A Cultura das Fixas

© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: Bicicletas em Equilíbrio

A CULTURA DAS FIXAS
Fábio Magnani
[publicado originalmente em novembro de 2012]

No princípio todas as bicicletas tinham roda fixa. Quer dizer: quando você pedalava, a roda girava. Quando você parava de pedalar, a roda também parava. Simples. Simples, mas incômodo, porque o bicicleteiro nunca podia parar de pedalar se quisesse manter a bicicleta em movimento – nem nas descidas. Para resolver esse problema inventaram a catraca, que acopla a roda quando você pedala para frente e desacopla quando você para de pedalar. É um mecanismo bem simples, que fica escondido na roda traseira. Essa catraca que faz o tec-tec das bicicletas.

Um fato interessante é que as bicicletas sem catraca voltaram às ruas há uns 35 anos atrás, mesmo não sendo exatamente os sistemas mais eficientes concebíveis. Isso ilustra que a escolha pelo uso de um ou de outro tipo de bicicleta leva em conta outros fatores além da tecnologia.

Por falar em tecnologia, do ponto de vista dela a história da bicicleta é relativamente simples. Em 1817 inventaram a bicicleta com duas rodas, já com sistema de direção, mas propulsão com as solas dos pés – tipo os Flintstones. Perto de 1865 colocaram os pedais nas rodas dianteiras, como nos velocípedes infantis de hoje em dia. Por volta de 1885 veio a corrente. Em 1888 o pneu. Circa 1900 amadureceu a tal catraca. A mudança de marcha com descarrilhador se popularizou nos anos 1930. Pronto.

Só para constar, a frase do começo deste texto então é imprecisa, pois não é verdade que “no princípio todas as bicicletas tinham roda fixa”, já que os pedais só apareceram na década de 1860. Mas é uma frase bonita, que eu copiei do livro que vou comentar daqui a pouco. Além disso, as bicicletas não eram populares antes da invenção dos pedais. Por isso, para efeitos práticos e estéticos, a frase é mais do que adequada.

Na Época de Ouro do Bicicletismo (c. 1890-99), todas as bicicletas eram sem catraca. Hoje, por não serem as mais comuns, ganharam um apelido diferenciador: são chamadas de bicicletas de roda fixa (fixed gear) – ou simplesmente fixas.

Com o amadurecimento tecnológico das catracas, essas fixas deixaram de ser usadas de forma generalizada, passando a ocupar apenas um nicho bem específico nas pistas de corrida, onde a velocidade é aproximadamente constante e a eficiência mecânica deve ser a máxima possível. Quando usada nessas competições, são chamadas de bicicletas de pista (track bicycles).

Mas nem só de eficiência vive o mundo. O preço e o estilo também são importantes. Curiosamente, no final dos anos 1970 as fixas começaram a voltar para as ruas, sendo usadas pelos mensageiros de Nova Iorque. Eles preferiam bicicletas de pista usadas, pois tinham um baixo preço e pouca manutenção. Depois, a partir dos anos 90, essas bicicletas de roda fixa passaram a ser cultuadas por grupos de bicicleteiros inspirados por esses mensageiros, se transformando em uma febre mundial.

Legal observar aqui como mudaram, com o tempo, as pessoas que rodavam nas fixas: uso geral no final do século XIX, atletas até os anos 1970, trabalhadores nos anos 80 e depois burgueses a partir dos anos 90. Um mesmo equipamento simbolizando coisas diferentes: pragmatismo, eficiência, baixo custo ou status.

O livro Fixed: Global Fixed-Gear Bike Culture, de Andrew Edwards e Max Leonard (2009), conta toda essa história, desde o uso generalizado do século XIX, passando pelas pistas, voltando para as ruas em Nova Iorque e finalmente ganhando status cult no início do século XXI. Mas antes de falar sobre o livro, é legal dar uma olhada na evolução da transmissão da bicicleta.

Assim como em um carro ou em uma moto, a transmissão é a responsável por transmitir a energia do motor para a roda, fazendo o veículo se mover para a frente. No caso da bicicleta é preciso transmitir a energia que vem das pernas. As primeiras bicicletas tinham o sistema de propulsão mais natural que existe: o bicicleteiro simplesmente tocava os pés no chão, assim como os Flintstones em seus carros ou como as crianças aprendendo a andar em seus triciclos. Esse não é um sistema muito eficiente. Primeiro porque a força de atrito entre a sola e o chão é pequena, já que o peso do bicicleteiro é suportado pelo selim. Outro problema é que é preciso um esforço para levantar a perna a cada nova passada.

Quando apareceram os pedais, o bicicleteiro podia aplicar a energia diretamente ao cubo da roda. A roda então é que transmitia a força para o chão. Esse novo mecanismo era bem mais eficiente porque agora o peso era todo sustentado exatamente no ponto de contato do pneu com o chão, aumentando a força de atrito. Outra vantagem é que a perna subia com a ajuda do próprio pedal. Mas ainda não era o ideal, porque nesse sistema a rotação das pernas precisava ser igual à rotação da roda.

O problema é que a rotação ideal de um bicicleteiro fica em torno de 60 e 100 rpm. Acima disso, o corpo humano se torna cada vez menos eficiente, além de perder potência. Então, para manter uma rotação adequada das pernas e ao mesmo tempo atingir uma grande velocidade na bicicleta, era preciso que a roda fosse muito grande. Por isso, nessa época, apareceram as high wheelers (ou ordinaries, ou penny farthings). Essas bicicletas eram muito leves e eficientes, mas muito perigosas. Qualquer pedra ou buraco fazia o bicicleteiro sair voando lá de cima, atingindo o chão de cara. Só os mais atléticos e corajosos usavam essas bicicletas.

Até que em 1885 apareceram as safeties (ou bicicletas de segurança). Essas bicicletas usavam uma corrente para fazer a transmissão da energia do pedal para a roda traseira. Com o uso de rodas dentadas de tamanhos diferentes (coroa na frente e pinhão atrás) era possível fazer com que a roda tivesse uma rotação mais alta que o pedal. Desta forma, o tamanho da roda pôde ser diminuído, tornando a bicicleta segura para nós os meros mortais.

Essa bicicleta de segurança que não tinha catraca é o que hoje está na moda chamar de fixa. Ela tem esse nome porque o cubo da roda sempre tem que rodar junto com o movimento do pedal. Em outras palavras, se a roda estiver em movimento, o bicicleteiro tem que pedalar. O que é meio chato, principalmente nas descidas, onde pedalar é desnecessário. Sem contar que não necessariamente a roda está sempre em uma rotação adequada para as pernas. A fixa também é problemática nas curvas, porque às vezes o pedal bate no chão, fazendo com que a bicicleta tenha que ser projetada com o movimento central mais alto ou o pedivela menor. Por outro lado, embora ineficientes, as fixas têm suas vantagens, já que não precisam de freio e são mais fáceis de ser controladas, como qualquer criança de triciclo e qualquer motoqueiro sabe. Isso mesmo, as motos não têm catraca. Os motoqueiros usam a “roda fixa” das motos o tempo todo para controlar a moto, ora com o acelerador ora com o freio a motor.

Se bem que é preciso cuidado ao falar de controle no caso das bicicletas. As fixas não precisam de um freio além do provido pelas próprias pernas. No entanto, quando a velocidade aumenta, é preciso ter bastante força nas pernas para frear. Também é preciso cuidado ao falar em eficiência. O sistema de transmissão de uma fixa, por não ter catraca ou descarrilhador, é mais eficiente do que o de uma bicicleta comum. No entanto, por forçar o bicicleteiro a pedalar em uma rotação sempre proporcional à rotação da roda, faz com que o corpo não seja usado em condições ótimas. Por isso, embora a bicicleta fixa seja mais eficiente, o veículo completo (fixa+bicicleteiro) é bastante ineficiente. Isso não é problema nas pistas, onde a velocidade é praticamente constante. Naquele caso, basta escolher o jogo adequado de coroa+pinhão+roda que o corpo sempre vai operar na rotação ótima.

Voltando às catracas, as fotos acima mostram o princípio de funcionamento. Na imagem da esquerda há três linguetas, que sempre voltam à posição original pela ação das molas do tipo folha. Já na imagem da direita dá para ver que, quando alguém roda o cilindro externo no sentido horário, a lingueta prende na espinha de peixe, forçando o cilindro interno a girar também. Agora, quando o cilindro externo é girado no sentido anti-horário, a lingueta não prende na espinha de peixe. Quando isso acontece, a lingueta fica só subindo e descendo, fazendo o tec-tec, mas sem sair do lugar e, consequentemente, também sem mover o cilindro interno. Catraca é isso.

Um detalhe é que algumas pessoas confundem catraca com pinhão. Pinhão é aquela roda dentada que fica na roda traseira, recebendo a corrente. É parecida com a coroa, que é a roda dentada maior que fica perto do pedal. É exatamente a diferença de tamanho entre a coroa e o pinhão que permite que o pedal gire em uma rotação diferente da roda. A confusão pinhão x catraca aparece porque o pinhão geralmente é instalado sobre a catraca, que fica escondida dos olhos. Por isso, é comum todo mundo chamar o pinhão de catraca. Isso em geral não traz problemas fora do mundo técnico. Mas, no caso das fixas fica meio esquisito, já que elas têm pinhão mas não têm catraca.

Depois de todo esse palavrório para explicar um componente que nem existe nas fixas, podemos finalmente falar do livro Fixed. Há três grandes partes: CORRIDAS (50pp), DAS PISTAS ÀS RUAS (58pp) e ALÉM DAS PEDALADAS (24pp).

Em CORRIDAS o livro conta principalmente a história do bicicletismo competitivo nos EUA, que foi bastante forte até os anos 1930. Os principais eventos ocorriam nos velódromos, ao contrário da Europa, onde as principais corridas sempre foram na estrada. Essa diferença também ocorria com as motos. Nos EUA eles preferiam as corridas de flat track e depois de supercross. Já na Europa, a preferência sempre foi por corridas de rua ou em circuitos mistos.

No começo as fixas eram usadas nos eventos six-days, nas quais os competidores pedalavam centenas de quilometros durante seis dias. As multidões lotavam os velódromos. Com o tempo os organizadores começaram a se preocupar com essas corridas desumanas, então as competições foram convergindo pouco a pouco para as corridas de pista que conhecemos hoje em dia.

Uma ótima surpresa que tive lendo o livro foi o Keirin, que são as corridas de aposta no Japão, introduzidas em 1948. O livro explica toda a formação dos garotos, a preocupação com corrupção do crime organizado, a ética durante as corridas e os fabricantes tradicionais.

A parte DAS PISTAS ÀS RUAS conta como os mensageiros de Nova Iorque começaram a usar as bicicletas de pista para fazer as entregas. Elas eram baratas, de fácil manutenção e exigiam um bom preparo físico, o que dificultava o roubo. Com o tempo esses entregadores passaram a ser cultuados e imitados por ciclistas da classe média, que passaram a usar as fixas como forma de desafio e símbolo de status. Nessa passagem, no entanto, algumas características se perderam. Por exemplo, as fixas de hoje em dia são mais caras do que bicicletas comuns com catraca, o que contraria um dos objetivos dos mensageiros.

Dois movimentos atuais bem comentados no livro são o Macaframa e o Mash SF. Mas eu gostei mesmo quando eles falaram da cultura das fixas em Tóquio, dos alley cats, que são corridas em meio ao trânsito, do uso das fixas para malabarismos e de algumas competições malucas, como o polo com bicicletas.

Eu acho bastante interessante como esses mensageiros novaiorquinos dos anos 80 são usados hoje em dia como símbolos de status para a classe média. No Brasil também temos mensageiros que se arriscam no trânsito. Eles também têm grande habilidade técnica e usam equipamentos simples. São os motoboys. Mas não são considerados símbolos para os motoqueiros da classe média. Muito pelo contrário, os motoqueiros mais abastados até usam a classificação “motociclistas” para se diferenciarem dos “motoqueiros”.

No caso das bicicletas também há um pouco desse preconceito de classe, já que alguns “ciclistas” chamam os trabalhadores de “pedaleiros” ou de “bicicleteiros”. Eu penso que se compreendermos como se deu essa admiração pelos mensageiros de Nova Iorque, daremos um passo importante para diminuirmos o preconceito contra os motoqueiros e contra os bicicleteiros. Mas é coisa complicada e para se pensar com calma.

A parte final do livro, ALÉM DAS PEDALADAS, é voltada para o design de luxo das fixas. Ele fala sobre algumas fixas famosas, como uma Laser da Cinelli e uma AF1 projetada para a Nike. São bicicletas bem bonitas, mas que não se encaixam muito bem no movimento cultural mundial que eles apresentaram desde a primeira página. Ao meu ver essa parte ficou meio deslocada do resto.

Para terminar, não entendo exatamente o que sinto pelas fixas. As high wheelers são mais simples, difíceis e perigosas. As recumbentes são mais rápidas. Agora, o que me incomoda mesmo é que, embora sejam mais simples, as fixas de hoje em dia são mais caras que as bicicletas comuns com catraca – o que é no mínimo estranho. Fico irritado com essa enganação das fábricas, que alimentam um modismo para vender bicicletas simples por um preço bem alto. Por outro lado, entre as bicicletas permitidas pela UCI e entre as disponíveis no mercado, certamente as bicicletas de pista são as mais elegantes.

Vou ficar em cima do muro. Ou, como diria o Angeli, vou falar de duas coisas que eu odeio e de uma que eu adoro: odeio modismos da classe média, odeio as enganações de marketing das fábricas, e adoro a simplicidade mecânica das bicicletas de pista.

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