Bicicletopédia


© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: Bicicletas em Equilíbrio

BICICLETOPÉDIA
Fábio Magnani
[publicado originalmente em outubro de 2012]

Já estamos na contagem regressiva para o início de Estudos da Bicicleta. Daqui um mês, 22 de novembro, começam as matrículas para os estudantes de Engenharia Mecânica da UFPE e também para os estudantes de outros cursos que solicitarem vagas. Um pouco depois, 03 de dezembro, vem a matrícula em disciplina isolada para quem estuda em outros cursos, em outras universidades ou então já tem algum diploma superior. As aulas mesmo começam no dia 04 de dezembro – serão sempre às terças, das 17 às 19. Seguem alguns links para quem quiser mais informações sobre a disciplina, sobre o calendário acadêmico da UFPE e para entrar em contato comigo.

Sendo bem honesto, estou eu me sentindo como um político em época de eleição. Isso porque a disciplina só vai ocorrer se tivermos um número mínimo de estudantes matriculados. O que nem sempre é fácil, porque há um monte de outras disciplinas eletivas sendo oferecidas. Disciplinas que têm conteúdos que apontam para empregos fáceis em empresas de petróleo, em montadoras de automóveis e em construtoras de navios. Nossa disciplina, por não ter apoio de empresas, não promete empregos. Ainda bem. Temos liberdade para pensar diferente.

“Estudos da Bicicleta” não é para quem quer ser empregado.

Esta disciplina é para quem quer montar a sua própria fábrica de bicicletas – um negócio de 1,5 bilhões anuais só aqui no Brasil, e que vai crescer muito mais se jovens empreendedores entrarem no mercado com sua energia, criatividade e ética. Não é preciso muito dinheiro. Basta começar montando bicicletas com componentes disponíveis no mercado, depois fabricar o próprio quadro, e finalmente produzir a bicicleta como um todo. Depois vêm as bicicletas elétricas, as motos elétricas, veículos para necessidades especiais, novos conceitos de mobilidade individual… e não há limites.

Sem contar que o jovem com um bom conhecimento do bicicletismo pode trabalhar como designer independente, consultor de políticas públicas, projetista de componentes, editor de websites, ou ainda como escritor, fotógrafo ou produtor cultural especializado – entre muitas outras carreiras. Bem além das máquinas em si, há uma grande demanda social para a recriação do mundo que cerca as bicicletas, com filmes, documentários, livros, reportagens, brincadeiras com crianças, atividades com os idosos, novos esportes, moda, educação profissional, formação de cooperativas de serviços e novas formas de ação política.

A bicicleta é uma ferramenta que pode ser usada para recriar comunidades, reestruturar a economia local com pequenas empresas saudáveis e consolidar a ideologia do progresso é viver bem.

Afinal, apesar de tentarem nos convencer do contrário, progresso não é ser só mais um empregado em uma empresa gigantesca, não é produzir mais petróleo, não é ficar preso no congestionamento respirando gases tóxicos, não é ficar em casa sedentário assistindo televisão porque a cidade não oferece nada melhor, não é ter medo de deixar seus filhos irem sozinhos à escola porque podem ser atropelados, não é ter que concordar com tudo o que diz aquele que nos dá uma esmola na forma de complemento salarial e também não é fabricar mais carros que só enfeiam/travam/sujam/deformam as cidades. Não. Progresso é ser livre para pensar, é ser livre para criar e é ser livre para agir. Progresso é viver bem.

Agora… quero que fique bem claro que eu não acho que alguém vai ser mais ou menos feliz por ser dono de uma empresa. O que eu acredito é que é bom para todos que as pessoas certas liderem a economia e a produção intelectual. Creio nisso porque não é saudável quando as mentes mais brilhantes de um país ficam engessadas por serem obrigadas a apoiar a posição dos seus empregadores ou dos seus financiadores. Mais petróleo. Mais petróleo. Mais carros. Mais carros. Mais arrecadação de impostos. Mais arrecadação de impostos. Mais empregados. Mais empregados. Quando alguém defende que os jovens sejam empresários, não significa que essa pessoa defende o capitalismo selvagem. Significa, ao contrário, que essa pessoa acredita na libertação das ideias. E é nisso que eu acredito, que para uma pessoa ser realmente feliz ela precisa ter a liberdade para cultivar e para realizar as suas próprias ideias.

E não é só isso! Estudos da Bicicleta é um tipo de disciplina que permite a consolidação de conhecimentos de várias áreas e que força o estudante a pensar em como são as ligações entre a tecnologia e a sociedade. Vamos discutir o que tem que ser mudado para que as bicicletas passem a ser mais usadas. Essas mudanças são necessárias tanto no projeto das bicicletas (e.g., novos materiais, novos mecanismos, nova aerodinâmica) quanto nas condições que as cidades oferecem aos ciclistas (e.g., leis de trânsito igualitárias, ciclofaixas, disponibilização de água gelada em vários pontos da cidade e ruas arborizadas).

Para entender essa relação entre a tecnologia e a sociedade, é preciso dar uma olhada na fisiologia do ciclista, no comportamento do trânsito, na cultura local e nas forças econômicas. Forças essas que tentam nos fazer lavagem cerebral para que acreditemos que é indiscutivelmente bom aumentar a produção de petróleo e fabricar cada vez mais carros. Poluição, acidentes e congestionamentos? Não pense nisso. Pense no seu emprego, pense no progresso.

Por falar em política, nesta disciplina a bicicleta não será vista como a solução de todos os problemas. Não será uma disciplina na qual quem quiser falar de outros modos de transporte será colocado no cantinho dos jumentos. Muito pelo contrário! Nosso objetivo será discutir as vantagens e também as desvantagens das bicicletas. Pois só com essa visão integral uma fábrica pode realmente crescer e só com essa visão global alguém pode propor soluções concretas para a mobilidade nas cidades. Quem quiser aula de “Fundamentalismo Bicicletórico” que procure em outro lugar.

Pronto! Aí está a minha plataforma política e o meu plano de governo.

Enquanto espero o início das aulas, continuo aqui preparando o material. Como eu já escrevi antes, quando comentei o livro 100 Best Bikes, existe um monte de tipos de bicicleta. Tem bicicleta de competição, bicicleta para o trânsito urbano, bicicleta para mostrar que alguém é rico, bicicleta de carga e mais uma tuia de outros tipos. Entre esses tipos, há as bicicletas de vanguarda, que testam novas ideias e propõem novos conceitos.

Essa questão de vanguarda, de inovação, precisa ser vista com muito cuidado. Uma coisa é uma empresa testar novos materiais, novos mecanismos, uma nova geometria ou um novo design. Isso é legal e muito saudável. Outra coisa completamente diferente é quando tentam vender essas ideias como se fossem a solução para todos os problemas. Isso é criminoso. Por essas razões, apesar de defender fortemente as inovações, eu critico mais fortemente ainda a propaganda enganosa. Pior ainda quando tentam vender um conceito que já foi proposto há 100 anos como se fosse uma novidade. O consumidor tem o direito de saber quando está comprando uma ideia revisitada ou então que está comprando uma ideia que pode não dar certo.

O livro que estudei esta semana foi o Cyclepedia, de Michael Embacher (2011), que mostra 100 bicicletas que tiveram como objetivo trazer o novo. Algumas delas revolucionaram o mercado. Outras, no entanto, ficaram para trás como mais uma tentativa mal sucedida. Legal que tentaram.

Essas 100 bicicletas não são necessariamente as mais importantes da história. Isso porque todo o livro é baseado apenas na coleção de Michael Embacher, que começou em 2003 e tem mais de 200 bicicletas. Faltam muitas bicicletas importantes – em geral as fabricadas pelas gigantes, como a BSA, por exemplo. Neste livro, ao invés de falar das bicicletas que mudaram o mercado, o autor preferiu falar sobre ideias, sobre conceitos, sobre detalhes e sobre capricho. Quando você lê o livro, parece que está dentro da mente de um grande designer que tem a mais completa liberdade para criar o novo.

O livro é lindo. Capa dura e fotos com fundo branco. As bicicletas aparecem tanto em corpo inteiro quanto em detalhes. A cada página você fica maravilhado tentando entender porque o projetista escolheu cada uma das soluções. Algumas soluções são técnicas, como o acabamento manual da Cinelli para diminuir o arrasto aerodinâmico. Já outras, como a ponta do guidão em forma de foguete da Katakura, são apenas estéticas. Algumas ideias são absurdas, como os pedivelas em L da C.B.T.. Outras marcam um futuro que ainda não amadureceu, como a mudança de marcha eletrônica da Kestrel.

A coleção inclui bicicletas de vários países (e.g., França, Inglaterra, Itália, Japão, Taiwan, Alemanha, EUA), épocas (de 1925 a 2010), tipos (e.g., de corrida, curiosidades, de carga, MTB), materiais (e.g., aço, alumínio, titânio) e pesos (8 a 32 kg).

Quando eu falei sobre o livro 100 Best Bikes, escolhi seis bicicletas ao acaso. Desta vez, ao comentar o Cyclepedia, diferentemente, vou falar sobre as minhas seis preferidas do ponto de vista técnico. Mas é bom dizer que as outras 94 também são muito legais. Tem até umas ideias malucas, como a dobrável T&C Pocket Bici (1963), que de tão complicada é descrita no livro como uma “escultura em honra à entropia”. Mas vamos às bicicletas:

Cinelli Laser (1985). Essa bicicleta marcou uma nova era, onde a aerodinâmica passou a ser uma preocupação central. Todos os detalhes eram pensados, como tubos sem luvas, componentes escondidos do vento e junções lixadas à mão. O quadro ainda era de aço, o que hoje é considerado fora de moda. Para mim, do ponto de vista estético, esses tubos finos são insuperáveis. Se bem que posso estar sendo um pouco nostálgico, já que a minha Monark Super 10 era desse mesmo tom de azul.

One Off – Moulton Special (1991). Essa bicicleta é especial porque une a genialidade da Moulton com o amor pelo titânio da One Off. A Moulton foi uma das únicas grandes novidades do século XX. Uma bicicleta com rodas pequenas mas com comportamento de gente grande. O problema das rodas pequenas é que não passam bem pelos obstáculos. Por isso, Moulton teve que projetar uma suspensão para ela. Tudo bem, já que ele tinha sido o projetista dos automóveis Mini nos anos 50, que usavam suspensão de elastômero. As Moulton competiam quase de igual para igual com bicicletas convencionais, mas nunca pegaram de verdade. Hoje em dia, no entanto, com a moda das bicicletas dobráveis, quase toda a tecnologia destas é influenciada pelas Moulton dos anos 60.

Pacific Cycle iF Mode (2009). Em geral eu acho as bicicletas dobráveis muito feias quando estão fechadas. Essa iF Mode é diferente, pois suas duas rodas ficam completamente alinhadas. Ela também tem outros aspectos interessantes, como o garfo de braço único e rodas de 26 polegadas. Um detalhe importante no desenvolvimento dessa bicicleta é que no início ela foi lançada com transmissão por eixo. Mas não deu certo, obrigando a trocarem por uma corrente totalmente encapsulada. No final a bicicleta continuou bonita mas mais eficiente. Um ótimo exemplo de um projeto em que o design e a performance têm a mesma importância.

Bianchi C-4 Project (1988). A bicicleta mais bonita do livro – claro que desde que as tradicionais de aço, como a Cinelli aí de cima, sejam consideradas hors concours. A Bianchi é a fábrica de bicicleta há mais tempo na ativa – foi fundada em 1885. Essa bicicleta mostrada aqui une toda a tradição da Bianchi com as inovações da C-4, uma fábrica que foi fundada quase 100 anos depois. A C-4 foi a responsável pelo quadro de fibra de carbono com tecnologia NJC (No Joint Construction), que estava à frente do seu tempo. A descrição que o livro dá para essa bicicleta é: “quando o futuro ainda era jovem”. Linda.

Breezer Beamer (1992). Essa Beamer pode até ser vista como mais uma ideia maluca feita só para ganhar concursos de design . Mas a verdade é que a suspensão, conhecida como Softride, foi um sucesso. A Beamer foi a primeira bicicleta com suspensão completa a vencer o campeonato mundial de downhill, em 1992. Segundo o livro, ela ainda é fabricada hoje em dia. Está na minha lista para quando ganhar na loteria. Ainda mais que tem quadro de aço.

Lotus Sport 110 (1994). A última bicicleta deste meu texto é a Lotus. Como eu já falei um monte de vezes aqui no blog, a UCI não permite muitas ideias novas nas bicicletas de competição. Mas, por alguma razão, no início dos anos 90 as restrições diminuíram por um pequeno período de tempo, o que permitiu ao grande projetista Mike Burrows e aos técnicos da Lotus aproveitarem ao máximo. Eles partiram de um monocoque de carbono que Burrows havia construído no passado e fizeram uma bicicleta revolucionária. Ela logo fez história, com uma medalha de ouro nos jogos olímpicos de 92 e o recorde mundial dos 5000m. Havia também uma versão de rua, mais barata, que custava apenas o preço de um carro.

Voltando agora à disciplina de Estudos da Bicicleta, para entrar no clima, deixa eu comentar um vídeo que mostra o projeto e a construção de uma bicicleta. Tudo bem que eles devem ter gasto mais com o filme do que com magrela, mas é muito inspirador, além de promover o uso da barba entre os projetistas e construtores de bicicleta. Acho que faz parte da campanha: faça amor, não faça a barba. Agora, apesar de terem dado uma força para essa minoria discriminada dos barbudos, o vídeo peca muito em não retratar que mulheres, negros, asiáticos e pessoas de meia-idade também projetam e fabricam bicicletas. Ainda bem que, sem querer tirar a liberdade de expressão de ninguém, esse tipo de vídeo que não representa a realidade vai se tornar totalmente irrelevante com a enxurrada da nova produção cultural bicicletística que vem por aí!

Pior do que isso são as empresas de petróleo que fazem propaganda com mulheres, negros, asiáticos e pessoas de meia-idade, mas só mostram o mar limpinho e pesquisas secundárias com energia eólica, sem nenhuma menção aos efeitos nefastos que o petróleo traz para o meio ambiente, para o trânsito, para os trabalhadores, para a economia, para as comunidades, para a política e para a pesquisa científica do país. Parece aquelas propagandas toscas da época do milagre econômico: Brasil, ame-o ou deixe-o. Têm também aquelas fábricas de carro que fazem propaganda para se passarem por amiguinhas das bicicletas. Ou ainda institutos de desenvolvimento tecnológico que promovem o empréstimo de bicicletas para desviar a atenção da construção de mais estacionamentos para os carros. Isso é greenwashing. Estamos observando!

Quem tiver mais interesse por bicicletas de vanguarda, um bom lugar para procurar são as competições internacionais de design. Há várias delas que vêm sendo organizadas pelo International Forum Design. Algumas são para estudantes, outras para fabricantes já consolidadas. Como exemplos: IBDC, EUROBIKE e TAIPEI CYCLE.

Para terminar, quero enfatizar mais uma vez que, embora uma parte do curso seja sobre tecnologia de vanguarda, vamos conversar muito sobre mercado, produção de bicicletas comuns, infraestrutura das vias e cultura urbana. A parte de projeto de vanguarda é importante, sem dúvida, mas também é importante conhecer as restrições econômicas, sociais, políticas, culturais e mercadológicas que não permitem o pleno desenvolvimento das bicicletas.

Quem sabe um dia não serão oferecidas várias disciplinas, cada uma com um diferente aspecto do bicicletismo? Por enquanto temos que ver tudo ao mesmo tempo. Se bem que, pensando bem, mesmo que existam disciplinas específicas (e.g. Projeto de Quadros, Suspensão de Bicicletas, Urbanismo Voltado para o Ciclismo, Sociologia da Mobilidade, Fisiologia do Ciclista, Projeto de Bicicletas Elétricas, etc.), sempre haverá espaço para uma disciplina geral que integre todo o conhecimento.

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