Feminismo, Bicicletas e Bibliotecas

© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: Bicicletas em Equilíbrio

FEMINISMO, BICICLETAS E BIBLIOTECAS
Fábio Magnani
[publicado originalmente em ]

No final de 2016 eu encomendei uns quinze livros usados que serviriam tanto como autopresente de Natal quanto para me fazerem companhia nas férias. Por alguma razão não chegaram em tempo. Eu tinha até desistido deles, quando, subitamente, começaram a aparecer magicamente pelo correio. Talvez estivessem esperando o momento certo. Vai saber.

Sempre que chega um livro eu percorro o mesmo ritual. Vejo quem fez a capa, bisbilhoto a vida do autor, leio sobre suas aventuras livrescas nos ‘agradecimentos’, e investigo os livros e websites que foram usados como referência. Se for um livro usado é mais divertido ainda. Passo um tempão tentando descobrir o significado dos carimbos, assinaturas, trechos marcados, dedicatórias e anotações. Depois, enquanto leio, pesquiso as fotos, outros livros indicados, músicas e vídeos. Viva a internet.

Ontem chegou ‘Wheels of Change: How Women Rode the Bicycle to Freedom (with a Few Flat Tires Along the Way)’ (‘Rodas da Mudança: Como as Mulheres Pedalaram para a Liberdade (com Alguns Pneus Furados no Caminho’, Sue Macy, 2011). O título aparentemente é um trocadilho com o famoso ‘The Wheels of Chance’ (‘Rodas da Fortuna’, H.G. Wells, 1896), também sobre ciclismo. A autora, Sue Macy, escreve principalmente sobre esporte e mulheres.

Sobre o livro, não é exatamente original, amplo ou acadêmico. Quase tudo que está ali pode ser encontrado nos clássicos ‘Bicycle: The History’ (David V. Herlihy, 2004) e ‘A Social History of the Bicycle: Its Early Life and Times in America’ (Robert A. Smith, 1972). Outra questão é que fala quase que apenas dos Estados Unidos, e praticamente só da última década do século XIX. Também não é um livro acadêmico, pois é baseado em anedotas e celebridades.

Feitas essas ressalvas, eu simplesmente adorei o livro.

Primeiro porque a Sue Macy enriqueceu muito os livros bicicletísticos acima com um terceiro especial sobre vestimenta, ‘A Perfect Fit: Clothes, Character, and the Promise of America’ (Jenna Weissman Joselit, 2002). Segundo porque ela ilustrou o texto com um monte de fontes primárias, com um monte de detalhes sobre mulheres e bicicletas: patentes, recortes de jornais, músicas, conselhos médicos, gírias, fotos clássicas, recomendações policiais, opiniões editoriais, bonecas de papel, anúncios comerciais, músicas, poesias, etc etc.

Tudo bem que o livro não é original, amplo ou acadêmico. É outra coisa. É uma homenagem ao feminismo e ao papel das bicicletas em um determinado momento da história.

Mesmo que seja uma homenagem e que não seja lá muito acadêmico, mesmo assim há bastante honestidade intelectual. Por exemplo, a autora mostra algumas feministas que eram contra as bicicletas. Isso é importante, pois hoje em dia há um certo movimento tentando obrigar o alinhamento feminismo/socialismo/novo urbanismo/localismo/vegetarianismo/ambientalismo/ciclismo. Tudo bem que haja uma articulação entre esses movimentos, com os quais tenho bastante afinidade, mas desde que não seja uma união ditatorial. Nenhuma vitória política compensa a violação da honestidade intelectual.

O livro comenta mais fortemente três aspectos das bicicletas que ajudaram na luta pelos direitos das mulheres: era uma prática esportiva que auxiliava na saúde, forçou a mudança nas vestimentas, e aumentou muito a mobilidade das mulheres. O livro aborda principalmente este último aspecto. Depois do final da ‘Era de Ouro’ das bicicletas (~1890-1900), os carros e as motocicletas tiraram a exclusividade das bicicletas na promoção da mobilidade das mulheres. Mesmo assim, as bicicletas continuam importantes.

Mas vamos aos detalhes que eu mais gostei.

O livro usado que recebi está ligado a três bibliotecas. Logo na terceira página tem um carimbo com a sua morada anterior, a Fountaindale Public Library Distric. Na parte final do livro, nas sugestões de leituras, há a recomendação do website da Lilly Library, que tem uma página dedicada aos livros de bicicleta que eles têm por lá. Que legal, eu nem sabia que as bibliotecas podiam organizar suas coleções assim, com tanto carinho e vida. Finalmente, na capa e na contracapa há duas mulheres lindas pedalando, a atriz Madge Lessing, em 1898, e a mensageira Julia Obear, em 1922. Essas duas fotos foram encontradas no Catálogo da Biblioteca do Congresso Americano
.
Outra coisa que eu não sabia é que no século XIX havia um grande comércio de partituras musicais, para que as pessoas pudessem tocar nas reuniões em suas casas. O livro comenta várias músicas bicicletísicas dessa época. Gostei muito da música ‘Salute my Bicycle!” (1895). Na letra feminista da música, a cantora fala como é andar com roupas próprias para o ciclismo, como os homens se oferecem para beijá-la como se fosse promíscua, perguntam se ela é um menino ou uma menina, a condenam por beber como um homem, e por aí vai. E a ciclista, toda elegante, só responde: “Cumprimente a minha bicicleta!”

Ao procurar um áudio, encontrei uma apresentação fantástica de 2016, de um grupo chamado Radio Days. Estou apaixonado. Uma imagem bem icônica do machismo, e da importância das bicicletas para o feminismo, é uma foto de Cambridge em 1897, mostrando um protesto contra a aceitação de mulheres na universidade. E o que colocaram como símbolo do que mais temiam? O enforcamento de uma mulher andando de bicicleta! Oh, essas bruxas…

É isso. Recomendo muito esse livro feito com todo cuidado, bem pesquisado e cheio de ilustrações. Certo que exagera um pouquinho, mas não tem problema se for visto como uma homenagem, como uma inspiração na luta pelos direitos das mulheres e pelo lugar das bicicletas na vida urbana.

Era para ser um presente de Natal, acabou sendo de Páscoa. Não tem problema. Adorei a companhia que tive neste feriado.

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