes, motoqueiros, engenheiros, policiais, bombeiros, assistentes sociais, psicólogos, peritos e professores.

Às vezes a intenção até é boa, como no caso de uma autoridade (responsável pela prevenção de acidentes de moto) que resolveu ouvir a população de um local no interior. Eles estavam preocupados com uma curva de estrada que causava muitos acidentes. O que a autoridade fez? Orgulhosamente mandou instalar um guard rail. O problema é que guard rails não diminuem acidentes, apenas diminuem ocasionalmente seus efeitos. O pior é que esses guard rails são horríveis no caso de acidentes com motos, porque agem como lâminas, fatiando os motoqueiros. Como é que pode, então, a autoridade responsável pela prevenção de acidentes com motos instalar um equipamento que piora o problema? A resposta é simples: ignorância.

Outra falácia é a das fábricas, que dizem que não podem ser culpadas pelo uso dos seus produtos. É o mesmo argumento usado pelas fábricas de armamentos, de cigarros e de comidas gordurosas. Mas a falácia que eu mais gosto é quando dizem que estão fazendo alguma coisa relevante para diminuir os acidentes. Por exemplo, no ano passado um sindicato patronal investiu em uma “grande pesquisa” para identificar as causas dos acidentes com motos. O investimento foi de R$ 0,02 por moto circulando no país. Esse é o valor que eles dão para cada vida humana. Piada.

Sim, mas o que toda essa conversa sobre falácias tem a ver com as lanças empaladoras que aparecem no título? Resumindo a conversa, o tema que quero desenvolver é que muitas pessoas defendem que essas lanças nas calçadas são boas porque trazem segurança para os pedestres. Só se esquecem de dizer que essas lanças apresentam risco de morte para motoqueiros e bicicleteiros, que essas lanças são mal projetadas e que fazem a cidade parecer um grande lixo arquitetônico. Só que a campanha falaciosa é tão forte que qualquer pessoa que ouse criticar essas lanças empaladoras recebe um “então você quer que as nossas criancinhas morram atropeladas?”. É duro conversar com quem usa falácias, mas este tema justifica o esforço. Espere um pouco que já chego ao ponto principal.

O condomínio em que moro tem aspectos bons e ruins em relação às motos. Como lado bom, espalharam vários estacionamentos de moto perto das portarias das quintas. Eu prefiro deixar a minha moto em uma área um pouco longe de onde moro, mas que sempre tem vaga e uma sombrinha. O bom é que quando chego de manhã para pegar a minha moto sempre ganho um bom dia da árvore de jasmim, que solta uma flor sobre o banco ou guidão.

Outra boa característica do nosso condomínio é o trânsito. Todo mundo anda bem devagar, respeitando as crianças e os pedestres. Legal.

Mas tem o lado negativo também. Há um tempo atrás uma síndica começou a obrigar os motoboys a andar sem capacete dentro do condomínio, sob a alegação infundada de que poderiam ser criminosos. A medida durou pouco tempo, acabando assim que falamos que ela seria a responsável por qualquer ferimento mais grave no caso de um acidente envolvendo um motoboy. Afinal, até que se comprove se o efeito global do capacete fechado é positivo ou negativo, um motoqueiro não deve ser obrigado a não usá-lo. Isso deveria ser escolha do próprio motoqueiro. Mas, voltando à discussão, a síndica tentou usar argumentos clássicos como “mulheres estão sendo estupradas impunemente por motoqueiros” (cite um caso), “o Detran disse que é seguro pilotar sem capacete a 20 km/h” (diga o nome do técnico que disse isso) e “vocês são contra a paz no nosso condomínio?” (somos a favor da paz, começando pelo respeito aos trabalhadores de moto). Como cansa discutir com quem não sabe usar a razão. Ainda bem que a nova síndica resolveu o problema de outra forma. Agora, os motoboys devem se identificar ao entrar no condomínio, mas podem usar novamente os capacetes após a identificação.

Outro problema do condomínio com as motos é causado pelos tubos que colocam para impedir que os carros estacionem sobre as calçadas, como se vê na foto acima. A medida tenta solucionar um problema, que é causado pelos carros que dificultam a circulação dos pedestres, mas cria um problema maior ainda, pois aquelas lanças empaladoras podem matar um motoqueiro ou um bicicleteiro no caso de uma queda. Típico caso em que uma solução (instalação de lanças empaladoras) é justificada pela existência de um problema (carros estacionando sobre as calçadas). Neste caso em particular poderiam ter pensado em outras soluções, como barreiras sólidas, ou então em multas para quem parasse em locais proibidos.

“Aha! Agora eu te peguei, Fábio Magnani. Você está imaginando um problema, não é? Quantos motoqueiros e bicicleteiros já morreram por causa dessas lanças empaladoras?”. Não. Não me pegou. Primeiro, eu não sou responsável por nenhuma ação, sou apenas um blogueiro dando uma opinião. Segundo, não posso esperar que todos os estudos sejam realizados antes de dar a minha opinião pessoal – não sou um Asno de Buridan. Eu, como motoqueiro, posso simplesmente dar a minha opinião pessoal de como me sinto ameaçado por aquelas lanças empaladoras. O que é muito diferente do que deve fazer uma autoridade. Uma autoridade precisa agir, o que tem implicações reais na vida das pessoas. Por isso, essas ações tem que se basear em fatos comprovados. As autoridades têm a obrigação de saber se as lanças empaladoras que viraram moda na cidade são boas ou ruins. Afinal, elas serão as responsáveis no caso de mortes de motoqueiros ou bicicleteiros.

De qualquer forma, mesmo sendo um simples cidadão, fui atrás das respostas. Peguei minha moto e minha câmara fotográfica e caí no mundo. Minha primeira dúvida era quem era o responsável pela instalação das lanças empaladoras. Parei em três blitz, uma da polícia militar, outra do batalhão de trânsito e outra da guarda municipal. Nenhum dos policiais soube me dizer se a responsabilidade das lanças empaladoras era do Detran, da polícia, da prefeitura ou dos proprietários dos imóveis. Não sabiam nem dizer onde eu deveria procurar mais informações.

Bem, se as autoridades não sabem a resposta, posso tomar a liberdade de conjecturar. A minha conjectura é que as lanças empaladoras são instaladas pelos proprietários dos imóveis. Imagino ainda que não haja qualquer tipo de autorização ou homologação. Em outras palavras, acho que qualquer pessoa pode instalar aquelas lanças e as autoridades não dizem nada.

Depois, resolvi conjecturar sobre o que levaria as pessoas a instalarem as lanças empaladoras. Acho que há duas razões principais. Algumas esquinas são perigosas, registrando vários acidentes em que os carros invadem a calçada. Por isso, posso até ver um certo sentido na mente dos instaladores. No entanto, acho que há outras soluções melhores. Por exemplo, esse problema poderia ser resolvido com multas mais severas, melhor treinamento dos motoristas dos carros ou barreiras sólidas. Essas soluções, ao contrário das lanças empaladoras, não trariam mais riscos aos motoqueiros e aos bicicleteiros.

Mas em alguns casos as lanças empaladoras são instaladas no meio do quarteirão, o que não pode ser justificado pelos acidentes. Penso que nesses casos o proprietário estava simplesmente tentando evitar que algum carro estacionasse sobre a calçada, assim como no caso do meu condomínio. Seria bem mais inteligente multar o carro, não seria?

Como eu costumo sair de casa de moto ou de bicicleta, me sinto como um forasteiro indesejado. Aquelas lanças empaladoras me passam a impressão de que estou em uma guerra, marcado para ser assassinado a qualquer momento. O duro é que as pessoas nem pensam em como essas lanças arriscam as nossas vidas e nos agridem como cidadãos.

Pior é que as lanças empaladoras, além de perigosas, são mal projetadas, mal executadas e feias. A cidade parece um lixão com aquelas vigas tortas espalhadas por todos os lugares. Tirei até umas fotos para exemplificar o perigo e a feiura das lanças empaladoras.

A vida de um motoqueiro é assim mesmo. Você acorda de manhã, beija a sua família, caminha até o estacionamento, é saudado por um jasmim e liga a sua moto. Depois deveriam vir mais coisas boas, como a aceleração do seu corpo, o toque do vento e o passar do mundo pelos seus olhos. Mas acontecem coisas ruins também: os motoristas acham que você é criminoso porque anda com o rosto escondido (somos obrigados!), os moradores instalam lanças empaladoras por toda a cidade, as empresas de serviço colocam postes bem perto das vias, as autoridades deixam bueiros abertos, os carros se jogam em cima de você e os especialistas criam valetas criminosas nos postos de combustível e nas ruas de concreto. O que mais dói, no entanto, é que essas coisas ruins poderiam ser facilmente evitadas se houvesse um mínimo de respeito pelos motoqueiros e bicicleteiros; e se houvesse um pouco mais de inteligência, honestidade e ética nas discussões sobre os acidentes. Parece que só nos resta reclamar, não é? Não. Além de divulgar as asneiras, sempre estamos aqui à disposição, tanto para criticar as falácias quanto para dar opiniões baseadas na nossa experiência concreta sobre duas rodas. É só chamar. Vão ouvir críticas, é certo, mas talvez aprendam algo de valor com os motoqueiros.

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