Livro: De Motoca na Estrada
Fábio Magnani
[publicado originalmente em junho de 2010]
5 meses antes da partida ao Atacama…
Tenho pouca, bem pouca, experiência no deserto. Um pouco vem das tardes em que passava caminhando nas dunas da Joaquina nos 10 anos em que morei em Florianópolis. Naquela época de estudante minha principal diversão era andar de bicicleta por toda a ilha ou percorrer todos os costões que dividem as praias. Outra experiência mais recente vem das minhas andanças de moto pelo sertão nordestino.
As dunas são pequenas e o sertão não tão deserto assim. Mas a minha imaginação complementa tudo isso. Só pode ser essa a explicação, porque mesmo sem a experiência tenho um monte de imagens do deserto em minha mente. Algumas são criações fantasiosas frutos da minha expectativa do Atacama, outras devem vir dos livros e filmes.
Foi a minha geração de 69 que começou a viver a transição entre os adolescentes que vagavam soltos pelo mundo e os de hoje que crescem dentro dos condomínios. Eu vim de uma cidade pequena, mas que não tinha cultura rural a não ser para quem trabalhasse diretamente no campo. Cheguei a brincar de pião e búrica. Vagava a cidade toda de bicicleta. Mas também brincava de video game, assistia video cassete, programava computadores e passava tardes e tardes na piscina do clube da cidade. Bibliotecas, videogames, computadores e vídeo, todos conspiram para a diminuição do que chamam de experiência de vida. Mas por outro lado estimulam a imaginação. Quem é mais pobre, o menino que não nadou em um rio ou um que nunca leu um livro? Os dois são miseráveis na mesma medida. Quem é mais rico, o homem que caminha por todo o mundo ou aquele que leva o mundo todo em sua cabeça literária? Os dois são reis.
Mas deixando de lado o mundo da experiência direta – que é sempre tema deste blog de motociclismo – e seguindo para o mundo da imaginação, uma das primeiras imagens de que me lembro do deserto é do filme “O Ladrão de Bagdá”. Nesse filme um aventureiro esperto, destemido e charmoso percorria o deserto em busca do amor e da fortuna. Também me lembro de como ficava muito irritado na semana santa, quando nos obrigavam a assistir àqueles filmes biblícos. Invariavelmente se passavam no deserto. Alguns eu até gostava, como Sansão e Dalila. Havia também os faroestes, que na minha visão eram de três tipos: rurais, urbanos e de cavalaria. Não gosto até hoje dos urbanos ou de cavalaria, cheios de personagens e intrigas. Gostava mesmo daqueles em que o filme todo se passava com poucos pistoleiros solitários percorrendo a imensidão desértica do velho oeste. No máximo havia algumas cenas nas cidades, mas só para os eventuais tiroteiros. Finalmente, também assistia aos filmes de guerra, sempre envolvendo Rommel de uma forma ou outra.
Não consigo me lembrar de filmes específicos que assistia na década de 70, só o gênero mesmo. Já na década de 80 fica mais fácil. Por exemplo, as aventuras de Indiana Jones, perseguindo tanques no deserto em cima do seu cavalo, sem nunca derrubar o chapéu. Acho que até hoje é o meu filme preferido. Tem também o “O Cavaleiro Solitário”, com Clint Eastwood. Nem é muito no deserto, mas é um faroeste que me fazia lembrar dos antigos. Alguns filmes do Clint Eastwood poderiam ser enquadrados como urbanos, como “Por Um Punhado de Dólares”, mas a figura do personagem principal é tão solitária que é como se estivesse o tempo todo sozinho.
Mais para o fim da década vêm o relançamento de “Lawrence da Arábia” (1989) e as grandes viagens no deserto em “The Doors” (1991). Já era fã da música do grupo e de parte da biografia de Jim Morrison, principalmente quanto à coragem artística, na mistura do rock com poesia e na entrega total em suas performances. Mas foi o filme que consolidou em minha mente a associação entre a liberdade e a independência mentais com o deserto. Assisti o filme na pré-estréia, tendo que lutar pelo ingresso. Foi uma experiência única, de extrema força: a união da música, da vida do artista e das imagens do deserto.
Essa ida ao deserto em busca de sabedoria, liberdade e identidade povoa toda a história da humanidade. Só como exemplo, alguns dos principais símbolos religiosos do mundo fizeram uma peregrinação ao deserto antes de voltarem para liderar o seu povo: Moisés, Jesus e Maomé.
Já a minha relação com “Lawrence da Arábia” não tem um ponto marcante e definido, embora seja bem mais impactante. Devo ter assistido ao filme original várias vezes na minha infância. No relançamento, houve todo aquele auê cult, o que me causou um certo afastamento. Depois comecei a ler o livro de T. E. Lawrence, sua biografia, aprendi sobre o seu amor às motos e a sua completa adoração ao deserto. Quando me vi, estava totalmente fascinado também. Dizem que T. E. Lawrence era homosexual. Esse assunto não me importaria nem um pouco se não fosse sempre usado como argumento para detratá-lo. Só queria dizer que os homens não são medidos pela sua preferência sexual, mas sim pelos seus atos. Mas voltando ao filme “Lawrence da Arábia”, as cenas no deserto, com a música de Maurice Jarre, fazem com que qualquer um fique apaixonado por aqueles grandes espaços vazios.
Como gosto de filmes de aventura, há vários outros com cenas de deserto: “Duna”, “Guerra nas Estrelas”, “Mad Max”, ”Vôo da Fênix”, ”Tempestade de Fogo” e ”O Retorno da Múmia”.
Não dá para deixar de lado todas cenas do Rally Dakar. Vôos em dunas, quebras na areia, ajuda entre os motociclistas, cansaço ao final do dia, júbilo ao final da prova. Um documentário que eu gostei muito foi “Race to Dakar”, em que Charles Boorman – o mesmo do Long Way Round – mostra todas as etapas do Dakar, desde a preparação até a reta final. Devo assumir que embora ache as imagens do Dakar impressionantes, não costumo seguir a competição. Aqui no Brasil temos o Rally dos Sertões, que também enche os olhos com imagens áridas.
Dois filmes apresentam o deserto de uma forma que eu acho que vou ver no Atacama. “Os Três Reis”, filmado no Arizona, Califórnia e México, e “A Quantum of Solace”, último filme do James Bond, filmado no próprio Atacama. Normalmente os filmes sobre o deserto procuram mostrar muitas dunas; são filmados logo pela manhã de forma a pegar as sombras que dão a sensação de profundidade e para diminuir a saturação causada por uma iluminação muito forte. Mas os dois filmes que eu comentei mostram terrenos mais planos e duros, com uma iluminação bastante forte que quase elimina a coloração. Acho que vai ser essa sensação de espaço amplo e de muita luz branca que vamos viver no Atacama.
Já tenho a minha bagagem de imagens. Mas só estando lá mesmo para sentir o impacto na nossa vida que será provocado pelo silêncio, pela ausência de vida, pela grandeza do espaço vazio, pelo céu sem fim, pelo calor estorricante e pela luz que guia e cega. Que venha o Atacama.
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Apresentação. A Viagem ao Atacama foi realizada em torno de janeiro de 2010. Durante 38 dias, quatro amigos – Fábio, Renata, Wagner e Geraldinho – percorreram cerca de 15.000 km em suas motos. Com saída e chegada em Pernambuco, passaram por grande parte do Brasil e conheceram a Argentina e o Chile. A história toda começa em meados de 2008 – lá no início da preparação -, mas não tem tempo para acabar, pois os reflexos continuam aparecendo a cada dia que passa. Planejamento, amizade, trabalho em time, resolução de conflitos, natureza, estrada, crescimento pessoal, aprendizado e amor pelas motocicletas. A viagem é contada em três grandes séries: Planejamento (textos escritos antes da partida), Diário da Viagem (relatos publicados durante a viagem) e Crônicas do Atacama (pós-escritos, da qual faz parte este texto). Nunca é demais dizer que esta seção não tem fim programado. Se gostar,
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