Livro: De Motoca na Estrada
Fábio Magnani
[publicado originalmente em junho de 2010]
O relevo da região norte do Chile é mais ou menos simples. Imagine que você está lá no Oceano Pacífico e resolve entrar no continente, no sentido oeste->leste. Poucos quilômetros depois do mar você encontra um grande paredão, que é a Cordilheira da Costa, com altitude média de 2.000 m. Depois vem o deserto, que era o que queríamos conhecer. Andando algumas centenas de quilômetros mais para dentro começa uma nova subida para a famosíssima Cordilheira dos Andes, com mais de 5.000 m de altitude. Como nossa viagem foi no sentido sul->norte, nós ficamos o tempo todo costurando esses relevos: Pacífico, Cordilheira da Costa, Deserto e Cordilheira dos Andes.
Saindo de Valparaíso – que fica mais ou menos no meio do caminho entre os extremos sul e norte do Chile – , percorreríamos 2.000 km – em 6 dias – até Arica, que é a última cidade no norte do Chile. Essa estrada às vezes passa entre a Cordilheira da Costa e o Pacífico, e às vezes sobe a cordilheira, percorrendo o deserto propriamente dito. Os dois tipos de estrada são lindos. Quando se anda na parte de baixo, você fica o tempo todo do lado do Pacífico, que é de um azul lindíssimo e cheio de rochas brigando com as ondas. Do lado direito, você sempre é acompanhado por um paredão imenso. Por outro lado, quando a estrada sobe para o deserto, você tem contato com uma das visões mais impressionantes do mundo. O deserto é muito colorido, desde o amarelo até o vermelho. O céu, então, parece que foi feito no computador; não tem nenhuma falha.
O caminho entre Valparaíso até La Serena vai ficando cada vez mais árido. Os primeiros 300 km são feitos beirando o Pacífico. A estrada é muito bem feita, o que provoca uma pilotagem deliciosa. Também há muito vento, mas bate na popa, o que não atrapalha em nada. O legal é que há muitas birutas nas vilas de pescadores, então dá para ter uma boa idéia da ajuda que estamos tendo. O clima é um pouco frio e a maresia é muito forte, formando uma névoa quando vista de longe.
Há várias vilas de turismo e acampamentos por aquele trecho. Parecem ser bem calmas, do tipo que eu e a Renata gostamos. Pena que a Renata estava deixando o Chile de avião naquele momento. Mas mesmo se estivesse ali não teríamos tempo de parar. Quero voltar para aquela região entre Los Vilos e Termas de Socos, para descansar ao som das ondas, refletir e escrever.
Nos últimos 100 km entre Valparaíso e La Serena, a estrada se afasta um pouco do oceano, nos dando um certo gosto do deserto que nos espera. A região é um pouco árida, mas ainda há vegetação.
A primeira coisa que fizemos em La Serena foi visitarmos o famoso farol. Bonitinho. A cidade de La Serena, fundada em 1554, é muito bem organizada. A impressão que passa é de ter um grande orgulho por ser tradicional. Passamos pouco mais de 12 horas na cidade, mas a impressão que me causou foi de que não éramos bem vindos. Era como se estivéssemos atrapalhando alguma coisa. Sensação difícil de explicar e provavelmente injusta, porque é só uma primeira impressão. Mas, justa ou não, a minha sensação estava lá.
Quando estávamos saindo de La Serena, no dia seguinte de manhã, fomos tirar algumas fotos dos prédios históricos. Havia também um monumento em homenagem aos desaparecidos e executados durante o regime militar. Quando estava ali, em silêncio, ouvi claramente um sussurro em meu ouvido “For never forgetting” (para que nunca seja esquecido). Não encontrei o sistema de som que havia produzido a frase, então tratei de sair logo dali, fortemente impressionado. O engenheiro de som responsável pelo efeito deve ter se sentido orgulhoso.
Já na estrada para Copiapó, isso me fez lembrar do que tinha acontecido no dia anterior, quando íamos de Valparaíso para La Serena. O Geraldinho e o Wagner tinham sumido de vista no meu retrovisor. Como a pista era dividida no meio com guard-rails, o retorno era difícil. Eu não sabia se era algum problema sério ou – o mais comum – se eles tinham parado para um xixi ou uma fotografia, então resolvi esperar 5 minutos. Caso não aparecessem, procuraria o próximo retorno para ver o que tinha acontecido. Enquanto esperava distraído, não percebi a chegada repentina de um andarilho em andrajos. Ele chegou com um sorriso desdentado e me perguntou na lata: “o que você faz por aqui?”. Fiquei meio surpreso pela pergunta, talvez com medo de um golpe e só consegui responder: “Não sei”. Nisso, o vagabundo olhou para mim com um olhar benevolente, calmo e sábio. Abriu um sorriso maior ainda e disse: “Então descubra”. Virou-se e pois-se a andar na estrada cantarolando algo em uma língua que eu não consegui reconhecer. Nisso, chegam as motos do Wagner e do Geraldinho. Como eu estava preocupado com eles, fiquei entretido na explicação da parada, causada por um vazamento de óleo na moto do Wagner, que não tinha apertado direito a tampa do reservatório. Depois acabei me esquecendo do ocorrido.
Mas quando saímos de La Serena com uma névoa muito forte – totalmente inesperada por nós no caminho do deserto mais seco do mundo -, sozinho na solidão do meu capacete, comecei a me lembrar do sussurro dos desaparecidos, dos espíritos naturais na tempestade de Corrientes e do andarilho do dia anterior. Para onde estávamos indo? Qual seria o mundo que nos esperava depois que a cortina nebulosa se desfizesse?
Cuidado com o que você deseja, porque você pode conseguir. Dali a pouco chegaríamos no Atacama.
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Apresentação. A Viagem ao Atacama foi realizada em torno de janeiro de 2010. Durante 38 dias, quatro amigos – Fábio, Renata, Wagner e Geraldinho – percorreram cerca de 15.000 km em suas motos. Com saída e chegada em Pernambuco, passaram por grande parte do Brasil e conheceram a Argentina e o Chile. A história toda começa em meados de 2008 – lá no início da preparação -, mas não tem tempo para acabar, pois os reflexos continuam aparecendo a cada dia que passa. Planejamento, amizade, trabalho em time, resolução de conflitos, natureza, estrada, crescimento pessoal, aprendizado e amor pelas motocicletas. A viagem é contada em três grandes séries: Planejamento (textos escritos antes da partida), Diário da Viagem (relatos publicados durante a viagem) e Crônicas do Atacama (pós-escritos, da qual faz parte este texto). Nunca é demais dizer que esta seção não tem fim programado. Se gostar, volte de vez em quando para ver as novidades.