De Vespa na Itália


© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: Motoqueiros Famosos

DE VESPA NA ITÁLIA
Fábio Magnani
[publicado originalmente em outubro de 2011]

Antes de sair em viagem para o Atacama, eu costumava imaginar o que veria no deserto. Tinha lido tudo o que podia. Conhecia a história dos cemitérios nas salitreiras, sabia das dunas quilométricas que despencam no Oceano Pacífico e tinha visto na internet as fotos do vulcão ativo mais alto do mundo. Realmente, tudo isso estava por lá. Eu vi na viagem em que rodamos 500 km por dia. Uma correria.

Mas a visão que mais me marcou foi bem mais singela, foi um detalhe. Estávamos em Huara comendo um pão com queijo. A parada tinha que ser rápida, pois ainda precisávamos procurar gasolina na casa de uma senhora – a única venda de combustível em centenas de quilômetros -, depois descer o saca-rolha até Piságua e seguir para Arica. Enquanto eu pensava em tudo que ainda tinha que fazer, meu olhar se perdeu para fora da janela do restaurante. Lá na estrada, embaixo de uma das únicas árvores da região, estava uma motoqueira, sentada no banco da sua moto e chupando um picolé. Fomos conversar com ela, que nos contou que já estava há vários meses rodando pela região. A moto ia quase sem bagagem, ao contrário das nossas que carregavam tranqueiras para qualquer ocasião. Gasolina? Ela ia pensar nisso só depois que acabasse o sorvete. Eu me senti envergonhado, ridículo por estar fazendo uma viagem tão longa em tão pouco tempo. Para que tanta pressa?

Tem um livro que eu acho muito legal que fala exatamente sobre isso, é “Vroom With a View”, de Peter Moore. O título é uma brincadeira com um livro de 1908, em que uma moça criada na sociedade inglesa, tradicional e conservadora, encontra a paixão e a liberdade em Florença. Esse livro antigo, que depois virou filme em 1985, chama “A Room With a View”. Pela semelhança dos títulos, dá para imaginar que esse livro que eu quero comentar trata de uma viagem apaixonada para a Itália. Já a diferença, o “Vroom” no lugar do “Room”, deixa claro que é um livro de moto.

O autor do “Vroom” é australiano, um escritor profissional de viagens que já conheceu 92 países. Ao chegar próximo dos 40 anos de idade, percebeu que a vida não é infinita. Era hora de correr atrás de alguns sonhos que tinham ficado para trás. Começou a lembrar de visões que tinha tido na sua infância, de como uma pessoa poderia ser plena, feliz e, ainda por cima, maneira. Para ele, a imagem de tudo isso era algo como ver Marcello Mastroianni pilotando uma Vespa na Itália. Ele pararia em uma praça, acenderia um cigarro e flertaria com Sophia Loren, que estaria chupando um gelato do outro lado da rua. Pena que a vida não pode ser exatamente como um sonho, mas bem que pode ser parecida. Sem pensar muito, Peter Moore comprou pela internet uma Vespa 1961, um ano mais velha que ele próprio, e reservou a passagem de avião. Em meados de 2002, desembarcou em Milão para fazer a sua grande viagem até Roma – três meses para percorrer 600 km.

O livro é uma aula de escrita de viagem. Como um bom profissional, ao invés de falar sobre os grandes pontos turísticos – com todas as informações que já estão na internet -, Peter Moore escreveu sobre os detalhes da sua viagem, os sabores que experimentou, os amigos que conheceu e as surpresas que teve quando errou de caminho. Cada vez que se perdia, ou toda vez que a moto quebrava, sempre havia alguém para ajudá-lo. Tanto isso é verdade que, depois de tanta ajuda, a moto chegou no final da viagem em estado muito melhor do que quando começou.

Logo que ele saiu de Milão, se comprometeu em encontrar uma Vespa verde dentro de um Kinder Ovo. Acabou viciando na busca, uma obsessão de brincadeira. Seu único objetivo concreto na viagem era aquele, comer todo dia pelo menos um Kinder Ovo até achar a Vespa verde. O resto viria naturalmente, sem esforço e sem pressa.

Há várias teorias legais espalhadas pelo livro. Por exemplo, que você deve pedir milagres só para os santos novos, que não têm tantos compromissos como os santos tradicionais. Ou então que a justiça italiana considera lícito o uso de certos xingamentos no trânsito, como o favorito vaffanculo. Ou ainda como a personalidade das pessoas de várias regiões da Itália pode ser caracterizada pela forma como chamam a parte traseira da Vespa: puppa (peitos) em Livorno, chiappe (bumbum) em Roma ou polmoni (pulmões) em Luca. Mas a melhor teoria é que as Vespas são melhores que as motos esportivas ou até que as bicicletas para passear na Toscana. As esportivas são muito barulhentas, então não dá para ouvir os animais conversando ou os girassóis dançando ao vento. As bicicletas… bem, as bicicletas também são barulhentas, pois naquelas subidas a única coisa que você consegue ouvir é o seu coração estourando dentro do peito.

Durante duas das semanas da viagem, Moore foi acompanhado por Sally, sua namorada inglesa. Essa é a parte principal do livro, contada em maiores detalhes. Para ele, assim como para todos nós, é impossível não misturar a Itália com a paixão. Por falar nisso, um outro filme de que ele fala bastante durante todo o livro é “Roman Holiday” (“A Princesa e o Plebeu”, 1953), em que Gregory Peck e Audrey Hepburn vivem um grande amor pelas ruas de Roma. O passeio dos dois em uma Vespa é uma das cenas clássicas do cinema. Ironicamente, esse filme, que mostra as motos como veículos alegres e românticos, foi lançado exatamente no mesmo ano de “The Wild One” (“O Selvagem”, 1953), em que Marlon Brando forjou a imagem dos motoqueiros como violentos e machistas.

Peter Moore conta também um pouco da história da Piaggio, de como eles conseguiram crescer na década de 50 por causa de um sistema de financiamento audacioso e arriscado. Naquele tempo, depois da Segunda Guerra Mundial, boa parte das pessoas vivia em pobreza, então, com o crédito fácil, todo mundo podia ter uma Vespa, que se transformou no veículo nacional. Outra razão do crescimento da Piaggio foi a estratégia de marketing, de associar as Vespas com pessoas exultantes e de bem com a vida. Ao invés das mulheres objeto, comuns nas propagandas de outras fabricantes, os anúncios da Piaggio traziam casais apaixonados, mulheres inteligentes e independentes. Mas o mais importante era o design da Vespa, que era diferente de tudo o que já se havia visto antes.

Parece que na Itália todos têm alguma história de vida que se passou em cima de uma Vespa. Durante a viagem, a moto antiga de Peter Moore causava as melhores lembranças possíveis nas pessoas, que contavam as suas histórias e abriam as portas para locais que um turista comum normalmente não teria acesso. Embora tenha parecido audacioso comprar uma Vespa na internet e partir para um país distante, no final das contas ele viajou como um italiano qualquer, que passeia com sua máquina em um mundo cheio de amigos. A Vespa ‘61, apelidada de Sophia, fez tudo ficar natural.

Vale a pena ler “Vroom With a View” por várias razões. Primeiro porque descreve uns cantinhos muito legais da Itália, que Moore encontrou meio por acaso. Ele também não poupa críticas a um monte de lugares famosos que na realidade são roubadas. Depois porque ensina como escrever um relato de viagem, se concentrando nas experiências reais e nos detalhes, não na tentativa de reproduzir informações turísticas, sociológicas ou cartões postais. Também porque é um livro muito engraçado e leve, coisa para se divertir. Mas principalmente porque é uma homenagem àqueles que sabem aproveitar a vida, sem pressa. Afinal, para que viajar 600 km em um dia se você pode usar três meses?

Como eu estava falando, aquele simples detalhe em Huara foi o responsável pela principal mudança que eu ganhei com a viagem ao Atacama. Hoje em dia eu não preciso mais cruzar um estado para provar que sou livre, não preciso mais sair do país em busca da aventura ou rodar 300 km antes do café da manhã para saciar minha fome de viver. Não preciso nem ir para a Itália, embora fosse bom. Para me sentir aventureiro, livre e saciado, basta sair de casa de manhã, ligar o motor da minha moto, dobrar a esquina e me dedicar a ver algum detalhe novo no mundo. Sem pressa.

Ontem fomos ao cinema assistir um filme italiano. Comprei um Kinder Joy, que é a versão vendida no verão, com o ovo de plástico para não derreter. Não encontrei a tal Vespa verde. A surpresa foi um robô articulado. Vaffan…

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