© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: Bicicletas em Equilíbrio
Fábio Magnani
[publicado originalmente em outubro de 2012]
Bicycle Design, de Mike Burrows, explica porque as bicicletas são como são e, principalmente, como deveriam ser se as fábricas não se limitassem a imitar as bicicletas de competição.
Deve haver algo nos livros sagrados dizendo que todo texto de tecnologia deve ser completamente árido. Devem comandar, ainda, que os seus autores não deixem transparecer qualquer tipo de personalidade. Nunca li nenhuma das bíblias, mas acho que isso deve ser verdade, porque pelo menos o principal livro sobre a ciência do bicicletismo, Bicycling Science (3ed, 2004), e o principal livro sobre projeto de bicicletas, Bicycles & Tricycles (1896), respeitam essa regra à risca. Os dois parecem ter sido escritos por pessoas completamente sem espírito.
Claro que esse é um grande exagero, porque tenho certeza que esses autores são completamente apaixonados pelo que fazem. A questão, na realidade, é que existe uma ditadura para dissociar completamente o conhecimento da sua origem humana. Isso é uma tentativa de fabricar a idéia de que a ciência é algo independente das pessoas que a criam, em uma estratégia para tornar a tecnologia algo absoluto, sagrado e indiscutível.
O problema de expressar a humanidade em um texto técnico é que dificulta as generalizações e facilita as imprecisões. Por outro lado, quando um autor demonstra suas crenças, suas experiências particulares, suas posições políticas e suas emoções, ele inspira o leitor. De onde concluimos que livros sem alma são feitos para criar computadores repetidores e livros com alma são feitos para engrandecer o ser humano. Faça a sua escolha.
Se você quiser ser publicado, promova a idéia de que a ciência e a tecnologia são absolutas. Esconda a sua humanidade por trás das equações, como se elas tivessem surgido do nada. Minta que as suas conclusões são completamente independentes dos seus dogmas. Demonstre que as decisões de projeto sempre privilegiam a eficiência, nunca o marketing. Faça tudo isso, se não jamais serás publicado.
Antes de continuar a conversa, deixe eu esclarecer uma coisa. Você não leu errado. O mais importante livro de projeto de bicicletas tem 116 anos. Isso é o claro reflexo da importância que as bicicletas tinham no final do século XIX e de como essa importância veio diminuindo cada vez mais, com o aparecimento dos carros e das motos. Ainda bem que as bicicletas vêm voltando aos holofotes nos ultimos anos, por causa da preocupação com os congestionamentos, a poluição e o sedentarismo. Mas nada ainda que se compare com aquela era de ouro.
Mas voltando aos livros bons – e autoritariamente chatos -, ainda bem que de vez em quando aparece um autor com a coragem de gritar: eu manjo de tecnologia, eu sou um ser humano, e é impossível dissociar a tecnologia que eu produzo do que eu sou como pessoa. Um ótimo exemplo disso é Bicycle Design: The Search for the Perfect Machine (2ed, 2008), de Mike Burrows. O currículo dele é invejável: projetista da Giant e pioneiro nos monocoques de fibra de carbono. Sem contar que há anos é projetista, construtor e corredor de bicicletas recumbentes. Por isso é considerado o maior projetista de bicicletas do mundo.
Não é apenas no tom que Mike Burrows se diferencia. Hoje em dia, quase todas as bicicletas são imitação das usadas nas competições. O problema é que aquelas bicicletas não são necessariamente as mais eficientes. Muito pelo contrário, pois as associações de ciclismo em geral tentam barrar o desenvolvimento tecnológico para que as corridas sejam vencidas por causa do atleta, não por causa da bicicleta. Tudo bem, isso pode ser legal para o esporte, mas não é bom para o ciclista comum. Pior ainda, como as fábricas se limitam a copiar o que aparece nas corridas, o ciclista comum fica completamente refém de projetos conservadores demais. Neste livro, Mike Burrows não se prende a esses regulamentos esportivos. Discute carenagens aerodinâmicas, monocoques estruturais e bicicletas recumbentes. Não se trata, porém, de um rebelde sem causa. Alguns componentes usados nas corridas são bons de verdade, e assim são apresentados no livro sem qualquer discriminação.
O livro não tem cálculos de engenharia como os dois clássicos que eu comentei lá em cima. Por isso, embora mais novo, não substitui aqueles. O importante neste livro é a discussão do porquê das coisas. Em outras palavras, para aprender como calcular uma bicicleta específica que já existe, é preciso ir para outro lugar. Para conceber uma bicicleta realmente eficiente, o lugar é aqui mesmo.
Mas vamos ao livro. Logo no começo há um preâmbulo escrito por Richard Ballantine contando toda a história de Mike Burrows, desde o abandono da escola para trabalhar na oficina do pai, passando pelos projetos inovadores, até as rusgas com a Giant. Legal que o editor tenha forçado que alguém escrevesse esses causos, porque certamente a modéstia não permitiria que Burrows contasse tudo aquilo.
Depois de uma breve introdução, começam os capítulos técnicos. O motor discute como o corpo humano converte a energia do alimento, como é o comportamento dos músculos, a influência da cadência do pedal, a importância do relaxamento e uma discussão legal sobre a idéia de projetar bicicletas que usem simultaneamente as pernas e os braços. Em ergonomia fala sobre a melhor posição do tronco, distância do pedal para o selim, distância do selim ao guidão e influência do comprimento do pedivela. Manobrabilidade trata como fazer curvas, levando em conta a geometria da direção, o peso do conjunto, a pegada do pneu e a distância entre eixos. Materiais e processos inclui aços, alumínio, titânio, meteriais compósitos, magnésio, compósitos de matriz metálica, plásticos e berílio; e um pouco de história também, com madeira e ferro fundido. Depois vem aerodinâmica, a roda, pneus, transmissão, freios, suspensão, eixo em balanço e lubrificação.
Os três capítulos finais são bem especiais. Vida baixa é sobre as bicicletas recumbentes, com suas vantagens e desvantagens, mas principalmente com a exposição de um ramo do bicicletismo que ainda precisa de muitas inovações. Gostei muito do capítulo não gostamos, em que ele comenta uma série de idéias que já provaram que não dão certo, mas que continuam sendo vendidas para os consumistas, como: pedivelas curvados, coroas ovais, pneus sólidos, volantes inerciais, manivelas, correias dentadas, transmissão por eixo e pedivelas com comprimento variável. O livro termina com uma lista de livros sobre projeto de bicicletas, onde ele honra os clássicos, mas não sem fazer uma ou outra piadinha.
Este livro mostra como um grande projetista pensa, contamina os leitores com a paixão que o autor tem pelas bicicletas e inspira o projeto de bicicletas cada vez mais úteis – muito além das restrições das competições e do mercado cego. Acima de tudo, este livro grita que não vale a pena fazer contas de engenharia se o preço a pagar por isso for diminuir a sua própria humanidade no processo. Siga o exemplo de Mike Burrows: projete, construa e pilote bicicletas. É possível sim amar o que se está projetando.