A Vida Secreta dos Professores Universitários


© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: Motocicletas de Mármore

A VIDA SECRETA DOS PROFESSORES UNIVERSITÁRIOS:
REPRESENTAÇÃO ARTÍSTICA E CULTURAL

Fábio S. Magnani
Professor Titular, Doutor em Engenharia Mecânica, UFPE
[publicado em outubro de 2021]

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Resumo. Existe uma forte tradição anglo-americana de livros e filmes que em conjunto representam artisticamente a diversidade das individualidades dos professores universitários. No Brasil não há essa tradição artística. No entanto, com a explosão de novas tecnologias da informação nos últimos 25 anos, como as livrarias online e os serviços de streaming de filmes, houve um grande aumento no acesso a essas representações estrangeiras. No que diz respeito à nossa própria representação cultural, recentemente, os memoriais autobiográficos (escritos visando a promoção a Professor Titular) tornaram-se acessíveis nos sistemas computacionais das várias universidades, com as suas defesas sendo disponibilizadas em vídeo no YouTube. Além dos memoriais, um outro meio usado pelos professores para expressar suas individualidades tem sido suas redes sociais e websites pessoais, pelos quais publicam atividades artísticas, opiniões políticas e reflexões acadêmicas. O presente artigo é dedicado à celebração das individualidades dos professores. Começamos discutindo as especificidades da carreira dos professores universitários, continuamos com a apresentação de vários livros e filmes anglo-americanos, e, em seguida, analisamos algumas limitações dessas representações, obstáculos esses que precisam ser superados caso queiramos uma representação mais legítima. Discorremos então sobre os meios que vêm sendo usados pelos professores brasileiros na sua autorrepresentação cultural. Por fim, propomos algumas ações para combinar essas várias representações artísticas e culturais visando ampliá-las em número, forma e diversidade.
Palavras-chave: professores universitários; literatura; cinema; redes sociais



1. A Vida Não Cabe nem no Lattes nem nos Diários da Revolução

Elaine Showalter, professora, teórica da literatura e feminista, escreveu o livro Faculty Towers (SHOWALTER, 2005) para analisar e celebrar os campus novels (ou academic novels), que são livros de ficção sobre professores universitários. Logo na introdução do seu livro, publicado quando já tinha 64 anos de idade, ela nos conta como essas histórias foram importantes no começo de sua carreira acadêmica, mostrando-lhe como um professor deveria falar, se comportar, se vestir, pensar, escrever, amar e (mais do que ocasionalmente) resolver mistérios. Por um lado ela estava brincando, já que os campus novels não são muito mais do que farsas quase burlescas. Por outro lado, quando vistos coletivamente como um subgênero literário, eles têm bastante importância cultural, já que enfatizam a individualidade e a especificidade dos professores, e, também, a diversidade e a complexidade das várias universidades.

No Brasil, ao contrário dos EUA1 de Elaine Showalter, não há uma tradição forte de representação artística2 dos professores universitários como indivíduos únicos. Mesmo as traduções são raras, excetuando-se algumas biografias de professores que são mais famosos por serem cientistas do que por serem professores. Por aqui, os professores conhecem a vida dos outros professores a partir de seus contatos pessoais, através dos curricula vitae, principalmente o Lattes, ou, então, lendo as grandes narrativas heroicas sobre as lutas universitárias a favor da democracia do país ou contra a dilapidação da academia.

É certo que representar a produção acadêmica e as lutas políticas dos professores é necessário para conhecer e preservar a Universidade. Necessário sim, mas não suficiente. Isso porque olhar um professor apenas pelo seu curriculum acadêmico é olhar para apenas uma pequena teia de vitórias da sua vida. Há vários outros eventos específicos na vida dos professores universitários que também clamam para serem contados em detalhes se quisermos compreender profundamente a Universidade: a formação escolar, a entrada na Universidade como estudante, a construção da tese de doutorado, a espera pela aprovação em concurso, o processo de escrita de artigos, as tratativas visando o financiamento de projetos, as epifanias criativas, as mudanças de áreas de pesquisa, as dificuldades familiares devido às viagens e às incertezas profissionais, a política universitária, a socialização interdepartamental, as promoções internas, as avaliações externas, a excitação durante os embates dialéticos nas aulas, bancas e congressos, o orgulho pelo crescimento dos alunos e o reconhecimento pelos pares. Cada um desses processos, tanto nos raros sucessos quanto nos abundantes fracassos, é único e marcante na vida de cada professor.

Continuando com a questão da representação dos professores, o trabalho acadêmico tem algumas características (características essas universais e atemporais) que são muito específicas: liberdade de expressão e de cátedra, flexibilidade de horários, combinação de baixo salário com alto prestígio social, ciclos anuais de renovação, emprego com estabilidade, elevada intensidade intelectual, contribuição reconhecida somente depois de décadas, tempo disponível para reflexão e autonomia nas atividades. Por essas especificidades, várias características da vida profissional do professor não são contempladas nas histórias que envolvem profissionais de outras profissões, que por sua vez têm suas outras características próprias. Logo, é possível reconhecer a necessidade de representações específicas dos professores.

Adicionalmente, olhar os professores apenas como uma massa sociopolítica homogênea, por exemplo como trabalhadores sindicalizados em luta pela carreira acadêmica, é não compreender que a grandeza da Universidade está também (principalmente!) nas diferenças, não apenas nas igualdades. Por exemplo, entre os professores existem muitas danças intertribais nascidas das diferenças: danças entre as várias áreas acadêmicas, entre as várias escolas dentro de uma mesma disciplina, entre ensino e pesquisa, entre professores locais e cosmopolitas, entre graduação e pós-graduação, entre puras e aplicadas, entre elitistas e populares, entre liberais e socialistas, entre conservadores e revolucionários, entre professores e pós-graduandos (que são professores em treinamento), entre o corpo docente e a administração da Universidade (que é formada por professores), entre introspectivos e espetaculares, entre reflexivos e transformadores, entre independentes e interconectados, entre clássicos e (pós-) modernos, entre novos e experientes, entre intuitivos e formais, entre litúrgicos e iconoclastas. Todas essas correntes diferentes, desde que ocorram em uma Universidade psíquica e politicamente saudável, retroalimentam-se entre si e constroem uma Universidade verdadeiramente grande. Afinal, a essência da Universidade não está predominantemente nos grandes movimentos coletivos, mas sim na miríade de distintas atividades acadêmicas únicas que ocorrem diariamente nas salas de aula, nos laboratórios, nas salas de reuniões, nas cantinas, nos gabinetes, nas calçadas do campus, nas palestras, nas entrevistas e em todas as ações individuais de cada professor.

Felizmente, com o fortalecimento nos últimos 25 anos das tecnologias de informação em geral e das redes sociais em particular, nós os professores brasileiros estamos tendo cada vez mais acesso a representações artísticas e culturais da nossa própria diversidade. Hoje em dia é relativamente fácil ter acesso a livros de popularização da história e romances fictícios sobre professores (e.g., Amazon), a filmes sobre a vida acadêmica (e.g., Netflix), a memoriais (e.g., sistemas computacionais das várias universidades) e vídeos (e.g., YouTube) autobiográficos, a notícias sobre as atividades de cidadania que os professores realizam em suas vidas fora do campus (e.g., Facebook, Instagram e Linkedin) e a textos independentes de opinião publicados na internet (i.e., websites pessoais).

Obviamente, a Universidade não é feita somente por professores estudando em seus gabinetes ou ministrando aulas. Na verdade, podemos pensar na confluência de quatro grandes fluxos que conduzem todas as atividades universitárias: Studium (i.e., estudo: criação, reflexão, contemplação, preservação e divulgação), Imperium (i.e., controle interno: administração interna universitária; e controle externo: normas, pressões, demandas e recursos externos vindos do Estado, empresas, conselhos profissionais, organizações políticas e sociais, imprensa e sociedade em geral), Traditum (i.e., tradição: cultura acadêmica, porque “as coisas sempre foram feitas assim” e “são feitas assim em todos os lugares”) e Populi (i.e., pessoas: pessoas com desejos, fraquezas, sonhos, valores, medos, habilidades e crenças). Desse ponto de vista, este artigo é voltado para a representação artística e cultural dos professores enquanto pessoas (Populi), devotadas ao conhecimento (Studium), inseridos em uma instituição tradicional (Traditum), e quase sempre reagindo ao controle (Imperium) interno e externo.

O presente trabalho pode ser dividido em quatro partes. Na primeira (Seções 1-2), comentamos as especificidades da carreira do professor. Na segunda, e maior, parte, há as representações artísticas anglo-americanas (Seções 3-7), na qual tratamos de vários livros e filmes que falam da vida dos professores. Depois, na terceira parte (Seções 8-11), discutimos as várias limitações dessas representações estrangeiras, apresentamos alguns trabalhos teóricos que as analisam de forma mais crítica e, então, discorremos sobre dois meios bastante atuais com que os professores brasileiros têm autorrepresentado sua cultura: escrita de memoriais autobiográficos para a promoção a Professor Titular e publicação de suas ações de cidadania nas redes sociais. Na quarta parte (Seção 12), finalmente, fazemos algumas propostas para combinar essas várias representações artísticas e culturais visando ampliá-las em número, forma e diversidade.


2. Os Professores na Quinta Dimensão

Na Universidade brasileira existe o costume de se caracterizar o professor por suas atividades de ensino, pesquisa e extensão. Há duas limitações nessa categorização tripartite. Primeiro, as atividades de gestão são deixadas de lado, muito embora sejam muito importantes para os caminhos acadêmicos, já que aqui se insere toda a política universitária e compreendam todo o trabalho burocrático do professor3. A segunda limitação, mais relevante no contexto deste artigo, é que são destacadas apenas as atividades do professor enquanto resultados formais e impessoais, como se qualquer professor pudesse realizá-las da mesma maneira, como se não houvesse um ser humano, político e criativo, com saberes e estilo únicos, por trás e à frente daquelas atividades. A verdade é que o professor não é um arquétipo substituível – ele é um cidadão.

Jeffrey L. Buller, em The Essencial College Professor (BULLER, 2009), enfatiza um conceito que chamaremos aqui de cidadão-professor. Isto é, toda vez que um professor fala em sala de aula, em uma reunião, em uma palestra, em uma entrevista, quando escreve um livro, orienta um aluno, mentora um colega, participa de uma ONG, publica nas redes sociais ou discute os caminhos universitários, ele nunca é apenas um “professor” e também nunca deixa de ser um “cidadão”. Ele é os dois, um cidadão com o timbre de professor e um professor com o lastro de cidadão, de forma indissociável, por bem ou por mal. Quando um cidadão-professor fala dentro da Universidade, ele traz junto toda a sua história pessoal, e quando fala fora da Universidade, ele leva junto todo o peso da Universidade.

Vemos então que para representar apropriadamente os professores são necessárias não apenas três dimensões, mas sim cinco: ensino, pesquisa, extensão, gestão e cidadania. Neste artigo, damos enfoque principalmente à representação da individualidade dos professores, o que está essencialmente inserido nessa quinta dimensão, o cidadão- professor.


3. Fábulas Acadêmicas

Existem vários livros que falam da vida universitária usando a sátira para emular estudos sérios. Como todo humor, exageram nos personagens e nas situações. Esses exageros humorísticos às vezes são temidos e criticados porque poderiam ser usados pelos “inimigos da Universidade”. Internamente, ao menos, servem para que os professores tomem consciência de alguns mecanismos coletivos que operam na Universidade e também de algumas neuroses individuais que nós poderíamos (tentar) eliminar em nossos próprios comportamentos pessoais.

O primeiro livro desse tipo é Microcosmographia Academica (CORNFORD, 1908), um panfleto bastante mordaz sobre a política interna da Universidade. Com anedotas fanfarronas, explica, por exemplo, como a razão nunca é usada nas reuniões acadêmicas. Ao final, depois de detratar todos os comportamentos políticos como mesquinhos, o autor sugere que os professores larguem o caminho da política acadêmica e purifiquem-se em seus gabinetes ao dedicarem-se apenas ao estudo. Para o autor, existe um pequeno mundo dentro do outro pequeno mundo, e é ali que o jovem professor deve viver. Claro que é completamente ingênuo defender o fim da política, mas não custa alertar para algumas técnicas políticas deletérias dentro da Universidade. Vamos rir de nós mesmos, corrigir o que deve ser corrigido, sem perder tempo criticando os exageros com fins literários.

Em The Academic Tribes (ADAMS, 1987) o enfoque é quase o oposto, tentando mostrar a importância (absoluta) da política universitária e (relativa) da administração. O autor simula um estudo antropológico no qual teria extraído seis princípios: 1- o poder na Universidade é difuso, 2- o poder acadêmico de qualquer cargo vai diminuindo com o tempo, 3- a principal lealdade do professor é com a sua disciplina e seu grupo de pesquisa, 4- toda ação administrativa tem uma reação docente, 5 – toda excentricidade é recompensada, 6- o simbolismo é fundamental. Por meio dessa brincadeira, o autor no fundo defende que os professores entendam as imensas limitações políticas da administração e, portanto, passem a reclamar menos da administração e a colaborar mais nessa dança política.

O livro How Colleges Work (BIRNBAUM, 1991) cria quatro universidades fictícias para explicar como a Universidade funciona: a universidade colegiada (pequena, todos os professores participam de todas as discussões), a universidade burocrática (organizada, mas extremamente limitada), a universidade política (há forte competição por recursos e poder) e a universidade anárquica (na qual há certa dificuldade de encontrar um significado entre tantos atores anônimos). Uma vez que a Universidade real tem todos esses mecanismos simultâneos (i.e., as reuniões colegiadas, a burocracia, a política e a anarquia), essas quatro universidades satíricas revelam-se muito interessantes como ferramentas para compreendermos os passos na necessária dança social e política da Universidade real. Um outro ponto importante desse livro, logo no seu início, é a explicação do porquê a Universidade não pode ser comparada com empresas. Primeiro, porque as empresas têm um objetivo único (i.e., lucro financeiro), enquanto a Universidade tem muitos (e.g., preservar o conhecimento clássico, compreender a natureza e a sociedade, organizar o conhecimento popular, irradiar todos esses conhecimentos, formar intelectuais, treinar profissionais, prestar ajuda à sociedade, criticar políticas inábeis ou perversas, propor políticas progressistas – tudo isso multiplicado pelo número de disciplinas com visões distintas sobre o mundo). Segundo, a Universidade é diferente das empresas porque a estrutura hierárquica da Universidade não é relacionada com o conhecimento e a capacidade (e.g., o reitor não sabe mais do que um professor comum que é especialista em um determinado assunto). Terceiro, porque, enquanto em uma empresa o contato com o mundo é feito por uma direção central, na Universidade a comunicação é totalmente difusa (e.g., um professor pode obter financiamento para pesquisa independentemente das prioridades estratégicas da gestão central, ou, ainda, pode dar uma entrevista a um jornal criticando a administração). Quarto, a administração de uma Universidade saudável é incapaz – pela própria definição de Universidade saudável -, de saber todas as atitividades sendo realizadas pelos professores. Quinto, há no mínimo duas hierarquias de poder na Universidade, a burocrática e a pedagógica, Imperium e Studium, uma centrada na reitoria/conselhos e outra centrada na sala de aula. Em outras palavras, a Universidade é muito mais complexa que uma empresa, e, portanto, os métodos empresariais simples não podem ser aplicados com sucesso.

Há livros que são mais pensados na diversão do que na explicação da Universidade. The Laurie Taylor Guide to Higher Education (TAYLOR, 1994) é um conjunto de colunas satíricas sobre a Universidade. Por exemplo, em um artigo, explica as infindáveis discussões sobre a mudança de períodos trimestrais para semestrais (ou o inverso, tanto faz, já que é uma discussão pendular). Dear Comitte Members (SCHUMACHER, 2015) poderia estar na próxima seção, mas, por ser uma sátira epistolar em memorandos, e-mails e cartas de recomendação acadêmicas, merece estar aqui. Finalmente, Doodling for Academics (SCHUMACHER; NASSEF, 2017) é um livro de atividades infantis (e.g., ligar os pontos, colorir) para professores matarem o tempo durante as reuniões.


4. Romance no Campus

Voltemos agora ao livro da Elaine Showalter citado no início do artigo, Faculty Towers (SHOWALTER, 2005), que é dedicado a estudar os campus novels4. Grosso modo, esses livros de ficção seguem uma mesma fórmula: um professor comum tem que navegar por uma série de problemas superficialmente irrelevantes em um ambiente universitário caótico. Em geral são farsas, com personagens caricaturados e situações exageradas. Quase sempre são escritos por professores de literatura (literatura enquanto criação artística, não como crítica literária), e, por essa razão, o protagonista quase sempre é um professor/escritor do departamento de literatura, quando é do bem, ou do departamento de sociologia (ou crítica literária, ou destruição artística), quando é do mal.

Como Elaine Showalter nos contou em seu livro, por baixo desse assunto comum, i.e., a vida universitária, os temas desses livros foram mudando ao longo dos anos. Em resumo, nos campus novels dos anos 50 a Universidade era retratada como uma comunidade murada, com suas próprias regras e tradições. Nos anos 60, os livros falavam mais das pequenas disputas e relações de poder dentro dos departamentos. Nos anos 70, os livros erguiam-se sobre os excessos que haviam ocorrido na década de 60. Os anos 80 viram a crítica literária e o feminismo entrando no campus novel. Os anos 90 foram mais dedicados ao politicamente correto e às guerras culturais, e, do ponto de vista do professor, às ansiedades sobre a manutenção no emprego. Na virada do século, os professores passaram a ocupar as páginas de livros mais sérios de literatura, e também ocorreu uma transição do campus novel para o cinema.

Existem centenas de campus novels e um grande número de artigos e teses sobre eles, então vamos citar apenas alguns mais conhecidos. O primeiro campus novel é The Groves of Academe (MCCARTHY, 1952), no qual um professor que está sendo demitido por incompetência espalha que está sendo perseguido por ser comunista (ele não é!), se utilizando de várias sensibilidades acadêmicas para fugir do terrível destino. O mais famoso de todos os campus novels provavelmente é Lucky Jim (AMIS, 1954), que narra as aventuras de um professor novato enquanto navega pela Universidade. Eating People is Wrong (BRADBURY, 1959) volta a tratar do receio dos acadêmicos de parecerem elitistas ao condenarem certas práticas populares, como, por exemplo, os avanços de um estudante africano sobre uma professora, apesar dele oferecer quantos bodes ela quiser. Outro livro bastante famoso é The History Man (BRADBURY, 1975), no qual o protagonista é um sociólogo que usa todas as teorias modernas para diminuir os outros professores e a sociedade burguesa em geral, mantendo-se assim como uma celebridade televisa e queridinho dos estudantes. Na verdade ele é apenas mais um radical poser, i.e., mais um explorador. Uma curiosidade desse livro é a tradução de seu título aqui no Brasil, ‘As Liberdades Amorosas de um Casal’ (1980), que faz mais referência às liberdades sexuais da época do que à crítica ao moralismo e à agressividade travestidos de modernidade teórica. A trilogia Campus Trilogy de David Lodge é formada por Changing Places (LODGE, 1975), Small World (LODGE, 1984) e Nice Work (LODGE, 1988). O primeiro volume trata de dois professores que permutam de universidades nos anos 60 (mostrando as diferenças culturais entre a conservadora Inglaterra e a aberta Califórnia), o segundo segue um grupo de ilustres professores que rodam o mundo de congresso em congresso em uma espécie de turismo acadêmico e, no terceiro, há uma outra troca de lugares, mas agora entre uma professora e um diretor de fábrica.

White Noise (DELILLO, 1985) pode ser classificado tanto como um campus novel quanto como um importante livro pós-moderno. Um dos vários absurdos dessa história está no fato do protagonista ter ficado célebre por ter sido o pioneiro da área de Estudos de Hitler, criticando assim a busca excessiva de nichos acadêmicos originais. É um livro importante do ponto de vista da representação acadêmica porque tira o professor do campus e o mistura ao mundo da classe média (WILLIAMS, J. J., 2012).

Como dito anteriormente, nos anos 90 os campus novels deixaram de ser somente sátiras a vaidades professorais e a modismos teóricos, passando a retratar de forma mais profunda as ansiedades dos protagonistas (embora alguns ainda continuassem de humor). Entre eles estão Wonder Boys (CHABON, 1995), que conta a história de um professor/escritor com forte “bloqueio” criativo (na verdade ele não consegue é sintetizar as mais de 2.000 páginas que seu livro já tem) e Straight Man (RUSSO, 1998), que tem uma cena hilária em que, em um impulso ao ser entrevistado na TV, o professor ameaça (por ironia cênica apenas) matar um ganso por dia no laguinho enquanto a direção não entregar o orçamento do próximo ano garantindo o emprego dos professores. Isso causa a fúria da administração e dos protetores de animais, em apenas uma das várias confusões nas quais se mete. Throttling the Bard (BARRY, 2010) é mais engraçado e leve, uma mistura de Dom Quixote com Easy Rider, no qual um professor motoqueiro é processado por montar um esquema de ajuda para dançarinas de Las Vegas conseguirem financiamento estudantil, uma vez que os bancos as consideram um risco que não vale a pena. Enquanto viaja de moto pelos EUA, se envolvendo em um monte de desventuras quixotescas com seu fiel escudeiro (um orientando também motoqueiro), o professor aproveita para corrigir a gramática dos rabiscos nas portas dos banheiros públicos.


5. Literatura com ‘L’ Maiúsculo

Outros livros também tratam da vida de professores, mas não são considerados dentro do subgênero literário do campus novel e sim como obras literárias gerais (essa divisão é quase arbitrária, tendo mais a ver com o uso da sátira do que com a qualidade artística). Um dos primeiros que citamos é The Professor’s House (CATHER, 1925), importante para a nossa discussão porque o professor ainda era retratado como alguém erudito, imagem que foi se dissipando com o passar dos anos, com os professores cada vez mais sendo retratados como pessoas comuns da classe média consumista. The Masters (SNOW, 1951) descreve a política interna durante a eleição do novo professor dirigente da faculdade. Esse livro mostra uma instituição totalmente masculina e isolada do mundo externo, quase um monastério. A Single Man (ISHERWOOD, 1964) conta a história de um professor dos anos 60 que precisa lidar com a morte de seu companheiro. É um livro importante também por retratar a opressão social aos gays. Stoner (WILLIAMS, J., 1965) descreve a trajetória de um professor de quem já na introdução é dito que jamais passou de assistente, e que não foi muito lembrado por seus colegas e estudantes após sua morte, mas que mesmo assim levou uma vida única. Rookery Blues (HASSLER, 1995) é o mais lírico e pastoral de todos mostrados aqui, contando a vida de vários professores um pouco desiludidos e que encontram certo consolo montando uma banda de jazz para ensaiar no tempo livre. Finalmente, há os famosíssimos Disgrace (COETZEE, 1999), do vencedor do Premio Nobel de Literatura, e The Human Stain (ROTH, 2000), do vencedor do National Book Award e do Prêmio Pulitzer. Esses dois últimos livros vão além da academia, uma vez que seus autores usaram as tragédias (no sentido grego) vividas pelos professores como uma reflexão sobre a psíque da nação (TIERNEY, 2004).

6. Eu Venho de Longe

A Universidade é uma instituição essencialmente europeia. Por mais que desejemos marcá-la com nossa própria história local, socialmente referenciada e contemporânea, a verdade é que essa influência da Idade Média é muito presente (Traditum). Curioso como alguns elementos sempre existiram, desde o início: liberdade de cátedra, liberdade de expressão, autonomia para os próprios professores da Universidade contratarem novos professores, carga de oito horas de aula por semana, tempo disponível para preparar o material das aulas, participação em bancas e em conselhos, bolsas para estudantes pobres e livros que não pagavam impostos. Por isso, e muito mais, é interessante conhecer de onde viemos. Há vários livros sobre a história das várias universidades europeias. Serão comentados aqui apenas os que dão destaque ao professor, não aos regulamentos e aos prédios históricos. Afinal, prédios são apenas pobres substitutos da verdadeira grandeza intelectual, e regulamentos, como todos sabemos, dizem apenas como a Universidade deveria ser, não como ela realmente é (JANIN, 2009).

O livro clássico sobre a origem da Universidade foi escrito por Hastings Rashdall, The Universities of Europe in the Middle Ages (RASHDALL, 1895). Para ele, a Igreja, o Império e a Universidade eram os três poderes que se harmonizavam para manter a Cristandade. Por isso, assim como seus dois companheiros, a Universidade teria nascido para tornar realidade um ideal de vida. Porém, ao contrário das igrejas e dos impérios, que tiveram sua importância e forma completamente modificadas com o passar dos séculos, a Universidade mostrou-se muito mais forte que as catedrais e os palácios. Vista assim, como defensora de um ideal milenar (Traditum), percebemos porque é impossível comparar a Universidade com qualquer outra instituição moderna – por bem ou por mal.

Em 1923, Charles Homer Haskins ministrou três palestras bem animadas na Brown University, que depois foram publicadas no livro The Rise of Universities (HASKINS, 1923). Por ser mais baseado em episódios interessantes, constrói uma imagem muito colorida para o leitor de como era a vida da Universidade na Idade Média. A segunda palestra foi dedicada exclusivamente para a vida dos professores: O Professor Medieval. Em 1982, a Conferência de Reitores Europeus decidiu criar uma grande obra sobre as várias universidades europeias, unindo muitos especialistas. Os resultados foram publicados em 2.500 páginas ao longo de quatro volumes, entre 1992 e 2011, com o título global A History of the University in Europe, Vols I-IV (RÜEGG, 1992, 1996, 2004, 2011). Os volumes foram organizados externamente de forma cronológica (i.e., Idade Média, 1500-1800, 1800-1945 e 1945-atualidade) e internamente por temas. Por exemplo, todos os quintos capítulos falam especificamente sobre os professores5. Para sentir um pouco dos tempos passados, podemos citar a premiada trilogia fictícia Baroque Cycle (STEPHENSON, 2003), que mistura professores com nobres e piratas, ruas enlameadas e criminosas, paixão pela ciência, fanatismo religioso e política mortal. Com personagens reais e imaginados, a obra fictícia cria/recria todo o clima social dos séculos XVII e XVIII.

Resumindo muito brevemente todos esses livros, eles contam as várias transições pelas qual a Universidade passou nos últimos quase 1.000 anos6. O início da história é baseado fortemente em Bologna, Paris e Oxford, com o ensino do Trivium, Quadrivium, Teologia, Medicina e Direito. Essas cidades já eram importantes centros comerciais, e portanto atraíam professores e estudantes. No entanto, a Universidade não tinha prédios ainda, não havia nem ao menos uma instituição central – apenas professores particulares independentes. Com o passar do tempo, os estudantes criaram organizações para se protegerem dos abusos nos aluguéis e nos preços dos livros. Para isso criaram guildas de estudantes, que eram chamadas de universidades, como muitas guildas eram chamadas7. Essa “universidade de estudantes”, que tinha até reitor, passou a controlar (Imperium) a vida dos professores (Studium): preços, horários e qualidade. A Universidade, portanto, nasce dos estudantes clientes, não dos professores. Excluídos da direção das “universidades de estudantes”, os professores também formaram suas guildas ou “colleges”, para a qual certas qualificações (e.g., doutorado) eram necessárias para que os estudantes não participassem sem o consentimento do corpo docente. Nasce daí essa dança entre administração8 e docência, entre Imperium e Studium. No século XVI, o Estado passa a ter mais interesse na Universidade, usando-a para sua própria legitimação. Com isso, houve mais financiamento, mas também uma certa perda de autonomia, já que até ali a Igreja havia restringido a Universidade apenas em questões teológicas, dando liberdade completa em outras questões. A partir do século XVII, a ciência começa a ter muita força dentro da Universidade, lado a lado com as disciplinas humanísticas mais tradicionais. Depois da Revolução Francesa e de Napoleão, ocorre uma quase completa secularização da Universidade. No entanto, por ter sido parte da Igreja por tanto tempo, a independência intelectual da Universidade (Studium) em relação ao Governo/Estado/Mercado/Movimentos Sociais/Elite Cultural (Imperium) sempre continuou muito forte, sendo uma das pedras basilares da Universidade. No século XIX, em um movimento partido da Alemanha, a Universidade passa a fazer pesquisa de forma mais intensa. As duas grandes guerras mundiais fazem a Universidade crescer bastante em importância científica e tecnológica. Após o final das guerras, a Universidade expande o seu corpo docente e discente, mas parte da pesquisa é deslocada para os grandes laboratórios das empresas. A Universidade volta, então, a ter um papel mais de formação de recursos humanos (formação de intelectuais e de profissionais), de compreensão do mundo, e de avaliação e proposição isenta dos caminhos da sociedade.


7. Coisa de Cinema

Em meio às dezenas de filmes sobre professores, vamos nos ater apenas em exemplos mais próximos aos livros das seções anteriores. Aliás, alguns deles foram transformados em filmes, como Wonder Boys (HANSON, 2000), com Michael Douglas, Tobey Maguire e Robert Downey Jr.; The Human Stain (BENTON, 2003), com Anthony Hopkins e Nicole Kidman; e A Single Man (FORD, 2009) com Colin Firth e Julianne Moore. Esses filmes mantiveram a forma original, o primeiro sendo mais leve, os dois últimos mais dramáticos. Três outros filmes na linha dos campus novels (i.e., farsescos) não foram baseados diretamente em livros: A Serious Man (COEN, J.; COEN, E., 2009), dos Irmãos Coen; Irrational Man (ALLEN, 2015), com Joaquin Phoenix; e The Professor (ROBERTS, 2018), com Johnny Depp. Esses últimos são parecidos com os campus novels dos anos 90, retratando principalmente as ansiedades pessoais dos professores. Há ainda alguns professores que são heróis em filmes famosos de aventura. Não são nada realistas, mas talvez sirvam como influência para os jovens pensarem na carreira acadêmica. São eles o Dr. Henry Walton “Indiana” Jones Jr. (professor de arqueologia) e o Prof. Robert Langdon (professor de história da arte e simbologia).


8. Retratos Necessários

Toda a produção anglo-americana mostrada até aqui pode prontamente ser adaptada ao nosso caso, principalmente pelo uso do humor, tão ao gosto de nós brasileiros. Outro aspecto interessante é que esses livros e filmes têm uma construção mais literária e antropológica (diversidade humana) e menos sociológica (forças sociais coletivas), trazendo um bom contraponto (mais uma das danças acadêmicas) aos estudos acadêmicos sobre os professores. No entanto, essas obras têm algumas limitações sérias. Primeiro, como já comentado, boa parte é produzida por professores de literatura ou por escritores profissionais, o que de certa forma homogeniza a visão de mundo. Principalmente, vê-se uma apologia muito contundente à individualidade humanística e uma crítica excessiva à sociologia (como metadisciplina dominante) e aos estudos culturais (em geral pelo uso exagerado do politicamente correto). Em relação aos personagens retratados, faltam professores de ciências exatas e de tecnologia, da área de saúde e das ciências sociais aplicadas. Obviamente, professores de países em desenvolvimento quase não são representados nesses livros em língua inglesa. Além disso, nesses livros, as situações políticas e sociais contemporâneas muitas vezes são deixadas de lado, ou, então, vistas com uma década de atraso. Observam-se também poucas mulheres autoras e protagonistas, embora infelizmente esse seja um fenômeno generalizado na literatura. Por exemplo, é curioso, e triste, olhar para os títulos de um subconjunto de obras comentadas neste artigo: The History Man, Straight Man, A Single Man, A Serious Man, Irrational Man e Wonder Boys. Quanto a essas limitações, no entanto, uma grande lição que devemos aprender é a de Elaine Showalter, que, ao estudar os campus novels com uma forte base de teoria e de militância feminista, não tentou desconstruir e atacar todas as obras, uma a uma, até que não houvesse mais nada. Pelo contrário, ela analisou as limitações do subgênero como um todo, destacou pontos positivos (e.g., representação da vida dos professores, crítica ao uso moralista de teorias) e apresentou um caminho de evolução (e.g., de uma maior participação de mulheres como personagens importantes e a entrada de escritores profissionais no gênero).

Sobre a representatividade de acadêmicos brasileiros, um livro interessante é Tenda dos Milagres (AMADO, 1969). Não fala exatamente de uma Universidade fora da Universidade oficial, já que se concentra em apenas um único estudioso leigo (que deveria ser professor universitário!), o protagonista Pedro Archanjo. No entanto, ao mostrar o interesse desse personagem pela cultura popular e a cegueira dos intelectuais formais pela realidade local, o livro pode ser pensado como uma base para um campus novel brasileiro. Também, poderíamos imaginar a delícia que seria um livro do grande escritor Ariano Suassuna sobre as aventuras professorescas armoriais na UFPE, na qual ele foi professor de estética entre 1956 e 1994. Isso só para falar de um único professor autor famoso, pois a Universidade é repleta de escritores.


9. Um Pouco de Teoria Crítica Literária

Embora este artigo seja mais dedicado a apresentar trabalhos de ficção (festejando a diversidade) do que propriamente criticá-los, convém citar algumas análises teóricas. Além de Faculty Towers (SHOWALTER, 2005), que foi o mote deste artigo e analisou 64 campus novels, destacamos alguns trabalhos que podem servir como ponto de partida para o leitor se aprofundar. Em geral, essas teorias críticas (e.g., feminismo, pós-estruturalismo) apontam duas grandes limitações ao tipo de livros e filmes mostrados neste artigo: que eles representam os professores majoritariamente como homens privilegiados protegidos brancos heterossexuais de meia-idade e que representam os professores de forma muito negativa, com uso excessivo de álcool, paqueradores, mesquinhos, rebeldes, distraídos e angustiados. Uma outra crítica comum, mais leve, é a de que os campus novels seriam livros escritos por, sobre e para professores, com a única função de inflar seus egos (coterie genre). Talvez até fossem no começo, mas cada vez mais o gênero é voltado para uma audiência geral com formação superior, não só de professores (WILLIAMS, J. J., 2012).

Patrícia Verrone (1999) fez uma grande revisão de obras teóricas anteriores a 1980 e, depois, analisou 14 livros do período 1980-97. Jeffrey Williams (2012) trouxe um enfoque equilibrado entre livros formuláicos e de literatura. Para ele, a crítica que os campus novels fazem às guerras culturais e ao uso exagerado do politicamente correto seria uma reação dos escritores à perda de privilégios dos homens heterossexuais brancos de meia-idade com formação clássica. Petr Anténe (2015) também fez uma grande revisão sobre estudos clássicos dos campus novels, e, depois, usou 12 livros espaçados cronologicamente para exemplificar as grandes tendências temáticas dentro desse gênero. William Tierney (2004) também viu exageros nas representações, nas quais os professores são retratados ou como Faustos em tragédias ou como bufões em sátiras.

Existem ainda trabalhos que discutem conflitos e relações de poder indesejáveis entre os professores, entre os professores e a administração, e entre as várias áreas do conhecimento, tudo isso sem contar questões raciais, de gênero, religião e classe social (BECHER; TROWLER, 2001; BOURDIEU, 1984; GINSBERG, 2013; SNOW, 1959; TWALE; LUCA, 2008).

Em relação aos filmes, uma ótima análise foi feita por John Fitch III (2018), que, além de citar dezenas de filmes, estudou em detalhes 25 deles no período de 1970 a 2016. Para ele, também, há uma representação muito negativa dos professores, beirando até o anti-intelectualismo.


10. Memórias Brasileiras

Questionando sobre a realidade local e atual, como está sendo a autorrepresentação cultural dos professores no Brasil? Do ponto de vista estritamente dos resultados acadêmicos, podemos saber dos professores através de suas teses e de seus artigos, que podem ser acessados pelos mecanismos da internet da CAPES e do CNPq.

Um tipo de documento bastante importante sobre a individualidade dos professores são os memoriais que nós mesmos escrevemos para a promoção a Professor Titular. O interesse no contexto de nossa análise existe porque há um lado bastante pessoal nesses textos. O problema é que, até bem pouco tempo, esses memoriais não eram publicados de forma extensiva. Isso tem mudado com os sistemas computacionais das várias universidades. Por exemplo, acessando o sistema da UFPE, podemos baixar 24 memoriais de professores que foram promovidos no período 2019-21, e que, embora representem apenas 10% de todos os 233 titulares ativos da UFPE no ano de 2019, significam um bom prospecto. Claro que os memoriais têm todas as falhas que as autobiografias em geral possuem (e.g., memória seletiva, autocomplacência). Também, não podemos esquecer que são escritos para uma banca avaliadora, e que se restringem a professores que estão mais avançados em carreira e idade. No entanto, é difícil encontrar um local mais rico sobre a vida dos professores e sobre as próprias universidades brasileiras do que o coletivo dos memoriais9. Nos memoriais, além de questões de pesquisa, os professores falam de sua formação escolar, das pessoas que os influenciaram, e para o que realmente dão valor enquanto estudiosos. Isso é possível porque (ainda) não há um sistema de pontuação dos memoriais. Se houvesse, isso forçaria os professores a enquadrarem-se em mais uma receita de bolo, o que infelizmente já acontece com os concursos e editais de fomento à pesquisa. Falando ainda sobre os memoriais, a quarentena devido à pandemia do COVID obrigou que muitas atividades acadêmicas fossem transferidas para a internet, inclusive a defesa desses documentos. E, embora os professores não sejam obrigados a publicar essas defesas, elas cada vez mais vêm sendo disponibilizadas no YouTube. Por exemplo, nos primeiros seis meses de 2021, há 30 vídeos de defesas de memoriais (contando agora professores de todo o Brasil, não apenas da UFPE). Importante notar que, entre os 24 memoriais baixados na UFPE, exatamente 50% são de professoras mulheres. Esse número, bem maior do que a representação feminina nos campus novels anglo-americanos, indica um ótimo incentivo para o uso dessas histórias reais como base para uma produção artística adaptada à nossa realidade.


11. Teias em Frevância

O outro mecanismo usado pelos professores para se autorrepresentarem culturalmente têm sido websites pessoais, canais de vídeo (i.e., YouTube) e redes sociais (e.g., Facebook, Instagram e Linkedin). Neles, os professores falam sobre atividades que não são pontuadas, registradas ou reconhecidas pela administração universitária. Essa independência em relação à administração universitária é ardorosamente desejada pelos professores, os quais, muito embora estejam agindo como cidadãos-professores (i.e., continuam representando a Universidade), querem ter a liberdade de expressar sua opinião pessoal, de demonstrar um estilo próprio, de conviver com pessoas fora da Universidade, de discordar de seus colegas acadêmicos e de ter flexibilidade em relação a prazos e produtos. Em outras palavras, como dito, estão atuando como cidadãos-professores (Studium), não como funcionários de divulgação de algum órgão administrativo da universidade (Imperium).

Por exemplo, na rede social Facebook, o autor deste artigo tem cerca de 500 contatos, incluindo amigos, conhecidos e familiares. Entre eles, 55 são professores universitários. Esses “postam” videoaulas, opiniões sócio-tecno-políticas, criações artísticas, eventos esportivos, atividades assistenciais, viagens de pesquisa, felicidades com a aprovação de orientandos, eventos culturais, projetos urbanísticos, sucessos em publicações e projetos, músicas, poesias, cálculos e leituras além da sua especialização. Toda uma efervescência totalmente ligada às suas atividades acadêmicas, mas que não têm espaço no Lattes (na verdade até têm, mas queremos dizer que não são computados nas promoções, concursos e financiamentos) ou em algum projeto institucionalizado.

12. O Bosque dos Futuros Que Se Bifurcam

Este artigo não termina propriamente com uma conclusão, mas sim com uma abertura: uma série de propostas para aumentar a autorrepresentação artística e cultural dos professores universitários. Isso pode ser feito em dois movimentos síncronos, um de adaptação da representação artística anglo-americana de livros, filmes e peças de teatro10, e outro de representação da nossa própria experiência a partir das atividades que vêm sendo realizadas com memoriais, websites e redes sociais.

Sobre os livros, vários dos comentados neste artigo são romans à clef (i.e., histórias com personagens baseados em pessoas reais). Então, como todas as várias universidades são repletas de lendas e histórias interessantes sobre professores, não há falta de material para contos, romances e filmes. Ainda mais, temos uma forte tradição de causos, que darão um sabor mais brasileiro à forma como essas histórias podem ser contadas. Sem medo de colonialismos, uma maior consciência dessa literatura anglo-americana pode inicialmente fomentar o desejo pelas traduções, e, logo depois, fazer pipocar a criação artística local. Obviamente, os retratos necessários da Seção 8 (e.g., mais personagens mulheres, professores das áreas aplicadas, situações brasileiras, atualidades sociopolíticas e costumes locais) são essenciais para legitimar a nossa versão do campus novel. Na verdade, podemos criar algo novo: o Causo de Campus.

Em relação ao que vem sendo feito no Brasil a partir da explosão da tecnologia da informação, os memoriais disponibilizados são uma grande fonte de histórias da Universidade, bem como as redes sociais são um ótimo meio de divulgação de ações de cidadania. No entanto, ainda é bastante difícil para um professor ter acesso aos memoriais de outras universidades, bem como ao perfil de professores que não são seus conhecidos pessoais. Isso posto, podemos pensar em promover as seguintes ações que seriam realizadas pelos próprios professores: criação de bancos de memoriais acadêmicos públicos (assim como há os bancos de teses); apoio técnico mútuo à produção de vídeos, de websites e de livros eletrônicos sobre a vida dos professores; portais na internet para a publicação comunitária livre de textos, livros, fotos, eventos, notícias, opiniões e vídeos; congressos e festivais com causos, lendas, filmes, peças de teatro, contos, estudos, poesias, livros e demais produções artísticas sobre a vida dos professores.

Agora, um exemplo à guisa de ressalva. Juntando o campus novel com as redes sociais, recentemente foi publicado o romance Campusland (JOHNSTON, 2019). Embora seja um livro pouco conhecido e até superficial, é um bom exemplo de sátira ao uso das redes sociais por autoridades acadêmicas populistas, professores marqueteiros e instâncias oficiais engraçadinhas. Precisamos ter cuidado para não confundir a autêntica diversidade das individualidades dos professores com esse processo de infantilização, de relativismo absoluto e de diminuição intelectual, ou, então, corremos o risco de criarmos a próxima Idade das Trevas, como nos alertou o professor Jacques Barzun (2000) ao explicar a pós-modernidade.

A proposta deste artigo foi destacar algumas ações artísticas que já existem em outros países e algumas ações culturais daqui do Brasil, para então propor ideias para unificar as duas correntes, fortalecendo assim a representação dos professores universitários – principalmente, com o uso não moderado de sátira e leveza, tragédia e profundidade, especificidade e independência. Espera-se que, com uma maior representação artística e cultural, nós professores tenhamos cada vez mais consciência de nossa importância histórica e orgulho de cada uma das nossas individualidades. A solidez da Universidade é construída sobre a diversidade dos professores, não sobre sua homogenidade.


Notas

1 Nos Estados Unidos e Inglaterra há mais de 600 livros de ficção sobre a vida universitária (TIERNEY, 2004), publicados em sua maioria a partir de 1900, com maior impulso a partir de 1950. No início tratavam mais de estudantes, depois passaram a se concentrar mais nos professores (WILLIAMS, J. J., 2012).
2Usaremos as definições clássicas de cultura e arte. Cultura como o conjunto de técnicas, costumes, saberes, artefatos e crenças de um grupo de pessoas, e a arte (que é parte da cultura) sendo a expressão criativa de experiências e emoções. No contexto deste trabalho, os filmes, peças de teatro, músicas e livros de ficção serão considerados como meios de representação artística; e os memoriais, textos nas redes sociais, palestras, aulas, teses, artigos e livros acadêmicos serão considerados meios de representação cultural dos professores.
3A gestão inclui tanto a administração burocrática quanto a política universitária.
4Alguns autores preferem usar campus novels para livros sobre estudantes, e academic novels para livros sobre professores. Neste artigo, usaremos o termo campus novels para professores, pois é o uso popular.
5Os capítulos sobre professores foram escritos por Jacques Verger (RÜEGG, 1992), Peter A. Vandermeersch (RÜEGG, 1996), Matti Klinge (RÜEGG, 2004) e Thomas Finkenstaedt (RÜEGG, 2011).
6A Universidade de Bologna considera sua fundação como tendo ocorrido em 1088.
7O termo ‘Universidade’ não era relacionado com o conhecimento universal ou algo assim. A palavra significava simplesmente “um grupo de pessoas”.
8Pode parecer contraditório dizer que a Universidade mantém tradições (Traditum) quando inicialmente a administração era dos estudantes clientes e hoje em dia é dos professores. No entanto, é importante notar que a administração universitária sempre está a serviço do (legítimo e necessário, embora não suficiente) controle externo de quem financia a Universidade, sejam os estudantes clientes, seja o Estado.
9Outras fontes importantes para estudar a vida universitária são as atas de reuniões, trocas de e-mails e conversas nos grupos de WhatsApp. No entanto, enquanto as primeiras são muito formais e resumidas, as outras são privadas, inumeráveis e não-estruturadas, o que demanda um estudo muito mais difícil (e necessário).
10Duas peças de teatro americanas sobre professores são Who is Affraid of Virginia Woolf (1962), de Edward Albee, e Oleanna (1992), de David Mamet. Ambas foram adaptadas ao cinema.

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Biografia

Fábio Magnani é Professor Titular no Departamento de Engenharia Mecânica da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Possui Graduação em Engenharia Mecânica (1991) e Doutorado em Engenharia Mecânica na área de Engenharia e Ciências Térmicas (1996), ambos obtidos na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Suas atividades de ensino, pesquisa, extensão, gestão e cidadania atualmente concentram-se nas áreas de Estudos Sobre Motocicletas (motorização, propulsão, dinâmica veicular, tráfego, utilização e cultura) e de Otimização de Sistemas Térmicos (geração automática de sistemas, métodos de otimização, eficiência, custos e emissões). Além de suas atividades formais na UFPE, desenvolve um projeto de divulgação tecnocientífica e de opinião política sobre mobilidade em duas rodas chamado ‘Equilíbrio em Duas Rodas’, atualmente com mais de 500 textos e 100 vídeos. (Lattes: http://lattes.cnpq.br/0447483870045635). E-mail: fabio.magnani@ufpe.br

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