© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: Um Motoqueiro Existencialista
Fábio Magnani
[publicado originalmente em dezembro de 2017]
Este é o último texto do ano. Daqui a pouco vai ser Natal, fim de ano, férias, então escolhi um tema que simbolizasse esse momento: a comida, a culinária. Eu não sou muito ligado à comida. Quer dizer, sou ligado a comer, mas não tenho nenhuma sofisticação. Só que agora, depois de ler alguns livros e assistir alguns filmes, comecei a entender que a culinária é bem mais importante que eu imaginava. Ela tem três dimensões principais: fazer a comida, apreciar a comida, e compartilhar a comida. Esses livros e filmes que eu vou comentar têm a ver com essas três dimensões.
O primeiro é Feasting on Asphalt: The River Run, do Alton Brown, algo como banquete no asfalto. Esse cara tem um programa na TV com esse nome. Na segunda temporada, ele e uma equipe saíram de moto subindo do sul ao norte dos EUA, mais ou menos três mil quilômetros em um mês, acompanhando o Rio Mississípi. Foram parando em pequenas cidades, tentando fugir das grandes highways e de lugares turísticos, procurando os restaurantes, mercadinhos e sorveterias que ainda restavam de autênticos nas estradas. Paravam e comiam. Carne, hambúrguer, peixe, rosquinha, sorvete, bebida. Vão curtindo essas surpresas e ouvindo as histórias que as pessoas contavam. Às vezes conversam até sobre os móveis do restaurante. Sempre lugares pequenos. O livro tem esse nome porque algumas vezes quando chegavam o local estava cheio de locais, então eles pegavam algumas mesas e comiam na rua mesmo.
Depois li Forks: A Quest for Culture, Cuisine, and Connection, do Allan Karl. Ele tinha se divorciado e estava perdido na vida. Como sempre, pegou uma moto e saiu durante três anos para visitar 35 países. Basicamente países da América, da África e do Oriente Médio. Interessante o nome que escolheu, porque fork pode significar garfo, tanto o garfo de comida quanto o garfo da moto, aquela peça que liga a roda da frente ao guidão. Mas também pode significar as forquilhas e as bifurcações que alguém encontra em uma estrada. Você tem que decidir se vai por um caminho ou pelo outro, claramente simbolizando também as escolhas que você faz na vida. Curioso que a viagem demorou três anos, mas o livro demorou mais tempo que isso para ficar pronto. Foram quatro anos para encontrar o tema perfeito. Ele ficou pensando e pensando sobre o que havia acontecido durante a viagem. No fim das contas, o que ficou marcado foram as conexões que construiu com as pessoas que encontrou. E isso ficava muito mais aparente, muito mais forte, durante as refeições. Ele acabou descobrindo que se falasse sobre a comida dos países, estaria falando sobre o que conheceu por ali. Então encontrou o tema e a forma do livro: cada capítulo seria sobre um país, homenageado por uma receita característica. No caso do Brasil escolheu a moqueca e a caipirinha, mas também falou do churrasco no Rio Grande do Sul, ostras em Santa Catarina, e papaya na Bahia. Ali também conheceu o samba e a capoeira. O livro como um todo é muito bem feito, cada capítulo tem um monte de fotos legais, com as pessoas, as comidas e os lugares. Tem a foto de cada receita que ele conseguiu reconstruir, e também por isso demorou tanto para construir o livro.
Voltando um pouco ao Feasting on Asphalt, também tem receitas de cada lugar que pararam, com o nome do estabelecimento e coordenadas de GPS. As receitas às vezes são as que as pessoas mesmo passaram para ele, às vezes ele adapta porque as originais tinham ingredientes difíceis, e às vezes as pessoas não queriam dizer a receita exata, então ele tentou recriar.
Outro livro com muitas receitas é The Culinary Cyclist: A Cookbook and Companion for the Good Life da Anna Brones, que poderia ser traduzido como “O Ciclista Culinário: um Livro de Receitas e Companhia para a Boa Vida”. Este não tem fotos, mas em compensação tem ilustrações da Johanna Kindvall. Fala mais sobre a culinária do dia a dia, como devemos ter prazer desde o primeiro café que a gente toma pela manhã. Pode ser algo bem simples, mas mesmo assim você pára na sacada e toma o café enquanto olha o vento mexer as folhas das árvores. Ou à noite quando vai dormir, daí prepara um chá que te tranquiliza para entrar no mundo dos sonhos. E assim durante o dia todo. Como ela fala muito de bicicletas, também dá dicas de como carregar as coisas, tentar comprar localmente, e bater papo com os produtores. Até como fazer uma festa para os amigos ciclistas, porque daí você precisa se preocupar com o volume das coisas e como transportar a comida sem desmanchar. Presentes que você pode dar, potes com comida, você pode virar um especialista em algum tipo de sobremesa marcante, como um bolo de chocolate que dá para levar para qualquer lugar na magrela. Muito inspirador. A maior parte das receitas são vegetarianas e sem glúten. Ela diz que está fazendo isso porque é o tipo de comida que ela está acostumada a comer na casa dela, mas a comida deve ser um momento de prazer e não para ficar preso a regrinhas. Ela tem uma comida ética e saudável, mas sem regras absolutas.
Daí vem o Eating Up Italy: Voyages on a Vespa do Matthew Fort, talvez “Devorando a Itália”. Esse cara é inglês, mas neste livro passa três meses rodando a Itália de Vespa, indo do sul até o norte, mais ou menos 1500 quilômetros. No começo lá no sul, onde as estradas são mais simples, ele faz com uma Vespa de 50cc, mas depois passa para outra Vespa de 125cc para rodar nas estradas mais rápidas do norte. Vai parando para experimentar a comida assim como fizeram os outros autores, só que em lugares mais chiques que ele já sabia de antemão que eram bons. Escreve sobre as comidas e o modo de preparo. Fala muito das características da comida italiana, na qual as pessoas se preocupam mais com a qualidade dos ingredientes do que em colocar muita coisa diferente. Também diferencia a comida italiana da inglesa e da francesa, porque na Itália a culinária veio do povo, uma comida inventada para sustentar as pessoas durante o trabalho. Ao contrário das outras duas, que vieram de cima, da nobreza inventando pratos. Fala ainda sobre o movimento slow food, que, ao contrário de fast food, seria comida lenta, comida devagar. É um movimento que presa pela comida bem feita, comida sem pressa e com prazer, um movimento criado nos anos 80 lá mesmo na Itália.
Eu ouvi falar pela primeira vez desse movimento do slow food no começo dos anos 90 por causa de uma banda brasileira que eu gostava chamada Nouvelle Cuisine (que também tem a ver com comida, já que homenageia o movimento que começou nos anos 60 lá na França, de comida mais leve e mais bonita). Essa banda tocava jazz e o segundo disco deles, de 91, chamava exatamente Slow Food. Um detalhe em duas rodas, que eu não lembrava, é que o primeiro disco deles tinha uma música chamada Riquixá, que é aquele triciclo que leva as pessoas em um banquinho – e que chama pousse-pousse em francês. Como a música é em francês, que eu não entendo, e como não tem a letra no disco, então não faço a mínima ideia do que ela fala, nem se estão falando bem nem mal dos riquixás. Conheci o Nouvelle Cuisine porque eles gravaram uma música junto com a Marisa Monte, que começou a fazer sucesso no final dos anos 80. Ela também tem a ver com culinária, pois o primeiro disco dela tem a música Comida, em que ela cantava “A gente não quer só comer, a gente quer comer e quer fazer amor”. Também tinha a música Chocolate composta pelo Tim Maia. Engraçado que nesse momento enquanto eu estava lembrando dessas bandas que eu gostava no final dos anos 80, pipocou na minha memória o Blues Etílicos, que não tem tanto a ver com comida, mas certamente é a bebida que a acompanha: o blues regado a álcool. Olhe só o que os jovens tinham para ouvir naquela época: jazz com Nouvelle Cuisine, música de qualidade com a Marisa Monte, blues com o Blues Etílicos.
Mais um livro, também com receitas e sobre culinária, é Dirty Dining: An Adventurer’s Cookbook da Lisa Thomas. “Dirty” vem de “dirty biking”, andar de moto na lama, fazer trilha. O trocadilho no título é porque esse casal está há 14 anos rodando de moto pelo mundo por trilhas aventureiras. O livro traz fotos lindas e receitas gostosas assim como os outros que já comentei. É bem prático também: o que levar na sua aventura de moto, comidas que não estragam, vasilhas que não quebram, e os temperos para dar aquela enganada quando a comida não está tão gostosa assim. Depois ensina como fazer a comida da estrada, uma comida rápida depois de um dia de aventura, quando você está lá no meio do deserto, no meio da selva. Ensina até coisas bem simples mesmo, como fazer arroz, peixe, macarrão com sardinha enlatada, muito muito prático. Muito bonito também, como todos os outros.
São todos parecidos, mas de certa forma diferentes. Feasting on Asphalt é sobre restaurantes de beira de estrada, Eating Up Italy sobre restaurantes chiques, Forks com a comida típica de cada país, The Culinary Cyclist em como consumir localmente, e Dirty Dining em como comer em acampamento. Cada um deles mostrando um aspecto diferente da comida.
Deixando um pouco as músicas e os livros, vamos para os vídeos. Tem o programa de culinária do Olivier Anquier, que é aquele francês que mora no Brasil há muitos anos. Em duas rodas tem uma temporada que rodou de moto com a filha na França e depois uma viagem de moto ao Atacama. Em geral ele é mais conhecido por chegar nos lugares de Fusca. Assisti alguns programas. Alguns gostei muito, outros achei chatos. Para mim isso é um grande elogio, porque às vezes esses programas de TV são muito pasteurizados, sempre exatamente iguais. O fato de você achar esse programa um dia legal, outro dia não, é como se fosse um amigo seu, com quem às vezes você está sintonizado e às vezes não.
Um personagem de filme que era motoqueiro e cozinheiro é interpretado pelo Bradley Cooper no filme Burnt (“Pegando Fogo”). Nesse filme ele é um supercozinheiro famoso, mas também é um bad boy, meio barbado, que anda de moto, jaqueta de couro, e briga com as pessoas. No fundo o filme trata mesmo da questão do perfeccionismo, com o qual o personagem não consegue lidar, e com as emoções muito fortes que a comida traz. O filme é sobre como ele aprende a trabalhar com os outros, a relaxar. A história de sempre, sim, mas legal como sempre.
Outra personagem cozinheira e também motoqueira é a Colette Tatou do Ratatouille. Ela é a mocinha, toda independente, forte, inteligente, e a que melhor cozinha no desenho animado. Gosto muito dela.
Queria falar também sobre alguns filmes que não têm exatamente a ver com motos, embora tenham um pouco. Perfect Sense (O Sentido do Amor, no Brasil) é um filme com Ewan McGregor e Eva Green. O Ewan McGregor é bem famoso por ser motoqueiro e por ter dado a volta ao mundo de moto. Nesse filme ele anda de bicicleta, então mesmo assim tem a ver com as duas rodas. É um filme um pouco denso, um pouco triste, meio ficção científica. Nele o Ewan McGregor é um cozinheiro, em um mundo no qual por alguma razão há uma epidemia em que as pessoas estão perdendo os seus sentidos fisiológicos. Perdem gradativamente o aroma, o paladar, a audição, a visão e o tato. Imagine isso para um cozinheiro que vai fazer uma comida sem que as pessoas sintam o aroma. Isso é bem interessante, porque parece uma coisa besta o aroma, mas quando as pessoas o perdem no filme elas perdem também suas memórias, perdem as emoções ligadas à essas memórias. Triste, um filme reflexivo, mas também mostra o que acontece quando nos tiram coisas que acreditávamos serem garantidas e a gente vai procurando coisas mais importantes ainda, mais fundamentais. No fim, resta a eles o amor. Basta a eles o amor.
Outro filme que gosto muito é Sem Reservas, com a Catherine Zeta-Jones, e ele só está aqui porque ela é a mulher mais bonita do mundo e eu tinha que dar um jeito de falar dela. No filme, ela é uma cozinheira bem conhecida e perfeccionista e obsessiva e estressada, e daí começam a acontecer certas coisas em sua vida que fogem do seu controle. Primeiro ela tem que aprender a cuidar de uma sobrinha que ficou órfã. Também conhece um cara que é cozinheiro, mas que gosta mais da comida italiana. Ele é mais intuitivo que ela, não metódico. Aos poucos ela vai aprendendo que, mesmo que você precise presar pela qualidade quando prepara um prato, você também tem que aprender a relaxar e a aproveitar a vida. É uma comédia romântica, mas eu acho legal mesmo assim. Talvez seja mais que uma comédia romântica, é um filme sobre evolução espiritual e pessoal. Tem um pouco a ver com mobilidade porque eles sempre aparecem caminhando pela cidade, a procura de temperos, ervas e peixes.
O último filme eu deixei como sobremesa, Chocolate com a Juliette Binoche e o Johnny Depp. No filme ela é uma mulher que viaja com sua filha, indo de cidade em cidade levando chocolate em receitas especiais, receitas que podem modificar as pessoas. A pessoa, ao comer esse chocolate mágico, pode voltar a amar, a aproveitar a vida, a ter desejo sexual, relaxar, cuidar de si mesma. O chocolate é usado como metáfora das transformações na vida das pessoas. Também tem a ver com mobilidade, porque ela e a filha vão de cidade em cidade caminhando, e o mocinho, que nem é tão importante, o Johnny Depp, é um cigano que viaja de barco para tocar música nos vilarejos. Por falar nisso, uma coisa que gosto no filme, eu e a torcida do Flamengo, é a música Minor Swing do Django Reinhardt. Mas o que acho curioso é que toda vez que eu escuto essa música que eu tanto gosto fico esperando começar uma outra música, Puttin’ on the Ritz, uma música mais antiga. Eu não entendo de harmonia, mas talvez as duas tenham algo em comum que me transmita familiaridade. Sempre sempre que escuto uma espero a entrada da outra.
Era isso. Eu queria falar sobre comida, aproveitar esse momento de final de ano. Como eu disse, sou bem relaxado em relação a comida, acho que não consigo dar o devido valor, mas vamos ver se aprendi um pouquinho com essas pessoas que se deram ao trabalho de fazer esses filmes, essas músicas, e esses livros tão bem feitos. A comida tem a ver com a busca da qualidade, e de fazer as coisas com carinho, cuidado e amor. Também tem a ver com prazer, com você relaxar e aproveitar as coisas boas da vida. E tem a ver com congregação, com encontrar outras pessoas, e compartilhar. Bem… eu tenho muito o que aprender nessas três dimensões: relaxar, fazer com qualidade e, principalmente no meu caso que não sou uma pessoa especialmente hábil socialmente, compartilhar. Boas festas a todos.
Saúde, amigos. Saúde e um aperto de mão.