Corpos em Movimento


© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: Política em Duas Rodas

CORPOS EM MOVIMENTO
Fábio Magnani
[publicado originalmente em maio de 2011]

Por que nós gostamos de andar de moto? Será que temos algum instinto para isso ou somos vítimas de empresas que, para vender os seus produtos, nos convencem da ilusão da individualidade, liberdade e rebeldia?

Eu não tenho carro. Ando de moto todo dia, para trabalhar ou viajar. Quando estou rodando com a minha moto não tenho muito tempo para pensar em nada. É só aproveitar. Mas às vezes eu tenho que andar no carro da minha mulher. Qualquer parada no semáforo é um suplício. Fico só olhando aquele monte de motoqueiros. Quando o sinal abre, parece uma revoada de passarinhos. Dá uma dor no coração não estar ali no meio.

Por que as pessoas andam de moto? Por que alguém arrisca a sua vida para voar a apenas alguns centímetros do chão?

Muita gente já deu os seus pitacos. A resposta mais óbvia é que as motos são baratas e ágeis. Acho que essa é a principal razão porque a maior parte das pessoas anda de moto. Mas ainda fica outra pergunta. Por que quem não precisa andar de moto anda mesmo assim? Por que é gostoso andar de moto?

Muita gente também já tentou responder essa pergunta. A resposta depende um pouco da época de que se está falando. Por exemplo, nas primeiras décadas do motoqueirismo as motos não eram muito confiáveis ou confortáveis. Era preciso ter um bom conhecimento de mecânica e suportar um grande desconforto. Naquela época, o que movia os motoqueiros era o amor pelas máquinas, era o fato de terem que fuçar em suas motos para elas funcionarem.

Depois da Segunda Guerra Mundial, o motoqueirismo divergiu em duas grandes correntes. Os países quebrados precisavam de transporte barato, então aumentou mais ainda o número de pessoas andando de moto para trabalhar. Por outro lado, principalmente nos Estados Unidos, havia um certo estranhamento entre os soldados que voltavam da guerra e a sociedade certinha de então. Foi a época de ouro dos motoclubes. Os desajustados se agrupavam em gangues de moto para criar a sua própria identidade, manifestar a sua independência e, principalmente, curtir as suas motos em corridas perigosas. Eram os “bikers”. Um pouco depois, no final dos anos 60, aparecem os “riders”, que rodavam o mundo todo à procura da paz e do amor.

Aqui acontece um fenômeno bem interessante. Embora o número de pessoas que pilota uma moto a trabalho seja muito maior do que o número de “bikers” e “riders”, a imagem que as pessoas têm dos motoqueiros é muito mais ligada aos barbudos malvados do que aos trabalhadores. Os filmes e propagandas são os responsáveis por isso. Talvez essa condição esteja mudando aqui no Brasil, pois os motoboys estão em todos os lugares. Mas parece que esses jovens arrojados e alegres – que lembram muito os “bikers” americanos dos anos 50 – ainda não conseguiram criar uma imagem própria. Mas vamos chegar lá.

Esse negócio de rebeldia, paz e amor foi nos anos 1950-60. Mas hoje, por que ainda é gostoso andar de moto? Há duas grandes respostas para isso. Uma delas, talvez a mais aceita entre os acadêmicos, é que as empresas conseguiram amansar a imagem dos “bikers”. Para vender motos, roupas e acessórios, as empresas convencem os seus consumidores a personificarem “bikers”, “riders”, “dirt riders”, “urban fighters” etc. Até convencem os consumidores de que basta serem capazes de instalar uma bolha sozinhos para serem iguais aos pioneiros que desmontavam seus motores na beira da estrada.

Será que é isso mesmo? Será que somos todos simples consumidores vivendo em uma ilusão de individualidade, liberdade e rebeldia?

Steven L. Thompson, autor do livro “Bodies in Motion”, acha que não é só isso. Ao contrário das explicações de que somos todos consumidores, ele se baseia na Psicologia Evolutiva para defender que andamos de moto porque nossos instintos assim comandam. Por essa teoria, parte considerável dos nossos comportamentos e preferências pode ser explicada pela evolução das espécies. Quer dizer, todos os nossos principais traços estão aí porque em algum momento da nossa evolução foram importantes para a reprodução e sobrevivência de nossos antepassados. O problema é que a evolução genética é muito mais lenta do que vem sendo a transformação da nossa sociedade. Por isso, temos características que foram importantes há milhares de anos, mas que hoje em dia às vezes nos atrapalham. Por exemplo, temos a mania de comer muito mais do que precisamos. Isso era interessante quando vivíamos na floresta, pois não havia muita comida. Fomos então programados para comer sempre o máximo possível, para armazenar a energia necessária. Hoje em dia não precisamos mais acumular tanta energia assim, mas continuamos com esse instinto. Ficamos obesos.

Voltando a quando vivíamos nas florestas, os seres humanos com maior probabilidade de sobreviver eram aqueles que gostavam de se balançar de galho em galho (e.g., para pegar comida), tinham alto poder de concentração (e.g., para detectar um predador) e faziam questão de demonstrar seu poder físico (e.g., para conquistar uma parceira). Então, pela Psicologia Evolutiva, nós temos instintos que nos fazem ter prazer ao sentirmos o corpo em movimento, ao sentarmos em um galho de árvore, ao nos concentrarmos em pequenos detalhes da paisagem e ao nos mostramos poderosos por aí. Nos dias atuais, todos esses instintos podem ser satisfeitos em cima de uma moto. Sentimos relaxamento e excitação ao acelerarmos em curvas, ao sentarmos com um tanque entre as pernas, ao nos concentramos nas súbitas mudanças do trânsito e ao nos expormos para as meninas como cavaleiros orgulhosos saindo para uma cruzada. Talvez a moto seja, mesmo, o veículo perfeito.

Thompson vai além, mostrando medições de vibração feitas em várias motos. Para ele, uma das razões porque cada um tem um gosto diferente por moto – e.g., “cruiser”, “sport”, “dual purpose” – tem muito a ver com a posição de pilotagem e com a vibração do motor. Esses estudos são muito iniciais ainda, mas alguns livros são mais importantes pelas perguntas que fazem do que pelas respostas que oferecem.

O autor do livro até aceita que muitas pessoas entram nessa ilusão criada pelas empresas. Que vão ser especiais se possuírem essa moto cara ou se usarem aquela roupa de grife. Mas, segundo ele, no final das contas nós andamos de moto porque a nossa natureza assim comanda. Alguns de nós não têm escolha. Estamos condenados a satisfazer nossos prazeres instintivos em cima de uma moto. Ainda bem.

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