Vol. 3 – Uma Nova Dama

© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: Má-Criações em Duas Rodas

OS MOTOQUEIROS DO SERTÃO – VOL.3: UMA NOVA DAMA
Fábio Magnani
[publicado originalmente em fevereiro de 2010]

Parte 1

Em plena reunião, já cansada de tanta cegueira, Giovana se levanta e dá um soco na mesa. Todos olham surpresos para a investigadora. Após alguns segundos aproveitando o efeito dramático da sua impetuosidade, a bela mulher declama:

“Não é possível que apenas eu consiga ver uma relação entre o assalto ao banco de Serra dos Albuquerques e o ataque ao laboratório em Catupiba!”

Nisso o delegado regional se levanta calmamente, como se para evitar um confronto desnecessário com a investigadora e explica:

“Mas minha cara Giovana, como pode um assalto ao banco feito por um único homem ter alguma relação com um ataque de um grupo a um laboratório de cocaína?”

A mulher enche as bochechas de ar e expira em um ato de impaciência:

“Isso pode colar para os jornalistas, mas desde quando a polícia tem dois assaltos desse tipo sem nenhum suspeito? E o uso das motos, não é coincidência demais? Além disso, embora no assalto ao banco apenas um homem tenha participado, não é possível sincronizar tudo sem informação interna. Claro que havia mais gente envolvida.”

Agora é o delegado regional – Antonio -, que perde a paciência:

“A senhora está querendo dizer que só porque usaram motos nos dois crimes, então deve ser um único grupo? Então, seguindo o vosso raciocínio, todos os crimes cometidos por homens também são necessariamente relacionados? Nunca vi tanta insanidade!”.

Giovana retorna à postura de respeito ao superior.

“Mas senhor, por favor, me ouça. Nós temos dois casos de ataques sem suspeitos. Os dois casos foram realizados por quadrilhas. Isso nunca aconteceu antes conosco, pois o modus operandi dos crimes sempre aponta para alguma quadrilha já conhecida. Segundo, tudo bem que assaltos a bancos com motocicletas sejam comuns, mas o que me diz de ataques a laboratórios? Terceiro, temos dois ataques completamente diferentes. Concluindo, se me permite, só temos duas alternativas: ou estamos tendo o azar de aparecerem do nada duas quadrilhas completamente diferentes ou então é uma quadrilha só mudando o M.O. só para nos confundir.”

Nisso o delegado levanta a voz e grita:

“A senhora está completamente maluca! Está propondo que existe uma orquestração para nos enganar? E ainda feita por motoqueiros? A senhora está assistindo filmes demais! Ah… por falar em filmes, a senhora terá um bom tempo para assistir filmes, pois está suspensa por 15 dias até recuperar o bom senso”.

“Mas…”

“Sem mas! Fora!”

Giovana saiu chorando de raiva. Mas bastou chegar ao seu carro para – como sempre – decidir qual seria o seu plano de ação:

“Motoqueiros do Sertão, recebam uma nova dama na dança. Caatinga, aqui vou eu!”

(continua)

Parte 2

Giovana só desceu do carro depois de andar os 600 km entre Recife e Salgueiro. Torcendo para que não soubessem da sua suspensão, dirigiu-se diretamente à delegacia regional da polícia, para obter informações sobre os dois ataques dos motoqueiros do sertão. Na estrada havia passado  por celular toda a sua teoria de ataques perpetrados por uma mesma quadrilha para o delegado regional de Salgueiro. Chegando na delegacia, o engenheiro de informação Elias já a esperava com novidades.

“Muito prazer, Giovana. O delegado pediu para eu te ajudar em tudo que precisasse. Essa sua teoria é muito instigante. Realmente há mais ligações entre os dois casos do que poderíamos esperar. Mas confesso que ainda não podemos afirmar que se trata de uma única quadrilha.”

Giovana, com um simpático sorriso por ter sua idéia reconhecida, acompanhou Elias até a sala de informações.

“O que você encontrou aí no oráculo todo-poderos?”

Elias, sorrindo, explicou: “O primeiro ataque, em Serra dos Albuquerques, foi executado por um único suspeito – Jessé Jemisson do Nascimento. O cara é especialista em demolições e consultor de segurança. Nos últimos tempos vínhamos tendo uma série de assaltos bem parecidos, com um motoqueiro assaltando o carro-forte assim que saía do banco. A característica mais interessante desses assaltos é que o motoqueiro sempre era morto durante a fuga, mas o dinheiro nunca recuperado. Suspeitávamos de alguém com contato dentro do sistema bancário. Os motoqueiros seriam apenas marionetes queimados logo após o crime. Além disso, o motoqueiro sempre era um Zé Ninguém.”

“Qual a frequencia desses assaltos?”, perguntou Giovana.

“Coisa de um assalto a cada 20 dias. Engraçado que desde o assalto do Jessé, nunca mais houve nada.”

“Bem… vamos lá: as duas únicas diferenças são um motoqueiro mais preparado para o serviço e tratar-se do último. Será que as diferenças não estão interligadas,  uma diferença sendo a própria causa da outra?”

Elias coça a cabeça ao mesmo tempo que assume a sua inferioridade: “Agora você está filosofando demais… não entendi nada.”

“O que eu quero dizer é: será que quando escolheram por acaso um cara preparado, ele de alguma forma não descobriu o esquema e acabou eliminando os chefes?”.

“Pode ser, pode ser. Naquele golpe, além dos dois seguranças mortos no tiroteio, Jesse ainda matou o Secretário das Finanças e o Juiz da cidade. Você acha que eles poderiam ser os cabeças da quadrilha?”

Giovana mais uma vez rindo de satisfação, responde: “Acho que sim, mas vamos deixar um pouco esse crime e sigamos para o segundo.”

Elias, agora já conformado por ser guiado pela bela dama, mas também contente por trabalhar com alguém inteligente, continuou: “O segundo ataque não tem nada a ver com o primeiro. Foi um ataque com explosivos e granadas a um laboratório de cocaína. Os assaltantes afugentaram os operários, roubaram 5 kg de cocaína e fugiram de moto pela caatinga.”

“Nada a ver com o primeiro? Vejamos… Jesse não é especialista em explosivos? Os dois ataques não foram executados com motocicletas?”

Elias sorri novamente com a perspicácia da moça: “Você tem toda a razão, mas, e o M.O. diferente nos dois casos?”

“Pensei que já tivéssemos passado por isso antes: no primeiro caso Jessé foi um marionete prestes a ser executado.  Ao descobrir que seria executado, eliminou a quadrilha de ataques a bancos. O problema é que foi irreversivelmente incriminado pela morte de quatro pessoas. O que restou a ele a não ser montar a sua própria quadrilha, mas agora usando o seu próprio M.O.?”

“Giovana, Giovana, você é um demônio! É claro que você tem razão. Como ninguém viu isso antes?”

Tentando em vão esconder a sua satisfação, Giovana muda de assunto: “Já sabemos quem são os criminosos e como atuaram. A questão agora é: onde estão?”.

“Agora eu acho que posso te ajudar”, disse Elias. “Em casos difíceis assim, sempre começamos procurando por coisas estranhas. Aqui no meu sistema, no mesmo dia do assalto ao banco, há o registro do sumiço da secretária do juiz assassinado. Depois ela simplesmente aparece do nada cheia de ematomas supostamente de uma queda de cavalo, dizendo que não estava sabendo de nada pois havia passado os últimos dias em sua fazenda. Pode não ser nada, mas quem sabe? Seu nome é Thaís Albuquerque.”

“Pode não ser nada, mas isso não me cheira bem. Que estrada eu pego para ir até Serra dos Albuquerques?”.

“Você não vai nem descansar?”

Giovana se levanta com ar decidido, pega a chave do carro e responde da porta: “Vou, depois que conversar com essa donazinha.”

(continua)

Parte 3

Giovana chegou em Serra dos Albuquerques no início da madrugada. Aproveitou para dormir um pouco enquanto esperava uma hora apropriada para visitar Thaís. Giovana, que não seria capaz de mentir nem para prender o maior dos criminosos, se apresentaria diretamente como investigadora da polícia. Thaís poderia responder às suas perguntas ou então abriria um inquérito policial. Nada podia abalar o profissionalismo e objetividade de Giovana.

A ansiedade por avançar no caso não a deixou dormir muito. Aproveitou, então, para rever os documentos que Elias havia entregue a ela. Tinha certeza que Jessé tinha participado dos dois crimes e que Thaís estava envolvida nisso.

Ao chegar na frente da casa de Thaís, foi logo batendo palmas. “Dona Thaís? Dona Thaís?”. Nisso sai uma mulher bonita da casa, vestindo uma camisola. “Em que posso lhe ajudar?”, responde a sonolenta Thaís.

Muito bom que ainda esteja acordando agora, pensou Giovana, vou pegar essa dona de surpresa.

“Polícia da capital. Estou aqui para fazer umas perguntas sobre o assassinato do juiz!”.

Se Thaís ficou preocupada – ou não – com a investigadora, nunca se saberá, porque não demonstrou nenhuma surpresa.

“Então entre, senhora. Vamos conversar!”

Mas mal entrou na casa, Giovana viu um homem só de bermudas vindo da cozinha. Seus olhos não quiseram acreditar quando reconheceu o grande amor de sua vida:

“Willi, o que você faz por aqui?”

“Eu é que pergunto, Giovana. Você sempre fez de tudo para fugir de mim.”

“Willi, você sabe muito bem porque não nos encontramos mais. Meu marido disse que mandaria te matar se soubesse que ainda estávamos nos encontrando às escondidas.”

“E o seu amor por mim era tão grande que você obedeceu a ele, não é?”

“Não, Willi, o meu amor é tão grande por você que eu preferi ter uma vida desgraçada ao lado do meu marido do que ver qualquer coisa acontecer com você.”

Os dois então aproximaram seus corpos, agora em silêncio, com os olhos grudados uns nos outros, como se para não se deixarem escapar. Estavam quase se beijando quando Thaís entra na sala:

“Hei! O que é que está acontecendo aqui? Que policial que nada, minha amiga, você veio aqui foi atrás do seu homem, não é?”

(continua)

Parte 4

Willi deixou Giovana dormindo no quarto, dirigindo-se à cozinha para conversar com Thaís, que o recebeu com um largo sorriso:

“Vocês estavam com saudades, hein?”.

Willi não conseguiu esconder o ar de felicidade, que logo se transformou em uma expressão de preocupação:

“Thaís, eu vou precisar da sua ajuda. Sabe quem é o marido da Giovana? É o coronel Abobrinha.”

“Eu já vi na TV. O cara deve ser poderoso. Mas porque você precisa da minha ajuda?”

“Esse coronel Abobrinha é o mesmo que se livrou na Operação Calango. É o cara que o Capitão Piquetão está querendo prender! Se ele souber que eu conheço a Giovana vai dar o maior rolo na operação. Eu preciso que você confie em mim, não contando nada para o Piquetão.”

“Mas você vai entregar tudo para a Giovana?” Perguntou Thaís.

“Também não. Vou propor a ela que tentemos ferrar com o Abobrinha sozinhos. O Piquetão só vai perceber quando tudo tiver terminado. É a minha única saída.”

“Tá bom, amigo. Eu não posso te ajudar em nada a não ser esconder a Giovana do pessoal. Por que você não pede ajuda ao Lino? Ele é muito inteligente nessa questão de informática, além do que não parece muito contente com o Piquetão e o Jessé mandando em todo mundo.”

Naquele mesmo dia Willi e Giovana foram ao encontro de Lino para armar o golpe contra o coronel Abobrinha.

Giovana deixou Lino entrar em sua casa, tendo acesso ao computador pessoal do coronel. Para um especialista como Lino foi fácil descobrir a senha. Não econtraram nada importante que pudesse ser usado contra o coronel.

Willi então teve um estalo: “Acho que estamos fazendo o caminho errado. Primeiro temos que descobrir o que é importante para o coronel, só então vamos atrás dos meios para destruí-lo.”

Giovana fixou os olhos em Willi: “Ele já ficou rico e pobre várias vezes na vida, já mandou matar amigos e mulheres, já foi suspeito de corrupção. Não liga para dinheiro, ética ou amizade. Só existe uma coisa que ele dá valor: o seu nome na história. Só fala nisso o tempo todo, como será visto no futuro após a sua morte.”

Agora foi a vez de Lino ter uma grande idéia: “Então não adianta descobrirmos escândalos ou esquemas criminosos, pois tudo isso o faria mais vistoso ainda, mesmo que por mal. O negócio então é apagá-lo da história, transformando a imagem dele na de um simples marionete falastrão.”

“Mas como? Quem tem poder suficiente para fazer isso?”, exclamou Giovana.

Para a qual Willi respondeu tranquilamente: “Eu! Desta vez o coronel mexeu com o cara errado. Como diria o Jessé, mexeu com um cara que não tem nada a perder!”

(continua)

Parte 5

Willi, Giovana e Lino ficaram sorrindo de prazer à frente das telas dos computadores na casa de Lino. Todas as manchetes dos jornais diziam a mesma coisa:

“Coronel Abobrinha inocentado de todas as acusações – descobriu-se um esquema de mais de 10 anos para incriminar um simples político do sertão nordestino”.

“Coitado do Coronel Abobrinha – depois de tantos anos foi descoberto que o coronel nunca havia feito nada”.

“Coronel Abobrinha pode voltar à sua vida calma no sertão nordestino – agora que foi inocentado, é esperado que o coronel Abobrinha saia do foco dos jornais e possa voltar com sua vida simples no sertão”.

“Coronel Abobrinha – um homem simples e do bem”.

Willi se levanta, vai em direção a Lino e dá um tapa amigável em seu braço. “Aí amigão, agora esse coronel vai ficar fulo da vida. Todo mundo agora tá achando que o cara é um só um velhinho de voz mansa.”

Lino olha para o amigo com ar também satisfeito. “Foi fácil mudar as manchetes eletrônicas dos principais jornais do país, mas é coisa que se faz uma vez só na vida. Agora todos vão mudar o seu sistema. Foi divertido enquanto durou.”

Giovana não queria estragar o momento, mas sua mente objetiva não conseguiu se furtar das consequencias. “Mas isso só vai durar um dia. Daqui a pouco todas as televisões vão desmentir as manchetes.”

“Mas o foco do desmentido será o ataque hacker, não o conteúdo das manchetes. Pode ficar tranquilia que, se tem alguma coisa que eu conheço neste mundo, é o poder das manchetes. Além disso, vai servir para desestabilizar o coronel”, respondeu Willi. “E tem mais! Acho que está na hora de colocar o Jessé nesta jogada. Não vamos perder a oportunidade de dar um direto depois do jab das manchetes.”

(continua)

Parte 6

A gangue toda estava reunida naquela madrugada, na frente da casa do coronel Abobrinha: Jessé, Willi, Giovana, Thaís, Lino e Lampião. Tudo seria simples e limpo. Giovana havia ligado para o seu marido, o coronel, e sabia que estava sozinho em casa, bêbado, tentando se recuperar dos golpes das manchetes.

Enquanto os outros se escondiam à beira do muro frontal, Giovana abriu a porta da frente. O coronel estava na porta, sóbrio, armado e acompanhado. “Sua puta! Você achou mesmo que podia reencontrar aquele malandro sem eu saber?” Giovana esperava ouvir pela enésima vez o discurso de homem traído quando, ao invés disso, ouviu o disparo da 12 do marido. Não conseguiu acreditar quando se viu voando para trás, com as vísceras se espalhando por toda a parte. Já estava morta quando caiu ao chão.

“Matem todos!”, gritou o coronel.

O grupo de amigos no muro da casa nem teve tempo de entender o que acontecera com Giovana quando duas granadas foram lançadas sobre eles. Lampião se jogou em cima delas. Até a sua indestrutibilidade tinha um limite. Com a cabeça destruída, o seu corpo permaneceu inerte no chão. Thaís e Lino foram atingidos várias vezes com tiros de pistolas. Não morreriam até chegar ao hospital, mas o sangramento era nojento, horrível e mortal.

Apenas Jessé, com seu treinamento militar, teve a cabeça de se jogar ao chão e rolar para um arbusto. De lá pôde fugir para uma mata ao lado.

Já Willi, transformado em um zumbi pela visão do fim de Giovana, escapou da morte apenas por uma sequencia totalmente improvável de eventos. Primeiro, nenhuma bala o acertara. Depois, ao ficar parado em frente ao muro, esperando a vinda da morte, um estilhaço do muro o acertou nos olhos. Instintivamente, tentou desviar do reboco quando tropeçou e caiu em um pequeno riacho que havia por ali. Só tomou consciência de si mesmo quando já estava a salvo, na companhia de Jessé, dezenas de metros água abaixo, protegidos pela mata fechada.

De lá puderam ver ainda o capitão Piquetão sendo executado, de joelhos, com um tiro na cabeça. Ouviram, ainda, os gritos do coronel Abobrinha:

“Esse capitãozinho de merda entregou vocês! Não aguentou a tortura! Fujam, seus desgraçados, fujam. Estão mortos de qualquer jeito, mas quero me divertir na caçada!”

“E esse foi o triste fim dos Motoqueiros do Sertão”, diriam as manchetes do outro dia.

(Será? Continua, algum dia, com as aventuras de Jessé Jemisson e Willinilton)

 
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