Fabricação Local de Quadros de Bicicleta

© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: Conversas Técnicas Sobre Motos

FABRICAÇÃO LOCAL DE QUADROS DE BICICLETA
Fábio Magnani
[publicado originalmente em fevereiro de 2013]

Parece que aqui no Brasil estamos condenados a comprar veículos que poluem e que matam. Veículos que são lentos como tartarugas, caros como se fossem feitos de ouro e totalmente inadequados para as nossas características. Se bem que são tão maquiados pelo marketing que conseguem até se passar por bons produtos. A razão desse inferno é simples: oligopólio. As grandes fábricas estrangeiras fazem o que bem entendem. Sem competição, nós consumidores ficamos sem alternativas. Agora… como chegamos a esse ponto? E a questão central, será que é possível sair dessa armadilha?

A história de todas as grandes fábricas de veículos é sempre a mesma. Todas começaram pequenas: o que lhes dava agilidade para aproveitarem nichos não explorados. Todas se consolidaram em um ambiente de forte competição com outras pequenas fábricas: o que as forçava a terem competência e a promoverem a inovação. Todas estavam em locais que tinham consumidores ávidos pelos seus produtos: e que por isso eram capazes de perdoar as inevitáveis falhas que aparecem durante o amadurecimento de determinada tecnologia. E todas tinham pessoal com muita competência técnica, administrativa e mercadológica: o que lhes garantiu a sobrevivência.

De onde se conclui que todas as grandes fábricas têm um bom berço. O problema acontece mais tarde, quando algumas fábricas crescem mais que as outras (o que é bom, pois são mais competentes), mas ficam tão poderosas que não permitem o aparecimento de outras pequenas (o que é ruim, pois a competição acaba). O oligopólio então se forma, com as gigantes investindo tudo o que podem para convencer os seus clientes que seus produtos são bons e que os produtos das novas concorrentes são ruins. Com essa montanha de dinheiro sendo investida em marketing, e muito pouco em desenvolvimento tecnológico, vem a estagnação com os seus conhecidos efeitos: produtos caros, ineficiência energética, acidentes, poluição e lentidão infernal no trânsito.

Portanto, para copiarmos o que já funcionou antes em outros lugares e criarmos uma indústria local, precisamos da coocorrência de quatro condições: existência de empresas inovadoras, competição saudável, mercado forte e pessoal competente. Pelo menos foi isso que aconteceu com as fábricas de veículos dos EUA, Inglaterra, Itália, Alemanha, França, Japão e China. Mas veja que, quando uso a palavra indústria, não estou falando de uma única fábrica. Uma indústria é um conjunto de fornecedores, fábricas e lojas. Acima disso, em uma indústria nacional sustentável há livre circulação de conhecimento e de pessoal entre as várias empresas, o que favorece mais ainda o desenvolvimento da indústria como um todo.

O Brasil, para variar, é uma exceção. Não temos fábricas de veículos brasileiras que tenham alguma relevância. Não temos uma indústria nacional. Isso porque, quando o nosso mercado começou a ganhar certa força, as grandes fábricas internacionais vieram para cá, impedindo o florescimento de pequenas fábricas locais. Vivemos essa condição até hoje, com o domínio das grandes fábricas de outros países, que nos vendem produtos péssimos. Esse é um ambiente completamente inóspito para a inovação das pequenas fábricas. Neste cenário de oligopólio, estamos condenados a comprar veículos poluidores, mortais, ineficientes, caros e inadequados para as nossas características.

Uma obra legal para entender os efeitos nefastos do oligopólio é a trilogia de Manuel Castells, (A Era da Informação), que explica como o grande capital destrói as iniciativas locais. Hoje em dia isso está claro até dentro das universidades, onde o dinheiro de empresas de petróleo e de automóveis está reestruturando as linhas de pesquisa, o conteúdo das disciplinas e o esforço administrativo. Isso mesmo, já ouvi falar de um caso onde o presidente de uma empresa da área de petróleo chegou a mudar a ementa de uma disciplina, como se ele tivesse mais competência do que os professores da universidade. Sem contar que a administração só tem tempo para discutir assuntos relacionados a essas empresas. Parece que a universidade também chegou à era do “quem tem dinheiro manda”. Triste. Agora, o pior mesmo é quando as universidades passam a ensinar aos jovens que o sonho da vida deles deve ser conseguir um emprego em uma empresa de petróleo ou em uma fábrica de carros. Pô, que sonho mais medíocre! Isso está errado. Deveríamos ensinar aos nossos jovens a buscarem seus próprios caminhos, a inovarem e a serem independentes. É muito triste quando os jovens de uma nação são educados para baixarem a cabeça para os poderosos.

Apesar de não termos fábricas nacionais de carros e motos, até temos algumas fábricas de bicicletas. Mas essas fábricas nacionais se limitam a copiar mal o que acontece nos outros países. As bicicletas “de ponta” vendidas por essas fábricas nacionais são bem ruinzinhas quando comparadas com as internacionais. Já os produtos baratos são mais caros do que os produtos baratos dos outros países. Ou seja, seus produtos caros são ruins e seus produtos baratos são caros. Ah… e para não dizer que não falei das flores, até temos algumas fábricas de capital nacional que fabricam motos com projeto asiático. Mas essas fábricas não trazem nada de novo.

Dá para perceber, então, que eu não estou aqui defendendo o protecionismo. Eu prefiro empresas internacionais com bons produtos do que uma fábrica nacional com produtos de segunda linha. Mas não é isso que está acontecendo. O que acontece é que nem as internacionais, nem as nacionais (no caso das bicicletas), estão oferecendo produtos minimamente decentes. Não defendo uma indústria brasileira por puro nacionalismo. Longe disso, já que sou contra a divisão do mundo em países. Defendo uma indústria nacional porque, por ser local e pulverizada, pode produzir os veículos que merecemos.

O que mais dói é que temos todas as outras condições que nos permitiriam melhorar. Nossos jovens são bem educados nas universidades e centros tecnológicos. Além disso, nosso mercado pede por alternativas para o nosso trânsito poluidor, caro, parado e mortal – as pessoas querem veículos mais inteligentes! Em outras palavras, temos inovação, mercado e pessoal. Só não temos um ambiente saudável de competição, pois não é possível para uma fábrica pequena competir com poder econômico do oligopólio das fábricas já consolidadas. Ou será que é possível vencê-las?

Sim, é possível para as fábricas pequenas competirem com o oligopólio das estrangeiras. Para isso é preciso escancarar o ponto fraco delas: a ganância. No afã de ganhar muito dinheiro, as grandes fábricas investem muito em marketing para convencer os consumidores de que seus produtos são modernos. O que não são, pois elas investem pouco em desenvolvimento. Os carros atuais são lentos no trânsito urbano, poluem demais, são caros demais e mortais demais. O truque das fábricas é comparar um carro do oligopólio com outro carro do oligopólio, quando a real comparação deveria ser um carro do oligopólio com o de melhor que poderia existir.

Por exemplo, a empresa X diz que seu carro é mais econômico do que o carro da empresa Y. Mas isso é totalmente irrelevante, pois os dois carros são muito mal projetados. Quando você faz as contas para ver quanto da energia do combustível foi usada para levar o passageiro de um local para outro, verá que o rendimento desses carros é próximo a 1%. Quer dizer, em um carro desses, 1% da energia é usada para deslocar o passageiro. O restante é usado para levar o próprio carro para passear ou então como descarte térmico, já que a tecnologia que eles usam (máquinas térmicas queimando combustível) é muito ineficiente.

É muito fácil dar um exemplo. Digamos que uma pessoa precise se deslocar por um caminho de 14 km, com uma subida de 200m. A energia necessária para esse deslocamento é de 147 kJ. Um ciclista gasta 1.470 kJ para esse deslocamento – 10 vezes o mínimo necessário. Já um carro faz esse mesmo deslocamento consumindo 35.000 kJ. Isto é, um carro gasta 237 vezes mais energia do que o necessário: 75% da energia vira calor, 24.5% da energia é usada para deslocar o carro e 0.5% é usada para levar o passageiro – o que deveria ser o objetivo do carro! Esse automóvel é a vergonha dos meios de transporte. E as fábricas tem a cara de pau de dizer que seus carros são eficientes.

Para ver que as bicicletas também têm um rendimento baixo: 10%. Isso acontece porque as fábricas se limitam a produzir apenas cópias das bicicletas usadas nas competições, as quais, devido as restrições da UCI, são extremamente ineficientes. É possível melhorar muito o rendimento das bicicletas, principalmente com o uso de elementos aerodinâmicos, que são proibidos nas competições. Mesmo assim, o rendimento das bicicletas de hoje em dia é 23 vezes melhor do que o rendimento dos carros!

Outro exemplo de maquiagem é quando dizem que seus carros são seguros, mas se esquecem de dizer que esses mesmos carros do oligopólio matam milhares de pessoas todos os anos – passageiros, ciclistas, motoqueiros e pedestres. Como assim, “seguros”, se matam tanta gente?

Ou então as fábricas mostram seus carros andando em alta velocidade em ruas desertas (ou tentando atropelar siris nas praias). Mas todos sabemos que essas ruas não existem no mundo real. Esses carros imensos são pessimamente projetados para as nossas cidades. Desafio qualquer carro desses a fazer mais do que 10 km/h na Domingos Ferreira no horário do rush. A velocidade deles é baixíssima porque não foram projetados para as nossas cidades.

Eu teria vergonha de ser engenheiro em uma fábrica dessas. Fábricas que vendem carros com 1% de rendimento, carros que matam mais pessoas do que uma guerra, carros que consomem 25% do salário das famílias e carros que ficam o tempo todo parados no trânsito. Eu teria muita vergonha. Isso para não dizer que eu teria muito medo de ser preso no dia que a sociedade perceber esse grande embuste de maquiar produtos ruins.

Críticas, críticas e mais críticas. Um bom começo, mas é preciso propor saídas também. Primeiro vamos resumir o que foi dito até agora. O aspecto negativo da situação atual é que temos um oligopólio ganancioso que produz veículos caros, perigosos, lentos, sujos e ineficientes. O aspecto positivo é que temos jovens capacitados para inovar, e um mercado sedento por veículos inteligentes. Falta apenas uma peça nesse quebra-cabeça para criar uma indústria nacional, que é conseguir recursos financeiros para impulsionar esses jovens.

Uma saída é esperar que o governo invista mais. Pode ser em incubadoras para inovação tecnológica, em concursos de design para escancarar que os modelos do oligopólio são horríveis, pode ser em competições esportivas para medir o desempenho das novas máquinas, no financiamento de pesquisa ou ainda no auxílio jurídico para a homologação de novos veículos e importação de componentes. O problema é que essa questão de investimento do governo é sempre complicada: interesses políticos, burocracia, outras prioridades e corrupção ocasional.

Por isso defendo que os jovens não devem esperar a boa vontade do governo. Continuaremos lutando por mais recursos, mas vamos também jogar pelos flancos, procurando o autofinanciamento sustentável. O plano é começar com um pequeno negócio, expandindo gradualmente o escopo da produção.

PLANO DE NEGÓCIOS

Passo #1: consultoria na escolha de bicicletas. Hoje em dia há muitos modelos diferentes no mercado. Bom. Mas quando você vai até uma loja, em geral o vendedor tenta empurrar o que ele tem no estoque. Ruim. Existe, então, um bom espaço para um consultor que ajude os compradores a selecionarem o tipo de pneu, a pressão ideal em função do peso e do uso, a geometria do quadro, o tamanho da roda, o tipo de guidão, a geometria da mesa e do garfo, o modelo do selim, o comprimento do pedivela, a suspensão, o sistema de freio, os acessórios, a estrutura de carga e a relação de marchas. O jovem empreendedor pode cobrar uma pequena taxa para ajudar o ciclista a escolher a sua nova bicicleta entre as várias que existem no mercado. Outro serviço legal é recomendar oficinas locais, que fazem montagem, ajustes e manutenção. Com esse primeiro passo o jovem já consegue juntar um dinheirinho, suficiente para seguir em frente.

Passo #2: montagem de bicicletas. O segundo passo é partir para a montagem de novas bicicletas. Ao contrário dos carros e das motos, é fácil encontrar componentes para bicicletas, já que são vendidos separadamente. Além disso, as fábricas de componentes respeitam certas convenções, fazendo com que os componentes sejam razoavelmente intercambiáveis. Claro que as bicicletas montadas ficam mais caras do que as bicicletas fabricadas em grande quantidade. Mas esse aumento é pequeno quando se pensa nas vantagens das bicicletas feitas sob medida: eficiência, conforto e exclusividade. Pronto, já há dinheiro suficiente para o grande passo.

Passo #3: fabricação do quadro. Depois de conseguir uma boa grana com a montagem de bicicletas sob medida, o jovem inovador pode dar o grande passo para a produção industrial, que é a fabricação do quadro. O quadro é o esqueleto da bicicleta, o componente que lhe dá personalidade. Este passo têm dois grandes desafios. O primeiro é financiamento para o maquinário, que neste ponto já foi alcançado nos dois primeiros passos: consultoria de escolha e montagem de bicicletas sob medida. O segundo desafio, mais difícil, é o mercado. O fabricante de quadros precisa conhecer o mercado e ser conhecido por ele. Por isso é fundamental que haja um grande grupo de pequenos fabricantes de quadro, para trocar experiências, intercambiar pessoal e escoar a produção. É importante perceber a necessidade de muitos fabricantes, pois só assim se formará uma grande indústria nacional. Um carinha sozinho pode ser facilmente destruído pelo oligopólio atual. Já um grupo anárquico, que atue como uma guerrilha, não pode ser vencido. Um nicho interessante para entrar no mercado de quadros é produzir bicicletas sob medida para pessoas muito pesadas, muito altas ou muito baixas, e bicicletas infantis eficientes. Sem contar que sempre tem gente a procura de um design único. Deem uma olhada nesse vídeo, que mostra a beleza da construção artesanal de um quadro.

httpv://www.youtube.com/watch?v=ZZNfowFp26c

Passo #4: acessórios. As bicicletas que estão no mercado se limitam a copiar as bicicletas de competição. O problema é que os regulamentos esportivos privilegiam o esforço do ciclista, não a eficiência das bicicletas. Isto é, as bicicletas atuais são feitas para fazer o ciclista sofrer, não para ajudá-lo. Tudo bem que isso possa ser desejável em uma competição, mas certamente é ruim no dia a dia. As bicicletas atuais tem rendimento baixo, cerca de 10%. Queremos e merecemos coisa melhor. Por isso o próximo passo é mudar a concepção das bicicletas: acessórios aerodinâmicos, capacetes bem feitos, softwares para cálculo de custo/caloria/cadência, mudança automática de marchas e biossensores. Para começar, destaco aqui as bicicletas elétricas, que podem ser facilmente montadas, já que há vários kits prontos no mercado. Embora haja uma boa oferta de bicicletas elétricas no mercado, elas em geral têm uma ciclística bem ruim – essas bicicletas conseguem ser bem piores que as bicicletas convencionais da UCI. Por isso, quem conseguir oferecer bicicletas elétricas com boa qualidade ciclística terá uma ótima vantagem competitiva.

Passo #5: veículos leves. Agora você já está forte no mercado, montando bicicletas com seu próprio quadro, projeto sob medida e design bem feito. Chegou a hora de expandir o negócio, com outros veículos: bicicletas de carga, bicicletas elétricas inovadoras, equipamentos para treino de ciclismo, equipamentos para academias, cadeiras de roda, bicicletas para pessoas com necessidades especiais de locomoção, bicicletas infantis, bicicletas recumbentes, motos elétricas, minicarros elétricos aerodinâmicos superleves com inteligência artificial, e novas concepções de HPV (human powered vehicles, veículos de propulsão humana). Basta dar uma olhada nas ruas, com seus vendedores de sorvete e catadores de papelão, que você verá um mundo de oportunidades para HPVs. Também basta ver a ausência de idosos e de portadores de necessidades para constatar outro grande mercado carente de novos produtos. E, como já falei antes, basta ver esse oceano de carros parados no trânsito das cidades para ter a certeza que esses veículos definitivamente são muito mal projetados e criminosamente marketeados.

Passo #6: mobilidade total. Esse ponto ao futuro pertence, pois não sabemos direito para onde irá essa nova indústria. Sabemos apenas que os carros atuais são horríveis e que o sistema de transporte público brasileiro está falido. No entanto, tenho certeza que essa nova indústria – por ser local e pulverizada – terá as condições técnicas e morais para propor sistemas de transporte muito mais inteligentes, baratos, eficientes, seguros, limpos e rápidos.

IMPORTANTE

Para toda essa revolução dar certo é preciso haver um grande número de pequenas fábricas, com administradores que saibam competir quando for a hora, mas que também saibam cooperar. Não adianta esconder a sete chaves um pequeno conhecimento que você eventualmente tenha, porque ele vai definhar dentro da sua cabeça. O negócio é divulgar, pois quando você liberta um conhecimento, ele se multiplica. Não temos falta de conhecimento, temos sim falta de oportunidades. Ao divulgar o que você sabe, estará criando oportunidades para você mesmo. Divulgue, troque ideias, faça amigos, divirta-se e construa parcerias. Esse é o caminho para vencer o oligopólio. Não há outro.

Outro ponto que quero destacar é a importância da integração de conhecimentos. É preciso juntar o pessoal que manja da tecnologia com os jovens que sabem os atalhos para fazer importações com os carinhas que conhecem a legislação necessária para homologar produtos com as pessoas que conhecem bem o mercado com profissionais que sabem fazer pesquisa/registro/embate de patentes com os artistas que divulgarão toda essa nova cultura com suas fotos, textos, filmes e músicas.

Sendo mais claro, a vitória virá da quantidade de pequenas fábricas, da cooperação entre elas e da diversidade de competências.

Agora que já conversamos sobre os veículos atuais e sobre o plano de negócios para criar uma indústria local, queria falar um pouco sobre os quadros. Como eu disse ali em cima, esse ponto é o ponto crucial da entrada dos jovens no mundo industrial. O investimento em maquinário não é tão grande assim, principalmente se montarem cooperativas. Além disso, o quadro de uma bicicleta corresponde a aproximadamente 40% do seu custo total. Dessa forma, um jovem que fabrique o quadro de suas bicicletas ficará com uma parte razoável das receitas obtidas com a venda das suas bicicletas personalizadas.

Do ponto de vista do conhecimento, a produção de bicicletas com quadros próprios pode ser dividida nas seguintes áreas: características do usuário (esportista, commuter, pessoa com dificuldade de locomoção), anatomia/fisiologia do ciclista, dinâmica da bicicleta, design, seleção de materiais, projeto mecânico, processos de fabricação (solda, dobramento, usinagem) , produção industrial, importação de componentes, homologação de produtos, patenteamento, finanças e marketing (prospecção de mercado, venda, distribuição e assistência técnica). Parece ser muita coisa, mas dá para começar devagar, com uma produção pequena. Todas as fábricas começaram assim!

Dá para ver então que há muito assunto para conversar em vários textos daqui para frente. Vamos começar na escolha do material. Hoje em dia os quadros são feitos basicamente em três materiais: aço, alumínio e carbono. Em pouquíssimas palavras, o aço é resistente mas pesado e o alumínio é leve mas sujeito a quebra por fadiga. Já o carbono é leve e resistente, mas muito caro. Para se ter uma ideia da diferença entre esses vários materiais, esse próximo vídeo é muito legal, mostrando uma comparação qualitativa entre os vários quadros. Não levem a sério. Divirtam-se.

httpv://www.youtube.com/watch?v=nvk63bmVpck

Ao escolher um material, o projetista precisa levar em conta um monte de coisas: peso específico, resistência, elasticidade, dureza superficial, resistência à fadiga, resistência à corrosão, facilidade de fabricação (solda, conformação, moldagem, usinagem, cola, tratamento térmico), facilidade de reparo, disponibilidade nas formas requeridas e preço. Ufa! Além de escolher o material, é preciso projetar o quadro, o que por sua vez tem que considerar: tipo de uso da bicicleta, tipo físico do ciclista, custo, design, tamanho, resistência, rigidez, durabilidade, estabilidade dinâmica, eficiência, aerodinâmica, conforto e peso. Ufa ao quadrado! Se bem que quase todos esses requisitos fazem parte da formação geral de um engenheiro mecânico. Para se especializar na produção de quadros o engenheiro precisa apenas complementar o seu conhecimento com a tecnologia da bicicleta, anatomia do ciclista e dinâmica da bicicleta.

Aço carbono. Existem duas famílias de aço usadas em bicicletas. A mais comum é a família dos aços carbono, usados nas bicicletas mais baratas. Os quadros feitos com esse material são fortes, rígidos, baratos, duráveis e pesados. Quando o peso não é tão importante, o aço carbono é uma ótima escolha, principalmente porque permite investir mais na instalação de componentes eficientes. Isso porque sempre é preciso equilibrar o que se investe no quadro e nos componentes. Não adianta ter um super quadro com componentes vagabundos, e não vale a pena ter super componentes em um quadro de segunda linha.

SAE 4130 ou chromoly. Até a chegada definitiva do alumínio na década de 80 e do carbono na década de 90, os quadros das melhores bicicletas eram feitos de aço SAE 4130, apelidado pelos ciclistas de aço chromoly (porque seus dois principais elementos de liga são cromo e molibdênio). É um aço bem mais resistente que o aço carbono. Esse chromoly tem algumas desvantagens em relação ao alumínio: não permite tubos aerodinâmicos e resulta em quadros um pouquinho mais pesados. Por outro lado, seus tubos são mais finos. Por isso, ao contrário do que se diz por aí, o uso do aço não é tão desvantajoso assim. Sua saída do mercado tem mais a ver com o marketing do alumínio do que com aspectos técnicos. Ainda bem que há consumidores saudosistas (como eu) que querem quadros de aço, já que são bem mais elegantes (finos). Os tubos de aço podem ser unidos com solda TIG, MIG, brasagem com lugs ou brasagem em fillets.


Esses processos requerem certa destreza manual, mas maquinário simples, por isso se encaixam muito bem nessa nossa proposta de produção artesanal. Os jovens deveriam olhar com carinho para este mercado que procura por quadros de aço. É um nicho relativamente pequeno, mas grande o suficiente para suportar o amadurecimento da nova indústria nacional de veículos.


Alumínio. O alumínio é três vezes menos denso e três vezes menos resistente do que o aço. Por isso, embora o alumínio seja mais fraco, um quadro desse material pode ter o mesmo peso que um de aço. Melhor ainda, como a rigidez do quadro é mais determinante do que a sua resistência, é possível fazer um quadro de alumínio bem mais leve, desde que se usem tubos de maior diâmetro. O único problema é que alumínio é muito mais susceptível à fadiga, logo precisa ser superdimensionado. Por isso, no final das contas, o peso acaba não sendo a característica mais importante para a escolha do alumínio. Outros fatores, como conformabilidade, resistência à corrosão e moda, acabam sendo mais determinantes. As ligas mais comuns são SAE 6061 e 7005. Em geral o alumínio é soldado com solda TIG, carecendo de certa habilidade do soldador ou então de automatização. Uma característica visual dos quadros de alumínio é que têm diâmetro bem maior que os quadros de aço. Isso me faz achar os quadros de aço mais elegantes, mas muita gente acha o oposto.

Na realidade, nada me tira da cabeça que as fábricas preferem esses tubos largos de alumínio porque são melhores para fazer propaganda gratuita de suas marcas. Eu, por exemplo, tenho muita vergonha de ser obrigado a desfilar pela cidade fazendo propaganda para a Caloi. Mas não tem jeito, já que não consigo tirar os adesivos horrendos que essa fábrica colou no quadro da minha medíocre bicicleta. Melhor se a Caloi tivesse investido o meu dinheiro não em adesivos, mas sim em componentes um pouco menos travados e um pouco mais resistentes. Ao meu ver teria sido uma propaganda mais efetiva para o produto deles.

O quadro de alumínio também pode ser montado com chapas soldadas ou em treliças, o que não parece ser uma ideia tão atraente para bicicletas. No entanto, formas não tubulares permitem designs inovadores, o que pode ser interessante em alguns mercados. Acima de tudo, esses quadros de alumínio com chapas soldadas são usados nas motocicletas (que usam basicamente dois tipos de quadros: tubulares de aço ou chapas soldadas de alumínio). Por isso, caso alguém já esteja pensando em aumentar a linha de produção para motos, ou bicicletas elétricas, ou bicicletas de carga, esses quadros em chapa de alumínio podem ser um bom laboratório.


Fibra de carbono. A fibra de carbono é tão resistente quanto os aços mais fortes, é bem mais leve que o alumínio e pode ser moldada em qualquer forma desejada. Perfeito. Então, por que esse material não é utilizado com maior frequência? Primeiro, a fibra de carbono é um material que sofre ruptura do tipo frágil, o que é algo perigoso em uma bicicleta. Se bem que a fibra de carbono é tão mais leve que o aço, que pode ser superdimensionada para garantir a segurança. Outro problema com a fibra de carbono é o alto preço de produção, pois carece de moldes, alta temperatura e pressão, e tempo para a cura. Mas nada que não se resolva com o passar do tempo. A característica mais interessante da fibra de carbono, no entanto, é a possibilidade de fabricar quadros em qualquer forma, não restringindo o projetista às estruturas tubulares. Isso fará com que as bicicletas do futuro sejam possivelmente bastante diferentes do que conhecemos hoje em dia.

Dizem por aí que as fábricas não garantem o reparo dos quadros de carbono, o que obrigaria o seu descarte após algum pequeno acidente. Mas muitos engenheiros dizem que esse comportamento das fábricas é baseado no medo de enfrentarem ações judiciais. Na verdade, segundo esses engenheiros, a fibra de carbono é muito fácil de ser reparada, pois basta enrolar uma nova manta e aplicar a resina. Faz sentido, já que esse é exatamente o processo usado na construção dos quadros. Por isso tudo, a fibra de carbono apresenta três grandes oportunidades para os novos empreendedores: inovação em processos de fabricação mais baratos, proposição de designs inovadores e desenvolvimento de procedimentos seguros para o reparo dos quadros.

Há outros materiais usados nas bicicletas. O titânio tem a mesma resistência, mas a metade da densidade do aço, o que produz quadros leves. Além disso, ele não sofre corrosão em temperatura ambiente. Suas principais ligas são 3AL2.5V e 6AL4V. O problema é o seu preço. Embora tenha saído de moda com a chegada do alumínio, acredito que as pessoas que gostam do chromoly também estão dispostas a pagar um pouquinho a mais por um quadro de titânio. Eu estaria.

O plástico injetado é interessante porque permite a produção de formas quaisquer, além de poder usar material reciclado. O problema é que o material não é muito resistente ou durável. Mas certamente é uma outra boa ideia para se pensar melhor. Outros materiais menos usados, mas com algumas boas características, são: ligas de escândio, kevlar, spectra, compósitos termoplásticos, RTM, DMC, MMC, magnésio e berílio.

Materiais naturais, como a madeira, são usados desde o início das bicicletas, lá em 1817. O problema da madeira é que trabalha bem apenas em peças sólidas, o que aumenta muito o peso das bicicletas. Mas certamente são produtos muito bonitos. Já o bambu é usado desde a década de 1890. O problema com ele é que não suporta muito bem esforços de torção e, por ser um produto natural, não garante sempre a mesma geometria ou propriedades mecânicas, o que obriga que quadros de bambu sejam superdimensionados. No entanto, são bem interessantes como propaganda da sustentabilidade.

Pois muito bem. No final das contas minha recomendação é muito simples: roube sem pena este plano de negócios. Reúna seus amigos, vire um consultor, monte bicicletas sob medida, construa quadros com materiais diferentes, revolucione o design das bicicletas e produza veículos inteligentes. Só tome cuidado para não perder tempo defendendo o seu espaço. Muito pelo contrário, divulgue tudo o que sabe, libertando o conhecimento. Aposto que você ganhará mais dinheiro do que precisa, terá muito reconhecimento, se sentirá útil para o mundo e fará amigos de verdade. Acima de tudo, trabalhando com bicicletas você nunca vai deixar de se divertir.

httpv://www.youtube.com/watch?v=uIwMGkqa6Sw

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