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Livro: Bicicletas em Equilíbrio
Fábio Magnani
[publicado originalmente em agosto de 2012]
Pode até parecer que estou deixando o motoqueirismo de lado, já que ultimamente só tenho escrito sobre as bicicletas. Nada disso. É que estou preparando o material para a disciplina Estudos da Bicicleta. As duas disciplinas de moto – Engenharia da Motocicleta e Estudos da Motocicleta – já estão bem criadas.
Meu re-interesse pelas bicicletas nasceu do estudo das motos. As duas máquinas têm a mesma história inicial, a mesma dinâmica, a mesma fragilidade no trânsito e a mesma discriminação social. Mas há diferenças. O mundo das motos tem maior importância econômica. Isso porque as motos vendem mais (R$ 12bi no Brasil, ao contrário dos R$ 1,5bi das bicicletas) e também porque movimentam mais produtos e documentos pelas ruas das cidades.
A organização política também é diferente. Quase toda a mobilização entre os motoqueiros se dá, por bem ou por mal, nos sindicatos dos motoboys. Já os ciclistas se organizam em pequenas associações de cicloativistas, formadas principalmente por pessoal da classe média. Os cicloativistas são diferentes dos sindicalistas de moto porque, além da política, também agem na construção de um movimento cultural que propõe que os ciclistas sejam vistos não apenas como vítimas, mas também como uma solução inteligente, saudável e chic para as cidades.
Portanto, as diferenças entre o movimento dos bicicleteiros e dos motoqueiros não estão em nenhuma essência, mas apenas nas circunstâncias. Nada impede que as bicicletas tenham maior participação econômica e que sindicatos apareçam para representar seus trabalhadores. Também seria bom que os motoqueiros conseguissem olhar um pouco mais para a valorização de sua própria imagem, se lançando como uma boa novidade para as cidades, e não como um problema inevitável.
Por essas e outras penso que ao estudar as bicicletas eu também estou estudando as motos. Ao estudar as motos, estou estudando as bicicletas. Não consigo ver uma linha divisória real entre todos os veículos pessoais de mobilidade urbana: motos, bicicletas e cadeiras de roda. Continuarei misturando tudo.
Revolução do Pedal
Bem, todo esse blábláblá foi para falar de um livro legal de bicicletismo que acabei de ler: Pedaling Revolution (Jeff Mapes, 2009). É dividido em nove capítulos. O primeiro conta como os ciclistas americanos criaram um movimento político. Além dos cicloativistas grassroots, o movimento teve uma grande contribuição dos legisladores, que conseguiram alocar uma boa verba para infraestrutura ciclística no ISTEA, que foi um programa dos EUA de investimento em transporte. Isso reforça um pouco a ideia de que a guerra por um trânsito melhor deve ser travada em todos os fronts: manifestações políticas, festas culturais, pesquisas acadêmicas, construção de novas leis e implementação de programas governamentais. Embora menos glamorosas, grandes vitórias são alcançadas também no congresso e no governo.
Nessa primeira parte, o livro já introduz uma briga interna do ciclismo que vai permear todo o livro. Alguns cicloativistas defendem o “ciclismo veicular”, no qual as bicicletas têm exatamente os mesmos direitos e deveres que os carros. Os defensores desse estilo de ciclismo são totalmente contra as ciclovias, nas quais os ciclistas seriam tratados como semi-cidadãos. Outra parte do movimento político critica o “ciclismo veicular” porque esse só permitiria que pessoas saudáveis andassem de bicicleta, já que o fluxo seria sempre no meio de todos os carros.
Há muita discussão se as ciclovias aumentam ou diminuem os acidentes e se os capacetes são ou não são necessários. Aliás, na Holanda eles não usam capacetes. Mas parece um consenso que as ciclovias atraem novos ciclistas, principalmente as crianças. O problema é que, a partir do momento que existe uma ciclovia, na prática o ciclista deixa de ter o pleno direito de andar nas ruas. Assunto complicado…
O livro também discute porque a partir dos anos 70 começou a haver um maior interesse pelas bicicletas: aumento do preço da gasolina, efeitos climáticos da poluição dos carros, preocupação com a saúde e trânsito congestionado. Mas, mesmo assim, cada novo boom de vendas atinge apenas um pequeno nicho de consumidores. Então as fábricas, para sobreviverem em curto prazo, ficam apenas lançando novidades cosméticas para esse mesmo grupinho. Isso é insustentável, pois uma hora esse grupo de pessoas resolve seguir outra modinha. O importante é aumentar o número de ciclistas, o que se faz com produtos eficientes, baratos e resistentes.
O segundo capítulo fala sobre cidades europeias com ciclismo mais consolidado: Amsterdã, Copenhague, Londres e Paris. Ao contrário dos EUA, ninguém em Amsterdã fica se gabando por ser ciclista. Lá isso é normal, pois as bicicletas são simplesmente mais práticas que os carros. Essa diferença entre os ciclistas holandeses e os americanos escancara um outro conflito entre os ciclistas. Alguns querem mais infraestrutura para lazer, outros para o commuting (transporte de ida e volta para o trabalho).
Ainda na Europa, o livro fala sobre Paris, que, embora não seja tão famosa em termos ciclísticos, impressiona pelo número de bicicletas e pelo grande investimento em infraestrutura. Londres está realizando uma grande reforma de taxas, de forma que vai ficar muito caro entrar de carro no centro da cidade. Outra reforma que fazem há anos na Europa é a pacificação das ruas, com modificações que dificultam o tráfego dos carros. De forma indireta, essas ações fortalecem o uso das bicicletas.
Enquanto isso, por aqui, os governantes abaixam o valor do IPI dos carros e constroem viadutos para atolar mais ainda os centros urbanos com automóveis. Isso sem contar os novos condomínios do tipo “vila dos alfas” que vêm sendo construídos nos subúrbios das cidades. Já foi provado nos EUA que esse tipo de urbanismo não dá certo, pois atola as avenidas de carros, destrói a cultura das cidades e cria um monte de suburbanos neuróticos sem rumo na vida. Mas parece que estamos destinados a repetir todos os erros já cometidos em todos outros lugares e épocas.
O terceiro capítulo é sobre a construção de uma cultura de ciclismo urbano. O autor fala sobre a Massa Crítica, oficinas coletivas e comboios de crianças para escola. Nesse ponto, ele destaca a dificuldade que os ativistas culturais têm em atingir o “ciclista invisível”, aquele cidadão mais pobre que usa a bicicleta no dia-a-dia. Eu acho que uma forma que pode ser tentada para resolver isso é a criação de oficinas coletivas que sejam uma mistura de estação de serviço e de espaço cultural. As crianças aprenderiam uma profissão, os artistas fariam suas obras, os commuters parariam para tomar uma água gelada e os ativistas se reuniriam. Dessa grande mistura nasceria um grande movimento positivo pelo ciclismo, misturando completamente as fronteiras entre classes sociais, visões políticas, idades, gêneros e habilidades.
Outro ponto tocado nesse terceiro capítulo é o conflito básico dentro da Massa Crítica. Alguns querem que a Massa Crítica seja uma celebração ao ciclismo. Outros acham que deve ser uma demonstração política agressiva contra o abandono por parte da sociedade. A Massa Crítica deveria ser uma experiência de ciclismo e de mudança da sociedade, mas muitas vezes acaba sendo um reduto para rebeldes, o que aliena boa parte dos ciclistas. Segundo ele, essa cisão está criando movimentos paralelos em várias cidades americanas. Por exemplo, há o Midnigth Ridazz, que preza a experiência do ciclismo, não a confrontação. Aqui em Recife parece que também há essas duas visões na Massa Crítica. O legal é que aparentemente essa diversidade daqui não traz nenhuma divisão. Muito pelo contrário, a confluência dessas visões e interesses fabrica um movimento muito mais rico e forte.
Em algum lugar do livro ele conta como nasceu o termo Massa Crítica: foi cunhado quando o pessoal de São Francisco, que fazia o “Commute Clot”, assistiu ao documentário “Return of the Scorcher”. A ideia está lá no filme, aos seis minutos. Para atravessar a rua em segurança, os chineses esperam até que se forme uma massa crítica de ciclistas, que então invade a rua, forçando a passagem em meio aos carros. A segurança está no número.
Esse documentário tem uma outra parte que me impressionou bastante. Aos 24 minutos ele comenta em como nós nos distanciamos das nossas experiências da infância. A bicicleta é algo tão presente quando somos pequenos, representando a liberdade pessoal, a conquista dos limites físicos e o deleite de um prazer essencial do ser humano que é se movimentar. Por alguma razão, enquanto crescemos, deixamos de lado esses valores. Simbolicamente, também deixamos nossa bicicleta de lado. Triste.
Os capítulos 4, 5, 6 e 7 contam experiências legais nos EUA. Primeiro fala de Davis, que é uma espécie de paraíso dos ciclistas nos EUA. Mas para conseguir isso eles são extremamente conservadores, o que aumenta o preço das casas, força os jovens a mudarem para outras cidades, obriga os novos trabalhadores a morarem longe e atrai pessoas que moram ali, mas trabalham em outros lugares. Não parece ser algo que dê para reproduzir em outros lugares maiores e mais vivos. Depois o livro fala da história do ciclismo em Portland, Nova Iorque e Chicago. Interessante que são cidades de tamanhos diferentes, que servem como exemplo para várias experiências que podíamos tentar por aqui.
Depois vem uma parte mais séria: acidentes. Muitas pessoas dizem que não andam de bicicleta porque não é seguro. Por isso, compreender os acidentes é fundamental. Primeiro, é preciso quantificar os riscos das bicicletas. De acordo com algumas estimativas, as bicicletas são mais seguras que os carros. Também é preciso descobrir as reais causas dos acidentes. Parece que os acidentes são causados principalmente por carros que fazem conversões à direita. Outros acidentes são causados por portas abertas repentinamente e ciclistas que sobem e descem das calçadas sem olhar os carros e os pedestres. Um outro problema é o uso de álcool por parte de alguns ciclistas. Mas dá para perceber que a causa de fundo dos acidentes é o desrespeito dos motoristas pelas classes mais baixas, uma vez que muitas das pessoas mortas em acidentes com bicicletas são socialmente marginalizadas (pobres, sem-tetos ou imigrantes).
Embora não haja muito consenso, já que não há muitos estudos pelo mundo, pelo menos a maioria concorda em um ponto: é preciso haver mais educação nas escolas. Educação para os futuros ciclistas, sim, mas principalmente para os futuros motoristas, políticos e urbanistas.
A questão do capacete é outra briga. Certo que ele diminui em 37% os riscos de morte, desde que seja bem feito (leia: capacete de moto). É muito discutível se os capacetes de bicicleta funcionam (eles dão prioridade à leveza e ao conforto térmico). Alguns estudos americanos dizem que os carros passam mais perto dos bicicleteiros que estão com capacete. Aqui no Brasil, ouvi bicicleteiros dizerem que acham o contrário, pois o motorista pensa que o bicicleteiro de capacete é de classe média, por isso têm mais cuidado.
Sinto isso na moto. Quando você está com uma moto um pouco mais cara, os carros te respeitam. Se estiver de moto barata, eles jogam o carro em cima. Teve um experimento nos EUA em que eles faziam um carrão bacana não largar quando o sinal abria, daí mediam quanto tempo demorava para o cara de trás buzinar. Depois faziam o experimento com um carro baratinho. O tempo para o cara de trás reclamar era muito menor e a buzina bem mais forte! Isso ilustra que muitos dos conflitos no trânsito reproduzem os conflitos entre as classes sociais. “Moto é coisa de pobre. Bicicleta é coisa de pobre. Andar a pé é coisa de pobre. Pobre não tem direito de usar a rua!”
Voltando aos capacetes, já li um médico dizendo que o capacete pode até machucar mais ainda, pois ele prende no chão e torce o pescoço em alguns tipos de queda. Outros estudos dizem que no caso das crianças, que não têm tanta coordenação motora e responsabilidade, o capacete ajuda. Nos esportes radicais o capacete é importante, mas daí eles usam capacete de moto. Ah… na Europa, onde tem muita bicicleta, eles não usam capacete. Confuso, né? Mas, olhando assim por cima, tenho pelo menos uma opinião formada: criança deve usar capacete.
A mente é o principal equipamento de segurança. Qualquer equipamento que cause calor ou cansaço (luva, capacete, joelheira, blusa comprida, colete etc.) diminui a capacidade mental e a agilidade física. Por isso, embora os “equipamentos de segurança” possam em alguns casos diminuir as consequencias dos acidentes, eles certamente aumentam a probabilidade dos acidentes ocorrerem. No caso das motos, o ganho do uso do capacete (37%) aparentemente compensa o maior número de acidentes causados pela diminuição da visibilidade, audição, concentração e agilidade. No caso das bicicletas eu tenho minhas dúvidas, principalmente em climas quentes. Por isso, é bom pensar muito bem antes de usá-los. Para piorar, o uso de “equipamentos de segurança” faz o ciclista se achar mais protegido, fazendo-o tomar mais riscos que tomaria se estivesse “desprotegido”.
Por quilometragem, as bicicletas são 15 vezes mais perigosas que os carros (embora esse número possa variar bastante, pois não há muitos dados sobre uso e acidentes com bicicletas). Por hora, a probabilidade de você morrer em um carro é duas vezes maior do que em uma bicicleta. Difícil estimativa, mas, pensando bem, quantas pessoas você conhece que já se feriram seriamente em acidentes de carro, e quantas em acidentes de bicicleta?
Assim como os crimes contra negros, crianças e mulheres não eram visto pela sociedade como “crimes de verdade”, é difícil convencer a sociedade a aceitar a criminalização de quem mata um pedestre ou um ciclista por desatenção. Em casos de acidentes que vão para julgamento, o júri tende a se identificar com o motorista do carro. Eles não conseguem se colocar na pele do ciclista. As pessoas tendem a achar que o ciclismo é inerentemente perigoso. Se o ciclista está andando nas ruas, então ele está consciente do risco. Os motoristas acham que as crianças, pedestres e ciclistas têm a obrigação de prestarem a atenção neles.
Algumas pessoas dizem que se uma pessoa não anda de bicicleta é porque não quer. Segundo elas, o governo não deve fazer nada pelo ciclismo, pois não é babá de ninguém. Mas, segundo esse argumento, o governo também não deveria cuidar da água, fazer estradas para os carros, dificultar a venda de cigarros e por aí vai.
O penúltimo capítulo é sobre saúde. Discute o ciclismo como uma forma de atividade física em que a pessoa nem percebe que está fazendo esporte. Andar de bicicleta diminui as doenças e o sobrepeso. Mas nem tudo é uma maravilha. Há uma discussão se um ciclista respira mais poluição (por causa da respiração acelerada no meio dos carros) ou menos (porque anda em lugares com mais vento) do que um motorista de carro. A resposta é difícil, mas até que achem a resposta muitos ciclistas preferem andar pelas ruas menos movimentadas.
O último capítulo é o mais importante, pois fala de algumas estratégias para trazer as crianças de volta às bicicletas. O ambiente em que uma pessoa vive influencia muito o modo como ela vive. Se a criança viver em uma cidade com bicicletas, ela vai andar de bicicleta. É preciso uma mudança cultural para as pessoas escolherem esse modo de vida mais saudável. Saudável do ponto de vista social, psicológico e físico. Para dar certo, isso tem que ser retomado com as crianças, com ciclovias nos caminhos das escolas, cursos para fuçarem em suas máquinas, passeios para explorarem cidade, filmes com heróis ciclistas que sirvam como exemplo e segurança para desfrutarem ao máximo a sua mobilidade.
O livro também fala de muitos outros assuntos. Não há respostas definitivas. Além disso, não é possível transportar experiências de outros países para cá. Mas podemos aprender com eles. Não precisamos fazer tudo de uma vez. Vamos experimentar. Um passeio ciclístico aqui, uma oficina comunitária ali, um filme sobre ciclistas acolá.
Conclusão
Tudo bem, estamos fazendo tudo isso para integrar as bicicletas ao trânsito de Recife. O problema é que está muito devagar. Não temos tempo a perder. A cada dia que deixamos de dar o direito de andar de bicicleta para uma criança, corremos o risco de criarmos mais um motorista gordo que ficará preso em seu carro no trânsito do futuro.
Para fechar o texto como comecei, com as motos, também espero que os motoqueiros aprendam com os ciclistas. Eles não têm sindicatos de trabalhadores, mas têm uma consciência muito forte do seu valor para a sociedade. Além disso, os ciclistas sabem que um dos caminhos mais diretos para a vitória é a produção cultural. Filmes, livros, websites, conferências, congressos, espaços culturais, passeios, festas, feiras e tudo o mais que promova a bicicleta como um meio saudável, inteligente e chic. A moto também é tudo isso, mas precisa ser mais valorizada pelos próprios motoqueiros. Mas precisa ser uma valorização do motoqueiro comum, que anda todo dia nas cidades, não uma cópia mal feita de motoqueiros de outros países.
Sinto muito a falta de livros que falem sobre a organização política e os movimentos de valorização cultural dos motoqueiros comuns. Enquanto não criamos esse material teórico, vamos beber da experiência dos ciclistas, que são paradoxalmente nossos genitores, nossos contemporâneos e nosso futuro.
Os cicloativistas também precisam aprender com o movimento dos motoboys. No caso das bicicletas, ainda há uma grande distância entre os ativistas da classe média e os “ciclistas invisíveis” das classes mais baixas.
A solução, como sempre, é a democracia, a conversa, a participação e a aposta na multiplicidade das visões. Que os motoqueiros aprendam com os bicicleteiros. Que os bicicleteiros aprendam com os motoqueiros. Que os urbanistas aprendam com quem percorre cada centímetro das cidades. Que os políticos aprendam com os cidadãos. Que as nossas cidades sejam mais orgânicas, inteligentes, saudáveis e amigáveis. Que venha o novo.