Motelisa, a Rainha da Cidade

© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: Má-Criações em Duas Rodas

MOTELISA, A RAINHA DA CIDADE
Fábio Magnani
[publicado originalmente em maio de 2011]

Elisa chega toda desanimada na sede da MotoFly, a maior empresa de motoboys da cidade. Mas, assim que dá alguns passos no prédio, a vida já volta ao normal. Como sempre, todos os olhares se voltam para ela. Ser a única motoqueira da empresa tem suas vantagens.

“Oi, Elisa, minha morena linda, como anda essa realeza?”, pergunta Maurão, o melhor amigo de Elisa.

“Tá fogo, Maurão. Fiquei presa em uma blitz a tarde toda. Fiz só 10 reais. Tô rezando para aparecer uma camica”.

“Cê tá doida de pegar essas camica, minha princesa. Cê ainda vai morrer por causa disso.”

“Vô não, meu amigo, vô não. Deus está do lado dos justos. Não tô em situação de perder essa grana. O nosso chefinho aqui só paga R$ 5,00 por corrida. Numa camica, a Calendra bota mais R$ 20,00 em cima disso”.

“O detalhe é que você tem que fazer Boa Vista – Bom Amparo em 15 minutos bem na hora do rush… Cê ainda vai morrer, meu anjo”.

“Deus não deixa eu morrer não. Tenho minha filha para criar. Somos só nós duas no mundo”.

Elisa dá um beijo em Maurão e segue para o escritório do chefinho para entrar na fila da camica. Ela odeia aquele baixinho engordurado, sempre com o sorriso falso arreganhando os dentes amarelados. O duro é agüentar as cantadas.

“Olá minha majestade. O que é que manda? Sabe que aqui sua vontade é lei”.

“Oi chefinho, me coloca na lista da camica aí. Tô precisando recuperar o tempo que perdi na blitz”.

“Minha morena jambo, por que você se arrisca assim? Uma gata tão fogosa. Tem jeito mais fácil de ganhar dinheiro. Quem sabe a gente não sai para tomar uma cerveja?”

“Chefinho, chefinho. Sô disso não, ainda mais com você. Cê vai ver que eu ainda conto essas coisas pra Dona Joana.”

Chefinho fica sério, se ajeita na cadeira, acende um cigarro e coloca o nome de Elisa na lista.

“Nem pensa nisso. Se ela descobre que continuo nessa vida ela pede o divórcio e leva tudo o que eu tenho. E você, Elisa, um dia você vai se dar mal. E eu vou estar lá para te tirar da lama. Da lama pra cama.”

“Vai sonhando, chefinho, vai sonhando”.

Nisso toca o celular de Elisa. É a vizinha dela, que liga para avisar que começou outro ataque de asma em Sofia, a filha de seis anos de Elisa. É para comprar o remédio porque dessa vez a coisa é séria. E não adianta levar para o posto de saúde por causa da greve dos hospitais públicos.

Elisa sai correndo do escritório de chefinho, em busca de Maurão. O remédio custa R$ 50, mas ela só tem R$ 10. Maurão está liso, do mesmo jeito que todos os outros amigos de Elisa. Quase todo mundo deve uma grana para Terto, o agiota, que já tinha passado para pegar o pagamento do dia. O problema é que nem uma camica resolve a vida de Elisa, que desmorona em uma cadeira da sala de espera. Não tem jeito, Sofia não vai ter remédio hoje.

Mas de repente o sangue volta ao rosto de Elisa, que abre um sorriso, levanta a cabeça e sobe na cadeira, bradando para todo o recinto.

“Pessoal, quem aí á na lista da camica? Eu tô fazendo um xálengi. Tô facinha, é só vir em mim.”

Topete, o motoqueiro mais mascarado da MotoFly diz que ele é o próximo da fila e que aceita o xálengi.

“Tá ligada como é o negócio, né mocinha? Quem chegar primeiro fica com a camica de R$ 25 do outro. São R$ 50 para uma corrida de 15 minutos. Dinheiro fácil… pra mim”.

“Só se for agora, Topete.”

Nisso chefinho sai do escritório gritando que pediram duas camica para a Calendra de Bom Amparo. Era para Topete e Elisa correrem para as motos. Já.

Elisa é a melhor motoqueira da região, por isso é conhecida como Motelisa, a Rainha das Ruas. Mas por ser tão bonita, também é conhecida como a Monalisa das Motoqueiras. Bem, o certo é que, de alguma forma, ela consegue prever o que os motoristas vão fazer, então dá para andar em alta velocidade pelos corredores. Os outros motoqueiros ou ficam com medo ou então batem em algum carro descuidado. Topete também é bom, mas é o segundo. Ele vai mais na coragem do que na manha. Um dia ia se estourar. E aquele era o dia. Mal chegou na Ponte do Pinhão, um motorista mudou de pista bem na frente de Topete, que bateu na lateral do carro e saiu voando. Teve sorte de cair no capô de outro carro, que amorteceu a sua queda.

Sorte para Topete, mas não para Sofia, que esperava o remédio em casa. Com o acidente de Topete a Calendra só ia pagar a camica de Elisa. E isso se ela chegasse em tempo.

O motorista do carro colocou Topete no banco de trás e correu para uma emergência particular. Tudo resolvido em menos de três minutos. Dava tempo de Elisa fazer a entrega, pegar a camica, voltar para a MotoFly e entrar na lista de novo. Com sorte ia fazer a grana para comprar o remédio.

Mas assim que saiu com a moto viu que o dedo de Topete tinha ficado ali no chão. A queda tinha sido amortecida, mas ele devia ter prendido o dedo no guidão na hora da batida. Elisa puxou o ar, espirou com força e gritou um xingamento que faria até o diabo ficar com vergonha. E agora? Se fosse atrás do carro podiam costurar o dedo do Topete, mas daí Sofia ficava sem o remédio. Já tinha perdido o xálengi, agora corria o risco de perder a camica.

Mas no fundo Elisa não tinha escolha. Ia resolver primeiro o problema de Topete, depois ia correr atrás da grana do remédio. Uma coisa de cada vez.

Da Ponte do Pinhão Elisa podia ver o carro com o Topete 500 metros à frente. Naquela hora não tinha como um carro andar muito rápido, mesmo que estivesse buzinando alto para avisar que era uma emergência. Elisa acelerou a moto e alcançou o carro alguns minutos depois, já perto do hospital particular. Entregou o dedo para Topete, que já estava louco com o motorista que não queria voltar para procurar o dedo. Problema um resolvido.

Ao olhar para o relógio, Elisa viu que já tinham se passado 13 minutos desde a saída. Ia perder aquela camica. O ruim era que já eram quase seis da tarde, horário em que a Calendra parava as entregas. Naquele dia não ia ter mais serviço, nem dinheiro, nem remédio.

Nisso Elisa viu uma mulher na calçada, mexendo em uma bolsa grande. Sem pensar duas vezes, Elisa dobrou a placa da moto para não ser identificada, passou raspando na mulher e roubou a bolsa dela. Sofia ia ter o remédio aquele dia de qualquer jeito. Acelerou a moto no trânsito até que a adrenalina tivesse baixado um pouco. Na fuga, parecia até que tinha esquecido de respirar. Seu coração estava a mil por hora.

Parou em uma praça quieta, para verificar a bolsa. Não tinha dinheiro. Só cartão, cheque e celular. Podia até tentar vender, mas o Fernandão só ia entregar o dinheiro amanhã. Precisava do dinheiro hoje.

Elisa não sabia mais o que fazer. Para acalmar um pouco a cabeça, entrou em um supermercado e deixou a bolsa da mulher na seção de achados e perdidos. Amanhã ligariam para que a dona viesse buscar.

Elisa sentou na escadaria do supermercado e começou a pensar nas suas opções. Roubar uma farmácia sem arma era quase impossível por causa do segurança. Sem contar que não podia se dar ao luxo de ficar presa, pois era a única pessoa na vida de Sofia. Para ganhar R$ 50 entregando pizza, só depois das oito. Mesmo assim, teria que trabalhar até a madrugada para levantar tudo aquilo. Todos amigos estavam sem dinheiro. Só se fosse fazer um programa na rua. Nunca tinha se submetido a aquilo, mas sua filha não podia ficar sem cuidados. Só que deixou o pensamento de lado, porque não daria para conseguir um cliente tão rápido assim. A concorrência na Conselheiro Aguiar é forte. Com aquela roupa de motogirl que estava, então, não conseguiria chamar a atenção dos caras que passam rápido por ali. Vender a moto também nem pensar, pois ninguém daria o dinheiro na hora. Não tinha dinheiro no banco e o seu cartão de crédito já estava no limite. Elisa começou a chorar, como não fazia há anos.

Nada como um bom choro para limpar a cabeça. Elisa pensou em uma outra opção. Dinheiro sujo, mas fácil. Pegou o celular e ligou para chefinho. Se ele queria sair para aquela cerveja então teria que ser agora. R$ 200. Topado.

Uma hora depois, Elisa estava com o dinheiro na mão. Antes de fechar a porta do quarto, Elisa pegou o celular do bolso e tirou uma foto do chefinho, que dormia como um bebê, todo espalhado na cama.

Maurão – com quem Elisa sempre pode contar – e sua turma tinham quebrado o cara de pancada no motel depois que Elisa contou do acerto para o programa. Ainda deixaram ele só de cueca na cama, desmaiado, parecendo que estava todo satisfeito da vida.

Elisa apertou o botão do celular para enviar a foto, abriu um sorriso e pensou: “Amanhã a MotoFly vai ter um novo dono. Dona Joana não vai deixar isso barato. Não mesmo”.

Na farmácia, depois de comprar o remédio, Elisa ainda gastou um tempinho para faturar um ursinho de pelúcia numa daquelas máquinas de roubar otário. O bichinho ia ajudar Sofia a se tranqüilizar mais rápido. Depois voou para casa, que era longe para os outros, mas um instantinho para Motelisa.

Ao entrar em casa viu Sofia deitada no sofá, com muita falta de ar. Correu para a filha e aplicou o remédio. Alguns minutos depois a menina já estava mais calma. Conseguia até falar.

“Mamãe, a senhora é minha rainha. Como foi o seu dia?”

“Nada de mais, filhinha. Foi o de sempre. O de sempre.”

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