Livro: Um Motoqueiro Existencialista
Fábio Magnani
[publicado originalmente em março de 2014]
A visão urbana mais libertária e linda de todas é a de uma garota rodando de moto. É libertária porque cria uma tormenta na cabeça da gente, uma tempestade de ideias nascidas da colisão entre duas imagens a que fomos doutrinados a vida toda: a imagem da delicadeza das mulheres e a imagem da violência das motos. Fomos ensinados a acreditar que essas duas imagens eram irreconciliáveis. Não são. Ao vermos a garota na moto, percebemos que mentiram para a gente. E se mentiram sobre isso, talvez tenham mentido em tudo.
Agora basta desse papo complicado de libertação. Explicar porque é uma visão linda é bem mais fácil. É uma visão linda porque mulheres são lindas e porque motos são lindas. Simples assim.
É um tema complicado esse de falar sobre as mulheres em geral. Complicado não. Amedrontador. Há o medo de ferir amigas e leitoras em particular. Há o medo de declarar a paixão que sinto por todas as mulheres, uma paixão que não será correspondida. Há o medo de libertar um ódio recalcado por aquilo que não se pode controlar. Homens são complicados. Medrosos. Escondemos isso de várias formas, em geral formas mesquinhas e violentas. Eu tento ser um pouco mais civilizado, escondendo o meu medo por detrás de uma casca academicista.
Lá estava eu nas minhas férias fuçando na internet quando encontrei uma lista com mais de 1500 gibis de ação com alguma moto na capa. Fiquei horas navegando. Irremediavelmente a minha atenção foi para as garotas. Tive até o cuidado de baixar as capas em que elas apareciam em destaque. Foram umas 180, 12% dos gibis da tal página.
Ao tentar registrar a minha impressão sobre essas capas motofemininas, tive uma grande dificuldade, pois há desde fotos completamente inocentes até fotos quase pornográficas, há fotos com mulheres corajosas e amedrontadas, condutoras e conduzidas. Há de tudo. Impossível fazer um texto homogêneo generalizando todas.
Resolvi então (tentar) classificar alguns tipos de representação das motoqueiras que aparecem nas capas dos gibis.
Para começar, é importante ter em mente que esses são gibis de super-heróis, então todos os personagens (masculinos e femininos) são sempre bem apolíneos. Não li nenhum desses gibis, então a impressão que vou comentar sempre terá nascido da observação da capa. Talvez quando eu conhecer melhor as personagens eu mude completamente a minha visão. Talvez não. Também, obviamente, mas não custa repetir, a impressão é minha (!?), o que significa dizer que ela depende da minha história pessoal, da cultura na qual estou imerso, da minha sensibilidade artística, das minhas condicionantes genéticas e das minhas reflexões intelectuais. Sim, acredito que somos uma mistura de genética e cultura (nature and nurture). Para piorar, é muito difícil distinguir o que é arte e o que é pornografia, o que é empoderamento e o que é exploração, o que é cult e o que é kitsch, o que é machismo e o que é desejo, e por aí vai. Acima de tudo, as mulheres causam um fascínio e um poder tão grande sobre os homens, mas tão grande, que qualquer conversa nossa sempre acaba sendo atraída para um ou para outro desses extremos.
Classifiquei as capas em onze categorias, algumas que claramente respeitam as personagens, outras que claramente são pornográficas. A maior parte fica em um meio termo mais complexo.
Na representação das ‘deusas’, as mulheres são mostradas com um misto de poder físico e sexual. Em geral estão com uma arma na mão ou prometendo uma ação iminente, mas dá para ver que a maior importância dessa representação é que o poder potencial daquelas motoqueiras, seja de atração ou destruição, sempre é incerto. Na representação ainda não estão fazendo nada de importante, mas podem fazer a qualquer momento. Vão fazer se você não se comportar. Respeito é bom.
Encontrei algumas capas que poderiam ser classificadas como de mulheres ‘comuns’, já que são bem parecidas com as motoqueiras que encontramos no dia a dia. Isso quanto à roupa, ao corpo e ao comportamento. Não é uma representação muito fácil de encontrar nas capas, pois, como eu disse antes, nem os homens dos gibis são ‘comuns’. Todos os super-heróis e os super-vilões são supers, por definição.
A forma mais comum dos homens negarem o poder que as mulheres têm sobre nós é representá-las como ‘bruxas’. Não é diferente nos gibis, onde muitas vezes as mulheres poderosas são vistas como seres demoníacos, seres que precisam ser destruídos a qualquer custo para a tranquilidade da macharada.
Para mim, a representação mais difícil de interpretar é a das ‘fofinhas’. Ela mistura uma visão infantil com outra sensualizante. Talvez seja uma mistura intencional, mas talvez esse “incômodo” seja causado em mim pelas frustrações que tive na adolescência. Vai saber. Vou perguntar para a minha analista.
Claro que tem as capas com as mulheres ‘plásticas’. Garotas que só estão em cima da moto para fazer pose, só para mostrar o corpo, sem qualquer tipo de ligação com a ação do gibi. É certo que elas me chamam a atenção, como um manequim de loja ou uma estátua poderiam chamar, mas não é algo que me atraia profundamente. Não tem nada mais chato que uma mulher de plástico – seja plástico físico, plástico mental ou comportamental.
Outra representação é mais sexualizada ainda, a das ‘libidinosas’, que, além de mostrarem o corpo, sugerem o próprio ato sexual através da posição e do movimento. Sei que isso daqui é a mais pura exploração pornográfica das mulheres, mas não vou negar que essas capas são muito, digamos, magnéticas para mim.
Um tipo de representação que me causa bastante confusão é a das garotas em grupo, as ‘tribais’. Talvez seja porque sugerem orgias lésbicas feitas para homens babões como eu. Por outro lado, talvez nos pareçam ameaçadoras porque mostram como somos desnecessários – outra pergunta para a minha analista.
Uma das visões mais frequentes nas capas é a das garotas ‘conduzidas’ na garupa. Em geral são vítimas salvas pelos super-heróis. Choram, abraçam, agradecem, prometem e entregam. Não tenho paciência para esse tipo de coisa.
Nos gibis também há as ‘condutoras’, heroínas que pegam o guidão da moto para conduzir a ação. Engraçado que, embora os gibis sejam extremamente machistas, há uma maior representação de motoqueiras fortes do que nas propagandas e nas revistas especializadas.
Deixei para o fim as representações que eu mais gosto como leitor. Primeiro as ‘dinâmicas’, que são as motoqueiras preocupadas principalmente com a ação, seja de luta, prazer ou perseguição. Não há uma preocupação com o gênero ou na perfeição do corpo. Aqui não vai nenhum tipo de moralismo ou de pretenso desapego ao desejo. A verdade é que eu sou bastante atraído por mulheres em ação – física ou intelectual.
A representação que eu mais gosto, mesmo mesmo, é a das ‘existenciais’, essas motoqueiras solitárias que vagam pelo mundo com um certo ar melancólico, determinado e individualista. Interessante que essa representação não provoca primariamente medo, nem desejo de posse, nem desejo sexual propriamente. A visão de uma mulher autêntica, de um indivíduo real, provoca acima de tudo o desejo de conhecer. Conhecer de verdade. Claro que isso inclui a comunhão sexual, mas não se resume a ela.
Deusas, bruxas, comuns, plásticas, libidinosas, fofinhas, tribais, conduzidas, condutoras, dinâmicas e existenciais. Há representações femininas de todos os tipos nas capas dos gibis. E a análise dessas capas, feitas por um homem, tem o poder de revelar muitas de nossas fraquezas. Somos viciados em pornografia, temos medo de sermos controlados pelo desejo sexual, não conseguimos distinguir leveza de sensualismo, gostaríamos de poder controlar o caminho das mulheres.
Por outro lado, essa riqueza de representações também revela nossas virtudes: como as mulheres nos parecem obras de arte, como gostaríamos nós também que elas tivessem a mesma liberdade de ação que a gente, de como é gostoso às vezes conduzir e às vezes ser conduzido por uma mulher, de como queremos distância das mulheres de plástico e das que se agarram.
Acima de tudo, acredito que o que buscamos mesmo nessa vida é o encontro com pessoas autênticas.
Muitas vezes (sempre?), a pornografia, o controle, a exploração e a endemonização são apenas fracos substitutos para essa falta de autenticidade que experimentamos tanto em nós como nos outros. Essa falta de autenticidade cria um buraco em nosso espírito. Por isso, para não sofrermos, tentamos preencher esse vazio com todas essas porcarias.
Eu não sei qual é o caminho para encontrar essa tal autenticidade que tanto precisamos. Só sei que é gostoso quando a vemos representada de relance em uma capa de gibi ou quando a observamos na face compenetrada de uma motoqueira que contempla algo na beira do caminho. – – >