Livro: Bicicletas em Equilíbrio
Fábio Magnani
[publicado originalmente em janeiro de 2013]
Eu gosto dos escritores ditos rabugentos. Autores que têm opiniões próprias e a coragem para defender essas opiniões. Escritores que têm inteligência, sabedoria e habilidade com as palavras. Que amam a verdade acima de tudo e que preferem a solitude à vida entre os medíocres. Os fofoqueiros até tentam destruí-los com essa descrição de mal humorados, mas ainda bem que o tempo é um justo juiz. Ao invés de usar esse termo “rabugento”, usado pelos invejosos, eu prefiro usar a expressão “autor clássico”.
Na biblioteca do bicicletismo há vários autores clássicos. David Gordon Wilson escreveu a bíblia do ciclismo, explicando desde as conversões de energia em nossos corpos até os fenômenos que ocorrem entre o pneu e o piso. Archibald Sharp é o autor do principal livro de projeto de bicicletas já escrito, publicado há mais de 100 anos. Tim Paterek é o mestre da construção de quadros. Jobst Brandt dedicou todo um livro a um único tema: a roda da bicicleta. John Barnett, único desses autores que ainda não está na minha biblioteca, produziu o mais detalhado clássico sobre a manutenção das bicicletas. Richard Ballantine é o mais eclético de todos, tocando em temas como a seleção dos materiais usados nas bicicletas, formas de luta política, oportunidades de trabalho no mundo das duas rodas e tudo o mais que se possa imaginar. Pryor Dodge talvez não tenha escrito o livro mais preciso e extensivo sobre a história da bicicleta, mas certamente é o mais bonito e inspirador. Mike Burrows não pode ser chamado de rabugento nem pelo mais burro dos medíocres, mas claro que é um dos cânones do projeto de bicicletas. John Forester, o mais combativo de todos, é o grande defensor do ciclismo veicular, no qual as bicicletas devem se comportar exatamente como os outros veículos, com os mesmos direitos e deveres.
Por falar em John Forester, ninguém me convence de que ele não foi usado na montagem do personagem do Sean Connery no filme Finding Forrester. Eu sei que dizem que o recluso William Forrester foi baseado em J. D. Salinger. Mas a cena em que ele anda de bicicleta pela cidade é, por alguma razão, a imagem que sempre me vem à mente quando penso em cicloativismo de verdade – não aquele cicloativismo usado para fazer amigos ou para construir uma carreira política.
Talvez essa imagem do Sean Connery na bicicleta tenha essa simbologia para mim porque, no filme, William Forrester tem o mais completo desinteresse em encontrar outras pessoas, mas, ao defender o que acha correto, ou ao pilotar a sua bicicleta (2:13), ele se transforma em um semideus. É assim que vejo um defensor do bicicletismo. Alguém que não vive a vida toda tentando agradar aos seus semelhantes, mas sim uma pessoa que fica tranquila em seu canto, trabalhando, até que surja a hora de lançar a sua grande obra. Assim imagino Wilson, Sharp, Paterek, Brandt, Barnett, Ballantine, Dodge e Forester. Clássicos.
Outro dia, ao escrever sobre Bella Bathurst, eu comentei que tinha comprado o livro dela só por causa do título – “O Livro da Bicicleta”. O livro do Richard Ballantine, um dos autores clássicos que citei no começo deste texto, também tem esse título. Se bem que é um pouco mais pomposo: Richard’s 21st Century Bicycle Book. Mas, ao contrário do livro da Bathurst, no caso do Ballantine eu sabia que estava comprando o livro de bicicletismo mais vendido, mais citado e mais completo de todos os tempos. Embora a versão da minha biblioteca tenha sido publicada em 2001, a primeira edição é de 1972.
Adoro essas coisas “do século XXI”. Essa era uma expressão muito usada na segunda metade do século XX, uma época em que acreditávamos que os deuses eram astronautas, que no futuro nos alimentaríamos com pílulas e vestiríamos roupas prateadas, que o mundo ia acabar em uma grande explosão nuclear, que havia cura espiritual, que a telepatia era possível e que os chineses podiam tirar a terra da órbita caso pulassem todos ao mesmo tempo. Mas também havia coisas sérias, como a série Cosmos que tentava trazer a razão a um mundo cada vez mais supersticioso, artistas engajados na luta política, a fábrica nacional do Gurgel, e as bicicletas de 10 marchas, que nos davam a independência para percorremos as estradas.
É impossível encontrar um tema específico nesse livro do Ballantine. Ele consegue falar de todos os aspectos do bicicletismo, com muita informação. Talvez a única maneira de retratar um pouco o espírito do livro seja comentando alguns tópicos que ele discute. A primeira parte do livro é clássica, com as vantagens de usar uma bicicleta, a história do seu desenvolvimento tecnológico e uma breve descrição dos seus vários tipos. No quarto capítulo (“O que é uma bicicleta boa?”) o autor começa a mostrar para o que veio. Em uma estrutura separada por componentes – quadro, suspensão, pneu, etc. -, Ballantine discute quais as vantagens de cada um dos possíveis designs. Logo em seguida vem o capítulo “Zzzwwaaaammo!”, sobre as recumbentes. Ele é tão entusiasmado por essas bicicletas que dá vontade de sair correndo para comprar uma – se pelo menos não fossem tão caras aqui no Brasil. Segue um capítulo bem legal sobre o que esperar de uma oficina de manutenção. Depois fala sobre equipamentos especiais, como triciclos, bicicletas de carga, acessórios e trailers. Vários capítulos são sobre pilotagem: aprendizado, commuting, tráfego urbano, trilhas, estrada, preparo físico e competições.
Há vários atos de coragem ao longo do livro. Por exemplo, as críticas às fábricas permeiam todo o texto. Imagine quantos acordos comerciais, cursos, palestras, consultorias e viagens o Ballantine não perdeu porque não tinha o financiamento das fábricas. Se bem que ele é “rabugento”, então se realiza muito mais falando a verdade do que curtindo as benesses que o dinheiro poderia comprar. Por outro lado, ele não tem medo de recomendar produtos específicos quando acha que são bons – o que lhe valeu várias críticas também.
Outro capítulo corajoso é o vigésimo primeiro, em que ele descreve a manutenção das bicicletas. Ao contrário dos carros e motos, as bicicletas, por serem minimalistas, eficientes e leves, precisam de uma manutenção mais cuidadosa. Seus pneus furam mais, seus mancais exigem lubrificação frequente e seu sistema de transmissão também carece de ajustes toda hora. Tudo bem, já que são máquinas de precisão. O problema é que, em geral, os “cicloativistas” esquecem de falar dessas desvantagens das bicicletas, enaltecendo apenas os pontos positivos. Mas de nada adianta mentir, pois um desavisado pode até comprar uma bicicleta, mas vai deixá-la de lado logo depois que descobrir esse trabalho de manutenção que não estava esperando. Melhor fazer como o Ballantine, que, ao invés de esconder esses detalhes, descreve à perfeição cada uma das atividades. Ao fazer isso, Ballantine reforça mais ainda a ligação do bicicleteiro com a sua máquina. Ao invés de ser um trabalho, a manutenção passa a ser vista como um exercício de crescimento espiritual.
Dizem que os livros estão acabando. Que logo teremos apenas compilações de blogs, com informações superficiais e textos escritos a várias mãos. Dizem que os artistas autênticos estão acabando. Que logo teremos apenas escritores que se submetem a escrever apenas o que os consumidores querem comprar. Que pena. Pelo menos tive a sorte de pegar o finalzinho de uma era em que ainda havia escritores malditos. Se bem que eram malditos apenas para os medíocres, para as fábricas e para as autoridades. Para nós eles eram sábios, corajosos e divertidos.