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Livro: Motoqueiros Famosos
Fábio Magnani
[publicado originalmente em agosto de 2013]
Lois Pryce é uma motoqueira que já rodou sozinha boa parte do mundo. Primeiro foi do Alaska ao Ushuaia (2003) e depois de Londres até a Cidade do Cabo (2006). Essas aventuras foram contadas em seus dois livros. Um deles, Lois on the Loose, eu já tinha comentado rapidamente em um texto sobre livros de mulheres motociclistas. Então vamos direto ao segundo, Red Tape and White Knuckles, que acabei de ler esses dias.
Explicando um pouco o título, “Red Tape” é uma expressão em inglês usada para a burocracia. Não uma burocracia normal, se é que isso existe, mas sim daquelas bem ferrenhas, irracionais e apegadas às normas. Tipo a que se encontra nas fronteiras entre os países. Já a expressão “White Knuckles”, que literalmente significa juntas brancas, é usada para representar momentos de grande tensão, daqueles em que você cerra tanto o punho até que o sangue todo se esvaia. Muito apropriado para certos momentos tensos em cima de uma moto – na lama, na areia, e principalmente nas cidades.
A autora do livro, Lois Pryce, tem um website que conta os detalhes das suas viagens e que tem um monte de fotos bem legais, inclusive dessas duas aventuras que estão nos livros. Tem até uma viagem que ela fez no Brasil, mas que me deu a impressão de ter sido algo para ganhar uma graninha. Outra curiosidade sobre a Lois Pryce é que ela é casada com o Austin Vince, ele também um grande motoqueiro aventureiro, famoso pelas suas voltas ao redor do mundo: Mondo Enduro e Terra Circa.
Embora a viagem de Londres à Cidade do Cabo tenha tido uma parte na Europa, a aventura mesmo, e o livro também, se passam praticamente só na África – fato esse que me fez escolher esse livro em particular entre os vários outros que estão lá na minha biblioteca esperando que eu tenha um tempo. A verdade é que atualmente estou bastante interessado nos países que têm muitas motos, que se concentram principalmente na Ásia e na África. Nesse último continente, os países que mais me chamam a atenção são a Nigéria, África do Sul, Etiópia, Egito, Congo, Tanzânia, Quênia, Sudão, Marrocos, Argélia, Uganda, Gana, Moçambique e Angola. Principalmente a Nigéria, que tem a maior frota de motos desses países. Pena que a Lois Pryce passou muito rápido por lá, praticamente tirando só uma casquinha no interior, e por isso não pôde falar muito sobre o ambiente motoqueirístico. No entanto, na minha suprema ignorância, tenho a esperança de que a descrição que ela fez dos países pelos quais passou me permitiram entender um pouco como são as coisas por lá.
Mas é certo que aprendi pelo menos uma ou duas coisas sobre a África. Primeiro, que a África pode ser dividida em duas grandes partes: acima do deserto do Saara e abaixo do Saara. A parte de cima é muçulmana e de clima seco. A de baixo é repleta de povos, florestas e muita chuva. Do ponto de vista do motoqueirísmo físico, a parte de cima é de areia e a parte de baixo é de lama. Outra imagem interessante aparece quando se olha para no mapa do desenvolvimento humano dessa região. Os países mais ao norte e os mais ao sul são até razoáveis. Já os países da região central são bem problemáticos, com fome, doenças e guerras.
Voltemos ao livro. Lois Pryce saiu de Londres em outubro de 2006, em uma moto trail 250cc que atingia velocidade máxima de 95 km/h. Os primeiros capítulos são sobre a preparação e depois sobre a França, mas nada de novo sob o sol. Deu para perceber, no entanto, já nas primeiras páginas, que ela amadureceu bastante a escrita entre as duas viagens. No primeiro livro havia aquela obrigação inglesa de fazer uma piada a cada parágrafo. O que no começo é até engraçadinho, tipo um stand-up, mas depois começa a encher o saco. No segundo livro, esse humor obrigatório evoluiu para uma escrita mais autêntica, com uma ótima mistura de humor e drama. Legal.
Como eu estava dizendo, a aventura começou mesmo na viagem de barco para a Tunísia, onde a autora sentiu pela primeira vez como seria uma mulher, branca, não-crente, motoqueira e sem companhia, rodando pela África. Todos os olhos se viravam para ela, em uma mistura de reprovação por ousar fazer algo tão masculino e de preocupação por se arriscar em uma aventura tão perigosa. Afinal, na África não é tão difícil assim morrer desidratado no deserto, ou ser enterrado vivo em uma avalanche de lama durante uma chuva torrencial, ou ser atacado por uma horda de mercenários, ou ainda ser mandado aos ares por uma mina terrestre. Tudo isso passou pela cabeça dela, claro, mas assim que chegou à Tunísia ela foi se tranquilizando, principalmente porque, antes de pegar a estrada, ela passou uns dias se aclimatando junto com uma equipe de rally, com quem pôde treinar a pilotagem na areia e também se isolar temporariamente daquela cultura tão diferente para ela.
A Argélia, o segundo país africano por onde passou, foi um grande desafio, tanto pelo ambiente militarizado quanto pelas grandes dunas de areia. Sorte que ela foi obrigada pelos militares a viajar acompanhando um carro, o que deu certo conforto, embora tenha tirado também a aventura. O Níger já mostrou um pouco mais da anarquia africana, com seus contrabandistas de Marlboro e ex-guerrilheiros Tuaregues.
Daí veio a África Sub-Saariana, com seus povos mais alegres, seus países mais corruptos e um clima progressivamente mais úmido. Em Camarões ela entrou em contato com a África como imaginamos. Isso poderia já ter acontecido na Nigéria, só que ela passou muito rápido por lá. A rotina, então, passou a ser estradas esburacadas, cidades caóticas, comércio desregulamentado e trânsito maluco. Deve ser algo parecido com o que vivemos no dia a dia aqui no Recife.
Ao chegar aos dois Congos a coisa começou a ficar feia, pois ali há uma série de milícias sem controle algum. Afinal, o que pode haver de mais perigoso do que soldados que andam armados, bêbados e sem hierarquia de comando? Para Lois Pryce, os Congos representaram momentos de muito medo e de privação de liberdade.
Angola deveria ter sido um país legal, longe da violência dos dois países anteriores (com exceção das minas terrestres). O problema é que deram o visto para ela com a condição que cruzasse os 1.900 km em apenas cinco dias. Parece fácil, mas fica complicado quando você pensa que as estradas eram de lama, que chovia o tempo todo, e que os acostamentos tinham explosivos. Ah… é bom lembrar que a moto fazia no máximo 95 km/h. Mas a Lois Pryce conseguiu, até com alguns minutos de sobra.
Chegando na Namíbia, uma velha colônia alemã, veio o grande choque cultural: sinais de trânsito, asfalto, supermercados, banheiros, chuveiros, ruas com nome, numeração nas casas, água encanada, energia elétrica e telefone. Tudo isso poderia até parecer legal, principalmente para alguém que viveu meses sem poder escolher o que comer, ou sem saber onde dormiria à noite. Mas, depois de tanta liberdade, a ordem não trouxe alívio, trouxe angústia: regras, regras e mais regras.
No fim, Lois Pryce aprendeu que os pequenos incômodos da vida, como não ter água para tomar banho, ou não poder escolher entre 100 diferentes marcas de biscoito, são muito menores do que o martírio de viver em um lugar artificial, um lugar onde a maior parte das leis não está ali para nos proteger, mas sim para nos controlar. Acho que é por isso que viajamos, seja no mundo físico ou no mundo livros. Viajamos para aprender a curtir o que realmente importa e para perceber que certas coisas que aceitamos como normais são na realidade as próprias grades da nossa prisão.