© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: Ficções em Duas Rodas
Fábio Magnani
[publicado originalmente em agosto de 2011]
Dia desses estava eu rodando na internet quando encontrei uma lista cheia de livros bons que por acaso tinham motos. Entre esses livros estava “Corelli’s Mandolin” (O Bandolim de Corelli, 1994). Eu até já tinha ouvido falar do filme, “Captain Corelli’s Mandolin” (O Bandolim do Capitão Corelli, 2001), com Nicolas Cage, mas nunca tinha assistido.
Encomendei o livro.
A história se passa na Cefalônia, uma ilha grega voltada para a Itália. Segundo a lenda, Zeus ordenou que duas águias voassem, daí então onde se cruzassem seria o umbigo do mundo. Esse lugar foi a Grécia, que divide o norte do sul, o leste do oeste. Por conta da sua posição, virou ponto de embate de culturas diferentes e uma parada para todos os exércitos do mundo. A vizinha Cefalônia não ficou fora disso, tendo sido invadida ao longo de sua história por gregos, romanos, venezianos, turcos, ingleses e franceses. Desde 1864, quando foi oficialmente unida à Grécia, conseguiu passar um tempo de relativa paz. Nesse período, seu povo vivia da pesca e morava em vilas que pareciam não perceber o tempo passar. Quem não conhecesse a história da ilha podia até pensar que com toda aquela beleza natural tinha sido escolhida para ser o paraíso na terra.
A verdade é que a Cefalônia não foi escolhida para ser o paraíso na terra.
O livro “Corelli’s Mandolin” começa por volta de 1940, bem na Segunda Guerra Mundial, quando a Cefalônia foi invadida pelos então aliados italianos e alemães. Depois, a ilha assistiria uma batalha entre esses dois exércitos, na qual morreram 300 alemães e 1200 italianos. Seguindo a história, os vitoriosos alemães fuzilaram 5000 italianos. Terminada a guerra, a ilha caiu em uma sangrenta guerra civil. Só para, em 1953, sofrer um terremoto que derrubou quase todas as suas casas.
Paraíso?
O livro conta toda essa história, mas do ponto de vista de pessoas comuns, como o capitão italiano Antonio Corelli e Pelagia, uma linda e forte moradora da ilha. No começo eram inimigos, ele um invasor da Itália, ela uma grega que via sua ilha tomada pelos militares. Não podiam ser mais diferentes. Para Corelli, que adorava a música e não a guerra, tudo era festa, paixão e alegria. Para Pelagia, que fora criada pelo seu pai para ser uma mulher independente, tudo era enfrentamento, resistência e força.
Apaixonado pela vida, Corelli logo montou o Clube da Ópera La Scala, que fazia as suas performances principais enquanto usavam as latrinas pela manhã. Os italianos, que não davam lá muita bola para a guerra, aproveitavam a invasão para flertar com as moças, cantar, nadar nos mares transparentes e dançar com as prostitutas. O exército alemão, ao contrário, ficava restrito aos seus quartéis, como que esperando pela hora certa.
O comando militar italiano obrigou que cada casa da ilha hospedasse um oficial. O capitão Corelli foi para a casa de Pelagia e do seu pai Dr. Iannis, o médico da ilha. Embora fosse o inimigo, Pelagia começou a se apaixonar pela música, pela cultura e pelo amor que Corelli demonstrava pelos mínimos detalhes. Mas ela era dura. Foram necessários alguns anos para Corelli amaciar o seu coração. Como o destino é inapelável, Pelagia e Corelli viraram amantes.
Na página 267 do livro, um oficial amigo de Corelli lhe presenteia com uma moto. A primeira coisa que Corelli fez foi convidar a recente namorada Pelagia para a garupa. O passeio de moto pela ilha representa bem o momento em que estavam vivendo. Corelli não sabia andar direito, então Pelagia tinha que confiar nele enquanto se arriscavam pelas estradas. Eles levaram vários tombos e um monte de sustos. Passaram a usar a moto para se encontrarem em uma casa abandonada. Faziam amor só com abraços e beijos, porque não queriam arriscar uma gravidez durante a guerra.
Mais para o final do livro, Corelli, muito ferido, tem que fugir para a Itália. Pelagia pensa que ele morreu e passa os próximos 50 anos em sofrimento, tanto por Corelli quanto pelo seu pai que morreria logo depois no terremoto.
Até que, em 1993, Corelli retorna como que da morte. Ele explica que durante todos aqueles anos havia voltado para observá-la de longe. Mas, como tinha visto ela com um bebê (uma garota que Pelagia havia pegado para criar), pensou que ela tinha se casado, e por isso nunca entrara em contato. Pelagia ficou puta da vida por ter desperdiçado tantos anos chorando a morte de Corelli.
O capitão conta que nunca tinha se casado, que se mudara para Atenas e virado um famoso compositor. Uma das suas grandes obras tinha sido em homenagem à Pelagia. Esta reluta em aceitá-lo até mesmo como amigo.
Nada que um passeio de moto não resolva.
Mesmo com mais de 70 anos de idade, os dois terminam o livro rodando a ilha de moto. Mais uma vez, nossa motorizada amiga de duas rodas é usada para representar a aceitação da vida, com todas as suas alegrias, riscos e surpresas.
O livro é muito maior que apenas esse romance e essas voltas de moto, mas foi o que mais me chamou a atenção: como os indivíduos reagem aos grandes acontecimentos incontroláveis da vida.
Interessante que Corelli, que era extremamente apaixonado, ficou com medo de se machucar quando viu Pelagia com um bebê. Já Pelagia, que aparentemente era tão dura, jamais teve medo de dedicar a sua vida a um grande amor, mesmo que sofrendo. Vai entender.
O filme, ao contrário do livro, é bem simples. Fica mais em volta do romance de Pelagia e Corelli – mais ou menos como eu neste texto. Não consegue desenvolver direito os personagens nem descrever como a guerra é capaz de destruir a alma das pessoas (há outros personagens muito importantes, que eu não citei, que sofrem muito com a guerra). Além disso, parece que no acordo para filmarem na Grécia não puderam incluir a guerra civil, já que parte dos gregos foi extremamente cruel. Apesar de tudo, o filme é bem bonito. Serve pelo menos para vermos como é o visual da ilha e ouvirmos um pouco de música. Mas não substitui de jeito nenhum o livro. Mesmo a moto, que é tão importante na obra escrita, aparece por apenas uns segundos na tela. Ainda, no filme eles fazem Pelagia esperar apenas poucos anos, bem diferente dos 50 anos do livro.
Em geral eu não dou muita bola para as capas dos livros, mas eu gostei dessa daqui. Na parte de cima eles colocaram um quadro de 1630 que mostra uma série de objetos: uma bandola (que é um bandolim maior), uma taça de vinho, um tabuleiro de xadrez, um pão, um baralho, uma bolsa de moedas e uma flor. Parece que originalmente esse quadro foi feito para criticar a nossa atração pelo que é mundano e passageiro. Mas no caso deste livro do Corelli, que se passa dentro do caos e toda maldade da guerra, esses pequenos prazeres (principalmente a música) são o que restam de humanidade em cada um. Para Corelli, eram os pequenos momentos que importavam.
No final das contas, é um livro triste. Mostra um homem, Corelli, que é sábio em aproveitar as coisas da vida e honrado quando é o momento da luta. Mas ao mesmo tempo é um tolo, que fica longe do amor da sua vida por 50 anos por causa de um mal entendido que ele poderia ter esclarecido com uma simples pergunta. A vida é assim. Assim somos nós. Um pouco sábios, um pouco tolos.