Diários da Bicicleta

© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: Bicicletas em Equilíbrio

DIÁRIOS DA BICICLETA
Fábio Magnani
[publicado originalmente em novembro de 2012]

Eu já tinha ouvido falar do David Byrne quando soube que foi ele que promoveu a música do Tom Zé para o mundo. Depois descobri que antes disso ele tinha sido vocalista de uma banda chamada Talking Heads, que todo mundo conhece menos eu. Fui atrás das músicas dessa banda e não achei nada de mais. Mas o fato do Byrne ter apostado no Tom Zé fala muito sobre a sua inteligência, sobre o seu caráter e sobre a sua sensibilidade.

Os anos se passaram e nunca mais li nada a seu respeito. Até que dei de cara com o livro Bicycle Diaries, que foi publicado em 2009. Legal que foi lançado em português também, com o título “Diários da Bicicleta”. O livro é cheio de crônicas sobre cidades que David Byrne conheceu rodando em sua bicicleta. Mas antes de falar desse livro eu queria contar uma outra história.

Quando eu vim trabalhar no Recife, passei os primeiros dez anos andando só de ônibus. Esses tinham que dividir seus clientes com as kombis e com as toyotas. O que era muito bom, porque, para aguentar a concorrência, os ônibus tinham que ter mais conforto, linhas frequentes, ar condicionado e bancos quase sempre disponíveis. O chato é que depois de um tempo proibiram o transporte alternativo. Não sei direito porque, mas acho que as kombis incomodavam os carangueiros de classe média que se acham os donos das ruas. O fato é que, com a proibição das kombis, os ônibus pioraram muito. Nós os trabalhadores sentimos o baque na hora, pois o pequeno conforto que tínhamos acabou instantaneamente. Os carangueiros, que no começo tiveram as ruas mais livres, logo se deram mal também, porque boa parte dos trabalhadores comprou motos e automóveis, o que entupiu mais ainda as ruas. No final a proibição das kombis não foi boa para ninguém, a não ser para as empresas de ônibus.

Mas ainda não era bem isso que eu queria contar. Nessa época que circulava de ônibus, eu tinha bastante tempo tanto para estudar meus livros quanto para observar o mundo. Como hobby, comecei a me interessar pela mobilidade nas cidades. Dois livros me impressionaram bastante e me ajudaram a entender o que acontecia no Recife. Um foi O Espaço do Cidadão (1998), onde o grande Milton Santos me ensinou que cada pessoa tem acesso e percepção diferentes do espaço da cidade. Isso foi revelador para um simples engenheiro mecânico como eu, que pensava que o espaço era o mesmo para todos. Por exemplo, para um pobre que não pode entrar no shopping, aquele espaço não existe para ele. Assim como as favelas não existem para os carangueiros da classe média que medem as pessoas pelo que consomem, ou ainda como a maior parte da cidade não existe para as crianças, que não têm liberdade para se locomover. Com essa teoria, compreendi que existem várias cidades diferentes dentro de uma mesma cidade. Que alguns espaços públicos são feitos apenas para alguns privilegiados. Aprendi que é uma falácia quando dizem que “essa praça vai beneficiar toda a população”, “essa avenida vai servir toda a cidade” ou “essa indústria vai melhorar a vida de todos os cidadãos”. Com também é falacioso o slogan “trabalho, trabalho e trabalho”. Trabalhar para quem, cara pálida?

O outro livro que gostei muito foi The Transit Metropolis (1998), de Robert Cervero. Ele usa várias cidades do mundo para explicar as diversas concepções possíveis para a organização do trânsito urbano. O livro é antigo, já vai fazer 15 anos que foi publicado. Por isso, pode ser que algumas cidades não sejam mais como ele descreve. Mas são bons estudos de caso de qualquer forma.

Por exemplo, nos Estados Unidos, que são um país muito rico, as cidades são bem espalhadas. Isso é inviável para os outros países, pois o custo com asfalto, distribuição de água e eletricidade são muito altos. Sem contar que todo mundo tem que ter carro. No Japão eles apostam no transporte de massa – com muita inteligência. Antes de lançar uma nova linha de metrô, o governo compra todo o terreno em volta. Depois, com a valorização, vende os terrenos para pagar a linha de metrô. Aqui no Brasil parece ser o contrário. Os empresários compram os terrenos e convencem o governo a construir toda uma infraestrutura em volta. Depois ganham zilhões com a valorização.

Quando ele fala do México, descreve uma cidade com uma presença forte do transporte alternativo. Mas não critica como algo tolo, como os donos da verdade que convenceram os recifenses a aceitarem a proibição das kombis. Ao invés disso, o livro fala de pontos positivos e negativos do transporte orgânico, que não é regulamentado pelo governo. Sempre há algo para se aprender com a democracia!

No Brasil ele fala de Curitiba, um ótimo exemplo de cidade organizada. Gostei de dois aspectos. O primeiro é a gestão da cidade, que sempre é muito rápida em fazer novos testes e abandoná-los quando não dão certo. Outro lado é que Curitiba é uma cidade única. As suas ruas foram construídas muito largas, para imitar Paris. Isso na época foi um erro. No entanto, esse erro permitiu a instalação de linhas exclusivas de ônibus. Por isso, Robert Cervero atenta aos leitores de que não é fácil imitar Curitiba.

Três temas me chamaram muito a atenção nesse livro de 1998. O primeiro foram os bairros verdes, com suas próprias escolas, praças e padarias. Nesses bairros o trânsito de automóveis é desestimulado, criando espaço para pedestres e crianças. O segundo tema foi a integração de vários meios de transporte: metrôs para grandes deslocamentos, ônibus para bairros e vans para capilarização. O terceiro tema que gostei foi de que existe um meio de transporte mais apropriado para cada fluxo de pessoas. Muita gente: trem. Número médio: ônibus. Pouca gente: carro. Se uma prefeitura escolher o modo errado, tudo pára. Por exemplo, não adianta fazer uma avenida para carros se o fluxo de pessoas for alto – o trânsito simplesmente vai parar. Em resumo, não há um meio de transporte absolutamente melhor que os outros. O segredo é projetar com inteligência. Hoje em dia leio tudo isso em qualquer jornal, mas foi uma grande surpresa há 15 anos. Legal.

Mas o que Tom Zé, Milton Santos e Robert Cervero têm a ver com Bicycle Diaries se eles não foram nem citados? Tudo. No livro, David Byrne conseguiu misturar muito bem a sensibilidade de um artista, a inteligência de um filósofo e as informações de um estudioso das cidades.

Claro que o papel predominante é o do artista. E quando uso a palavra artista, falo sobre alguém que tem a preocupação em compreender a realidade e a complexidade do mundo, sem se prender a metanarrativas e sem fazer julgamentos morais. O que não deve ser visto como alienação. Muito pelo contrário, é essa franqueza com que interpretam o mundo e essa liberdade em relação às teorias que fazem com que as obras de arte sejam tão importantes para que nós, pobres mortais, possamos aos pouquinhos compreender melhor o mundo.

Nós precisamos de artistas que sejam extremamente sensíveis para representar o mundo de forma realista e que sejam também extremamente amorais para nos darem a liberdade de tomarmos nossas decisões. Se eles mesmo fizerem um pré-julgamento, então a obra deixa de ser artística e passa a ser propaganda política. Se eles racionalizarem demais, então a obra deixa de ser artística e passa a ser acadêmica. Claro que alguém precisa fazer a política e outro alguém precisa elaborar as teorias, mas os artistas têm um papel mais importante: nos mostrar o caminho. Deixem a arte correr solta!

Vamos ao livro. Na INTRODUÇÃO David Byrne conta que anda de bicicleta desde o início dos anos 80. No início era só uma tentativa, mas com o tempo começou a ir a todos lugares, inclusive festas noturnas. Depois passou a levar uma bicicleta dobrável para as suas turnês mundiais. Nessas viagens, sempre deixava alguns dias livres para pedalar pelas cidades por onde passava.

No restante do livro ele fala sobre várias cidades do mundo. Em CIDADES AMERICANAS, Byrne faz as críticas clássicas ao modelo urbano americano: a classe média se escondendo nos subúrbios artificiais, viadutos destruindo a vida nas cidades, highways acabando com as pequenas cidades por onde passam, shopping centers de plástico e carangueiros sem qualquer consideração com a vida dos pedestres. Exatamente o que estamos vivendo em Pernambuco.

O próximo capítulo é sobre BERLIM, que foi uma cidade esvaziada pela guerra fria e que agora vive um momento de gentrificação e especulação imobiliária. Parece que é sempre assim. Basta a classe média fazer um paraíso para as bicicletas como em Davis – pois é, às vezes a classe média acerta – ou então que a classe artística promova uma efervescência cultural como em Berlim, que logo vem a especulação imobiliária aumentando o preço de tudo, expulsando os criadores daquelas ilhas de bem-estar e atraindo os medíocres abastados. De onde se conclui que a única forma de melhorar as cidades é melhorando todas as cidades ao mesmo tempo, ou, ainda, que para melhorar um bairro é preciso melhorar todos os bairros ao mesmo tempo.

Depois vem ISTAMBUL, BUENOS AIRES, MANILA, SYDNEY, LONDRES e SÃO FRANCISCO. Em cada uma dessas cidades, Byrne fala sobre a arquitetura, trânsito e cultura. Istambul e Manila são os capítulos mais curiosos, pois a cultura deles é bem diferente da nossa. Já Buenos Aires tem um trânsito perigoso para bicicletas como aqui no Brasil, além da sua classe média ter problemas econômicos parecidos com os nossos. Sobre a Austrália ele fala bem do ambiente para bicicletas, mas critica o preço que os aborígenes pagam para que uma sociedade artificial seja mantida por lá. Londres e São Francisco são capítulos mais voltados para discussões culturais.

Em NOVA IORQUE, a última cidade, e no EPÍLOGO, Byrne deixa de lado o artista para falar um pouco de política. Aqui ele descreve algumas ações administrativas e culturais para aumentar o uso das bicicletas. Há bastante coisa para se aprender e que podemos testar aqui nas nossas grandes cidades. Ele também fala dos riscos que corremos ao continuarmos a vender cada vez mais carros, a construir mais viadutos e a produzir mais petróleo. Os outros países já provaram que esse é um caminho errado, mas mesmo assim estamos seguindo esses passos, como animais abestalhados no caminho do matadouro.

Ao terminar o livro confirmei mais uma vez a impressão mista que tenho do mundo. Por um lado há artistas, filósofos e estudiosos produzindo as mais fantásticas obras e mostrando que há um outro caminho. Por outro lado há políticos, empresários e uma classe média consumista que insistem em fazer sempre as mesmas bobagens. Claro que as bicicletas não são a solução para o trânsito urbano, muito menos a solução para os problemas do mundo. Mas elas fazem parte da solução e, acima de tudo, são um símbolo para essa mudança que precisa vir. Uma mudança para um mundo menos consumista, mais democrático e mais inteligente. Porque não há inferno pior do que viver em um lugar controlado por uma elite burra.

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