A Arte do Bicicletismo Urbano


© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: Bicicletas em Equilíbrio

A ARTE DO BICICLETISMO URBANO
Fábio Magnani
[publicado originalmente em outubro de 2012]

Há vários assuntos bem polêmicos sobre o bicicletismo urbano. Capacetes funcionam? Ciclovias protegem? Qual é a bicicleta ideal? Será que o cidadão comum andaria de bicicleta se houvesse boas condições nas cidades? Qual seria o impacto na economia e na política do país se diminuíssemos a produção de petróleo e a fabricação de carros? Qual é quantia gasta nos subsídios para o uso de combustíveis fósseis? A poluição ataca mais o bicicleteiro do que o carangueiro? Andar de bicicleta é assim tão barato como propagandeiam os seus defensores? A bicicleta é um bom veículo para o nosso clima quente e úmido? As bicicletas que temos hoje no mercado são bem projetadas, seguras e têm preço justo? O Brasil poderia aprender com a China na produção e no uso das bicicletas? As bicicletas elétricas e os componentes eletrônicos são boas opções? Pedalar emagrece ou você acaba comendo mais ainda? Que condições devem existir para tornar segura a ida das crianças para a escola? Alguém se importa de verdade com os trabalhadores que andam de bicicleta para ir e voltar do trabalho? Quem realmente defende o uso das bicicletas e quem está no ativismo só para fazer política? Por que a maior parte do fomento para pesquisa e ensino vai para a área de petróleo & carros? Como aumentar o respeito que os motoristas têm pela vida dos motoqueiros, bicicleteiros e pedestres? Por que as bicicletas infantis são tão ineficientes e mal projetadas? É seguro andar de bicicleta nas nossas cidades? Ufa!

O legal é que algumas pessoas, ao invés de se preocuparem apenas em vencer uma discussão ou só em tirar proveito, usam o seu tempo para pensar de forma ampla, independente, útil e corajosa sobre esses assuntos. Robert Hurst é uma dessas pessoas.

Faltando um mês para o início das aulas de Estudos da Bicicleta, e bem no meio dos últimos preparativos, não tenho muitos outros assuntos para escrever aqui no blog a não ser o que venho estudando. Já falei bastante sobre tecnologia, história, manutenção, projeto, ciência do ciclismo, política, design e cultura. Falta pouca coisa… mas sempre falta.

Um tema importante é a bicicleta no trânsito, que vai ser discutido na décima primeira aula do curso – no total serão 15 aulas. Esse assunto pode ser dividido em três aspectos principais. O primeiro é a legislação, que no nosso caso está no Código de Trânsito Brasileiro, que eu acho que deveria se chamar Código Brasileiro de Trânsito, mas tudo bem. O segundo aspecto é a infraestrutura, para o qual vou usar o livro City Cycling. Como ele foi lançado há apenas alguns dias, acabou de chegar em minhas mãos, mas vai dar tempo de usá-lo na disciplina. O terceiro aspecto é o comportamento do bicicleteiro no trânsito: a pilotagem urbana.

Dos livros sobre pilotagem urbana de bicicletas, dois se destacam pela coragem. O primeiro é Effective Cycling, um livro de 800 páginas que já está na sétima edição (1ed:1976, 7ed:2012). O seu autor, John Forester, é um dos principais defensores do ciclismo nos Estados Unidos. Se bem que “principal” deve ser tomado com cuidado, pois aqui esse termo não está sendo usado no sentido de “mais amado” ou “mais seguido”. Não. John Forester não está neste mundo para fazer amigos ciclistas, para bajular o governo ou ainda para agradar as fábricas. Ele se baseia em estudos científicos para criticar tudo o que vem sendo feito de errado pelos cicloativistas e pelo governo. A sua principal bandeira é o “ciclismo veicular”, no qual as bicicletas devem ter exatamente os mesmos direitos e os mesmos deveres que os carros. Nada de ciclovias separadas. Para Forester, ciclovias aumentam os acidentes. Mas há críticos. Segundo eles, o “ciclismo veicular” só serve para adultos saudáveis que têm condições físicas de rodar no meio dos carros. Idosos, crianças e pessoas com dificuldade de locomoção ficariam de fora do bicicletismo urbano. Não posso negar que não seja uma posição polêmica.

A minha opinião é que deve haver a combinação de 1) uma forte legislação para proteger quem quer andar mais rápido no meio dos carros e 2) uma estrutura de ciclovias e ciclofaixas para quem quiser andar mais devagar. Aliás, o Forester não é tão radical quanto dizem por aí. Deve-se tomar cuidado com o que se lê, porque alguns críticos são falaciosos ao atacarem o Forester, já que ele mesmo defende uma solução intermediária, que são pistas mais largas ao lado das calçadas. Essas pistas permitem o compartilhamento de carros e bicicletas com uma distância segura de 1,5m entre os dois veículos.

Mas outro dia falo do John Forester com mais calma, pois há coisas mais importantes em jogo. Mesmo que ele seja um pouco exagerado, o que eu não acho, a sua postura política é um grande exemplo. Não é qualquer um que tem a coragem de ser simultaneamente contra a parte sem cérebro dos cicloativistas e contra a parte eleitoreira do governo. Ainda bem que há gente assim, que nada contra a maré quando a maré está errada.

O outro livro importante sobre a pilotagem urbana de bicicletas é The Art of Cycling (2004), de Robert Hurst. Se alguém comparar o Hurst com o Forester, pensará que ele é passivo como uma ovelhinha. Agora, se ele for comparado com a manada de cicloativistas de pensamento único, Hurst tem posições fortes, bem embasadas e muito corajosas.

O primeiro ponto que ele ganhou comigo foi ao insinuar que a bicicleta perfeita para o trânsito urbano é a ciclocross. Esse é um tipo de bicicleta que está no mercado das competições há bastante tempo, misturando a geometria de uma bicicleta de corrida, pneus mais largos e um quadro que resiste a todas as estações. Se bem que eu estou forçando a barra aqui, pois na verdade o Hurst se limita a dizer “alguns bicicleteiros diriam que…”. Mas dos outros tipos de bicicleta ele não fala nem isso, então está valendo.

O livro é dividido em 106 pequenos artigos, agrupados em sete grandes partes. A primeira parte, O Monstro Frankenstein, dá uma boa visão do papel da bicicleta nos últimos 150 anos. Começa com o século XIX, quando a bicicleta era o que havia de mais moderno, chic e importante no mundo da mobilidade. Depois faz uma boa crônica do século XX, explicando como os carros tomaram o poder. Principalmente, Hurst faz uma bela análise das consequências do uso exagerado dos carros, como poluição, bairros isolados fora da cidade, comprometimento de boa parte da renda familiar com os automóveis e congestionamentos. Esses problemas, que apareceram nos EUA a partir dos anos 60, estão sendo recriados aqui em Recife nos dias de hoje. Vendem pelo nome de progresso.

A segunda parte do livro, A Superfície da Cidade, discute os vários tipos de terreno que o bicicleteiro precisa enfrentar: crateras, rachaduras, ondulações, tinta escorregadia, areia, óleo, poças d’água, sarjetas, bueiros, bocas de lobo e canaletas. É muito importante conhecer esses obstáculos, pois são grandes causadores de acidentes. Principalmente porque as autoridades, que não andam de bicicleta ou de moto, não se importam com obstáculos que não atingem os carros.

Depois vem a parte No Tráfego. Os primeiros artigos são usados para comentar o “ciclismo veicular” do John Forester. Hurst defende um meio termo entre os dois extremos. Para ele, o bicicleteiro precisa saber quando se portar como um carro e quando se aproveitar da “invisibilidade” da bicicleta. Logo depois ele escreve uma porção de artigos comentando ações específicas: curvas à direita, curvas à esquerda, cruzamento de sinal vermelho, como olhar para trás, sinais de mão, portas de carro que se abrem, pilotagem em ciclovias, pilotagem nos bairros residenciais, ciclismo noturno, ciclismo grupal e muito muito mais.

Na parte Acidentes de Bicicleta e Seus Ferimentos, Hurst fala sobre os vários tipos de machucados, desde os mais simples até a morte. Ele discute várias estatísticas, que desmentem um pouco a visão que as pessoas têm de que o ciclismo seja tão perigoso assim. Mas o mais legal é que ele analisa a falta de estudos mais sérios, e também como os resultados podem ser manipulados para essa ou aquela conclusão. E ele não foge das polêmicas, como no caso dos capacetes. Será que o capacete realmente ajuda alguma coisa? Difícil chegar a uma conclusão definitiva. Mas duas coisas parecem certas: quase todo mundo acha que deve usar capacete e quase todos os estudos científicos dizem que não faz diferença alguma. A não ser que alguém use um capacete de moto, que é bem mais seguro do que os capacetes de bicicleta. Bem… eu já escrevi várias vezes sobre isso. Minha opinião é que “equipamentos de segurança” podem causar mais acidentes, porque provocam cansaço e diminuem a mobilidade. Principalmente em lugares quentes como o Recife. Por isso é importante analisar caso a caso, para ver se vale a pena ou não usar o “equipamento de segurança”. Eu, como tenho costume de me basear em estudos científicos, em geral não uso capacete na bicicleta e sempre uso capacete na moto. Se bem que estou mudando de ideia, já que o meu boné esquenta muito e está dificultando a dissipação do calor quando pedalo. Estou pensando seriamente em usar capacete – não pela segurança, mas sim como um boné arejado.

A quinta parte do livro, Poluição do Ar e o Ciclista, trata de outro assunto polêmico que muitos ciclistas preferem esconder debaixo do tapete. A questão é que o ciclista tem uma respiração mais intensa do que um motorista de carro. Logo, dependendo da situação, o bicicleteiro pode respirar mais poluentes do que um motorista. Por isso, há casos em que andar de bicicleta é menos saudável do que andar de carro. Cada caso é um caso, certamente. Mas para os ciclistas de pensamento único as bicicletas sempre são melhores – por definição.

Um dos problemas mais comuns do bicicletismo são os pneus furados. Em Objetos Pontiagudos e Pneus Furados, Hurst fala sobre a inevitabilidade de certas coisas da vida, explica os cuidados com alguns tipos de terreno e dá umas dicas práticas. Essa parte é bem humorada, e de certa forma bem filosófica, pois ensina que a pessoa precisa aceitar a vida como ela é. Legal.

A última parte é sobre Equipamentos. Começa falando sobre o culto ao equipamento, esse fenômeno ridículo que faz uma pessoa brigar com a outra por causa de um objeto. As fabricantes adoram essas brigas, pois conseguem vender bicicletas mais caras para os seus seguidores. Depois vem alguns artigos bem práticos, como urbanização das bicicletas (que é trocar alguns componentes das bicicletas que vendem por aí para que sejam úteis no mundo real), ajuste geométrico, escolha de ferramentas, vantagens e desvantagens das roupas, e transporte de bagagem. É nessa parte que ele fala sobre a escolha do tipo ideal de bicicleta para cada pessoa e cada tipo de uso.

É isso. The Art of Cycling é um livro bem técnico sobre pilotagem urbana. Não fala muito sobre utopias, de como os carros deveriam se comportar ou como as cidades deveriam ser projetadas. Não. O livro é bem prático: os motoristas são assim, as cidades são assim e as bicicletas são assim. Então, para um ciclista ser feliz e saudável neste mundo real, deve se portar assim. Tranquilo assim.

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