The Bikeriders


© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: Motoqueiros Famosos

THE BIKERIDERS
Fábio Magnani
[publicado originalmente em janeiro de 2017]

No início de 2011 eu estava comemorando o centésimo quinquagésimo livro de moto da minha biblioteca. Hoje em dia ela tem mais de trezentos livros de moto; quase cento e cinquenta de biciclet; cerca de uma centena sobre a vida acadêmica, incluindo aí ficção, escrita, política e gestão; duas centenas de livros técnicos e acadêmicos que dão apoio direto ao estudo das duas rodas (e.g., motores, mobilidade, urbanismo, geografia, economia); uns trezentos de literatura clássica e contemporânea; e, além desses, mais uns seiscentos sobre tudo o que há para saber nesse mundo. Tenho uma página em que mantenho essa lista completa, menos os de literatura.

Bem, o tal centésimo quinquagésimo livro de moto era um livro de fotografias chamado ‘The Bikeriders’ (1ed: 1968, 2ed: 2003), do Danny Lyon.

Interessante que, embora esse tenha sido um livro que eu sempre tenha achado importante e bonito, a verdade é que só agora consegui acabar a leitura.

Ele pode ser dividido em três partes.

Claro que a parte mais importante é a que tem as fotos. São 72 imagens, cada uma em uma página. Dessas, 15 em P&B e 14 em cores apareceram só na segunda edição do livro (2003), depois de 35 anos de tidas como perdidas. As fotos mostram grupos na estrada, corridas de ‘flat track’, bares, manchetes de jornais, funerais, manutenção, festas, garotas e, principalmente, os tais ‘bikeriders’.

A segunda parte do livro é formada por 17 entrevistas, em 36 páginas. São diálogos transcritos diretamente do que era falado, sem qualquer condução ou edição. Os ‘bikeriders’ falam sobre a vida no exército, construção de motos, organização de eventos, corridas, encontros com outros grupos, piqueniques, brigas, violência contra as mulheres, perseguições policiais, ciúmes, suicídios, acidentes e hospitais.

Muitas facetas de uma comunidade única, quase desconhecida na época, sem qualquer tipo de julgamento moralista por parte do autor.

Por fim, gostei muito do material que acompanha o livro, como os textos nas orelhas e na contracapa, uma pequena biografia do Danny Lyon na última página e, principalmente, os dois prefácios (1968 e 2013) em que ele conta como foi o projeto original e depois a construção da segunda edição, inclusive com a busca às fotos perdidas. Um pouco triste é quando ele conta que depois do projeto ele perdeu o contato com os motoqueiros, cujo grupo foi destruído por brigas pelo poder e até por execuções covardes.

Vamos ao projeto.

Em 1963, Danny Lyon, com apenas 21 anos de idade, estava de volta de uma temporada no sul em que havia convivido com o movimento de luta pelos direitos civis. Incentivado por um mentor que percebeu o seu talento para o realismo fotográfico, Danny começou a tirar fotos dos clubes de motoqueiros de Chicago, principalmente os ‘Outlaws’ – grupo no qual ingressaria logo depois. Foram cinco anos, desde as primeiras fotos até a publicação do livro, durante os quais o jovem Danny rodava com o grupo, sempre carregando na sua garupa uma máquina Nikon F, uma Rolleiflex e um gravador de áudio Huer compacto (5 pol.), daqueles de rolo. Embora os motoqueiros do grupo preferissem Harleys, Danny e os motoqueiros mais voltados à performance preferiam motos inglesas, BSAs ou, no caso de Danny, uma Triumph 650cc 1956.

Os ‘bikers’ (‘bikeriders’ na Chicago dos anos 60) são motoqueiros americanos que se organizam em grupos uniformizados. Os mais famosos são os ‘Hells Angels’, mas há outros importantes, como os ‘Outlaws’, ‘Bandidos’ e os ‘Mongols’. Esses grupos podem ser vistos de várias maneiras em vários momentos e em vários lugares. Grosso modo, até os anos 50 eram grupos de amigos que gostavam de moto. Depois se transformaram em grupos organizados com viés internamente militarista e externamente anarquista, isso até o final dos anos 60. A partir dos anos 70 acabaram se transformando em grupos quase que de crime organizado, metidos em assassinatos e tráfico de drogas. Hoje em dia, além desses grupos que são considerados criminosos (1%ers), há muitos grupos mais parecidos com os originais dos anos 40, preocupados apenas em rodar de moto e fazer festas.

Caracterizar os bikers americanos é algo bastante complicado, pois há um misto de fascismo e anarquia, individualidade e militarismo, sem contar o racismo, machismo e xenofobia. Escrevi um pouco sobre isso há uns anos atrás, mas de forma muito muito superficial. Para quem tiver interesse, recomendo assistir ao filme ‘The Wild One’ (1953) e o seriado ‘Sons of Anarchy’ (2008-14). Tem um monte de livros sobre os ‘bikers’, sendo a maior parte de apologia, escritos por eles e para eles, com muitos mitos e pouca realidade. Há alguns livros que se salvam, dos quais eu destaco três com visão mais acadêmica: ‘The Rebels’ (Daniel R. Wolf, 2000), ‘The Brotherhoods’ (Arthur Veno, 2004) e ‘Biker: Truth and Myth’ (Bill Osgerby, 2005); outros com a visão interna dos participantes: ‘Hell’s Angel’ (Sonny Barger, 2001), ‘Out in Bad Standings’ (Edward Winterhalder, 2005) e ‘The Original Wild Ones’ (Bill Hayes, 2009); a coletânea ‘The Mammoth Book of Bikers’ (Arthur Veno, 2007) com textos clássicos sobre os ‘bikers’; e um com a visão da polícia: ‘Under and Alone’ (William Queen, 2006). Esses livros devem ser lidos sempre com muito cuidado, identificando se a visão é interna ou externa, propagandista ou acadêmica, se fala de grupos antes ou depois dos anos 60, e, finalmente, se são grupos 1%ers (considerados criminosos pelo FBI) ou grupos de motoqueiros apenas interessados em rodar por aí (que podem até brincar e se vestir como 1%ers, mas não são).

Os dois livros mais importantes, certamente, são ‘Hell’s Angels’ (1966) do Hunter S. Thompson e o nosso ‘Bikeriders’ (1968) do Danny Lyon. Primeiro porque os dois são da mesma época. De uma época em que as drogas e a violência começavam a ficar mais fortes, e em que uma pessoa precisava tomar uma posição mais clara em relação ao Vietnã e aos direitos civis. Você não podia mais ser um hippie libertário e simultaneamente um patriota racista defensor da guerra, como os ‘bikers’ vinham fazendo até ali.

O retrato e o relato que esses dois livros (Thompson e Lyon) fizeram sobre os ‘bikers’ podem ser vistos como uma expressão das mudanças sociais que o país vinha enfrentando naquela época: contracultura x guerra, expansão da mente x mortes por overdose, diversão x violência, anarquia libertária x crime organizado.

Outro tema importante dos dois livros é que fazem parte de um movimento chamado ‘Novo Jornalismo’, que trazia textos com a visão subjetiva dos jornalistas, jornalistas esses que muitas vezes imergiam eles próprios na cultura que queriam retratar. Para destacar a ‘verdade’, muitas vezes transformavam ‘fatos’ em ‘literatura’. Na palavra escrita, esse movimento era formado, entre outros, por Tom Wolfe, Truman Capote, o nosso Hunter S. Thompson do livro ‘Hell’s Angels’, Norman Mailer, Joan Didion, Terry Southern, Robert Christgau, Gay Talese.

O Danny Lyon não era escritor, era fotógrafo. Por um lado ele pode ser incluído nesse movimento do ‘Novo Jornalismo’ por ter entrado de cabeça na cultura dos ‘bikers’ por cinco anos, e também porque tentou retratar de fato a realidade deles. Por outro lado, ele não tentava interpretar as fotos e as entrevistas, não tentava ‘romantizá-las’ como os escritores faziam. Muito pelo contrário, sua força era deixá-las cruas. Cruas como era crua a realidade.

Antes dessa época, os jornais e revistas achavam que só deveriam publicar fotos de lugares bonitos e de pessoas importantes. Pouco era registrado sobre o mundo de verdade, sobre as pessoas de verdade, sobre a vida de verdade. A não ser quando era para fazer sensacionalismo barato (tanto pela esquerda quanto pela direita!). O Danny Lyon teve uma participação importante para que o fotojornalismo registrasse o mundo real, não o mundo fantasioso das revistas de celebridades, das propagandas capitalistas e dos folhetins socialistas.

Danny Lyon ficou famoso mais para frente, com outros trabalhos importantes de fotojornalismo sobre as demolições de prédios que destruíam a paisagem urbana, sobre os presídios, sobre a luta pelos direitos civis, sobre a vida das tribos indígenas e muito mais.

Quando a gente vê como todos esses temas com que ele lidava desde os anos 60 são tão atuais hoje em dia, vemos como os artistas são importantes, pois conseguem antever o que os acadêmicos e políticos conseguem ver só muito tempo depois.

O mais importante, ao meu ver, é que esses artistas tenham bastante cuidado com a sua arte, não se colocando na função de analistas ou de juízes, pois daí estarão destruindo o que realmente têm de mais importante: a visão ampla e profunda da realidade, sem filtros categorizantes ou coleiras moralizantes.

Por que eu gostei tanto desse livro ‘The Bikeriders’ do Danny Lyon? Porque é importante, porque é bonito, e porque proporciona uma experiência incrível com todas aquelas fotos e depoimentos. Por que eu demorei tanto para acabar a leitura? Porque ele não pode ser interpretado, analisado, descrito, explicado. É uma obra de arte, algo que leva tempo para ser absorvida e para causar as devidas transformações em quem a vê.

Outra dificuldade em ler esse livro foi que eu tenho uma certa relação belicosa com as motofotografias. É o seguinte: imagine um motoqueiro, seja viajando na estrada ou surfando no tráfego urbano, que tenta ao mesmo tempo viver a experiência, registrar em fotos e pensar em um texto. Não é possível. Ou você experimenta, ou fotografa, ou escreve.

Por muito tempo eu tentei fazer as três coisas, e isso arruinou meu motoqueirismo. Muitas vezes me pegava pilotando preocupado em parar para tirar uma foto, ou me pegava pensando no que ia escrever ao invés de experimentar o momento. Por isso, há muito tempo decidi que não tiraria mais fotos e não escreveria mais sobre as experiências em cima da minha moto. Dá para perceber isso claramente no ‘Equilíbrio em Duas Roda’, que antes tinha um monte de fotos e relatos de passeios, e que agora tem mais reflexões teóricas e comentários sobre livros.

Parece que isso aconteceu mesmo com o Danny Lyon. Ele dedicou cinco anos de sua vida de motoqueiro a tirar fotos e gravar áudios. Ele não produziu textos, não registrou suas experiências pessoais. Só fotos e áudios dos outros. Como ele mesmo diz no prefácio, sua moto era como se fosse um estúdio móvel, sempre carregando o gravador e as máquinas fotográficas.

Quanto ele deixou de aproveitar a pilotagem e a conversa livre com os amigos para poder tirar fotos legais e gravar entrevistas legais? Quanto ele teve que calar de suas próprias interpretações do mundo dos motoqueiros para dar voz de verdade aos ‘bikeriders’?

Eu particularmente penso que ele teve que sacrificar muito da sua própria vida para registrar a vida dos outros. Por outro lado, acho que ele deve ser muito orgulhoso por ter um trabalho tão importante, que de alguma forma (não sei dizer) influenciou o fotojornalismo a ser mais direto e mais diverso e mais livre.

Depois desse palavrório todo, percebo agora que na verdade eu só comentei bem pouco sobre o livro. Falei o que dava para falar, como o número de fotos e de páginas, datas de nascimento e períodos históricos. Não vou escrevi sobre a experiência que senti ao ver as fotos e ao ler as entrevistas. Isso porque – inconscientemente enquanto escrevia e conscientemente agora que termino -, assim como eu decidi há muito tempo que não quero e que não consigo expressar o que sinto em uma moto, também não quero e não consigo expressar o que sinto ao absorver uma obra de arte.

Por isso convido a todos a darem uma olhada nas fotos e nas entrevistas do Danny Lyon. Alguma coisa pode ser encontrada na internet. Só faço um importante alerta, principalmente para os ignorantes em arte como eu, de que a absorção desse livro pode demorar muito, muito mesmo, mais de meia década, e pode ainda causar mudanças irreversíveis na forma como você vê os motoqueiros. O mundo das motos nunca mais será visto do mesmo jeito.

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