Introdução à Grande Viagem


© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: De Motoca na Estrada

INTRODUÇÃO À GRANDE VIAGEM
Fábio Magnani
[publicado originalmente em dezembro de 2007]

Pode parecer fácil – mas não é – perceber que você vive uma vida não harmoniosa. Em meados de 2005 eu finalmente percebi isso. Quando eu vi, tinha passado os últimos 10 anos andando de ônibus. Vivia quase sem contato algum com outras pessoas a não ser com minha filha e meus amigos autores mortos. Tinha dedicado esses anos – sem sucesso algum, deve ficar claro – ao mundo das idéias. Deixara de lado as sensações, as interações, a contemplação das coisas incontroláveis. Acredito que não se deve viver em um mundo como um bicho, aceitando o mundo passivamente. Mas tinha esquecido que também não se deve viver em um mundo de idéias estéreis.

Decidi que era hora de voltar ao caminho da busca de uma vida harmoniosa. E para isso eu precisava de um símbolo. Lembrei do passado. Olhei para os últimos momentos enquanto ainda conseguia sentir alguma coisa. Me vi andando de moto. Foi por pouco tempo, uma CG lá em 1994 (ou 93), por talvez uns 6 meses. Não passava de 70 km/h. Estrada nem pensar. Mas estava decidido, este seria o símbolo do meu renascimento. Compraria uma moto e iria para Osvaldo Cruz-SP com ela.

Mas isso foi em meados de 2005. Eu estava todo endividado, literalmente enrascado. Foi necessário mais de um ano para sanar minhas dívidas que se amontoavam por quase uma década. Mesmo equilibrando as dívidas, ainda não tinha dinheiro para a moto. Passei metade do ano de 2005 e todo ano de 2006 lendo todos os livros e assistindo todos DVDs clássicos sobre motos (mecânica, dinâmica, pilotagem, viagens, crônicas e ficção). Me separei no final de 2006. Como iria agora morar a 15 km da minha filha, tinha que comprar um carro para visitá-la diariamente. Não tive dúvidas, ao invés de um carro comprei uma moto. Fiquei em dúvida entre a Falcon e a Tornado, pois não sabia se conseguiria fazer viagens com a Falcon. Bem, arrisquei e acertei! A Falcon seria minha grande companheira dali em diante.

Em janeiro de 2007 comprei a moto e me cadastrei no FOL (Falcon on Line, um fórum de proprietários dessa moto distribuídos ao longo de todo o Brasil).

O primeiro desafio foi pegar a Falcon na concessionária e ir para casa. Embora não andasse de moto seriamente há muito tempo, um colega tinha me emprestado a Falcon dele para dar uma volta uns dias antes. Então não tinha muito medo da moto em si. Minha maior preocupação era o trânsito de Recife. Mesmo quando andava de carro alugado, era sempre na estrada. Não sabia nem o caminho para seguir do centro até em casa, já que sempre andava de ônibus ou a pé. Fui andando a 40 km/h. Depois de 10 km, cheguei em casa; são e salvo!

Começou o treinamento. Passei uma semana inteira acordando às 05:00 para andar na cidade sem trânsito. No próximo final de semana uma volta na cidade até São Lourenço da Mata, que fica de tro da Grande Recife. A volta foi pela estrada. 70 km/h, tensão máxima, mas, de novo, vivo.

No FOL fui muito bem recebido por todos. o pessoal estava combinando uma viagem para Penedo-AL e convidando o pessoal do Nordeste. Embora eu dissesse que não tinha experiência, o pessoal dizia: “Vá pelo seu coração, se você estiver com vontade de pegar a estrada é porque está pronto!”. Condicionei a ida a mais um pouco de treinamento. A viagem de ida e volta até Penedo-AL seria de 1000 km. Em um sábado andei 300 km aqui pelas estradas da região e no domingo eu uma volta até Tamandaré-PE. Lá levei um tombo na areia fofa a 5 km/h. Quebrou o manete da embreagem. Esse tombo me deixou com um pouco de medo de andar em terra até hoje. Mas, como tinha andando 600 km em dois dias, vi que dava para ir até Penedo-AL. A viagem foi fantástica, fui recebido como se fôssemos amigos há muito tempo. Todos andavam na minha velocidade. Fomos e voltamos andando no máximo a 90 km/h. Nas curvas baixava para 60 km/h. Achei incrível como os mais experientes gastavam tempo me explicando técnicas e contando histórias. Depois fui ver que os grandes riders são mesmo assim.

Depois da volta vi que seria possível uma viagem até Osvaldo Cruz-SP no final do ano. Disse para mim mesmo que se conseguisse andar na terra, se conseguisse viajar 600 km por dia durante dois dias seguidos e se comprasse os equipamentos (jaqueta, bota, alforges, capacete etc) então iria fazer a viagem. O resto de 2007 foi dedicado a isso: andar na terra (Bonito-PE), andar 600 km em um único dia (Garanhuns-PE), andar em formação (Baía da Traição-PB), melhorar nas curvas (bananais de São Vicente Ferrer-PE), criar uma rede de amigos (FOL), andar forte e no calor dois dias seguidos (Icó-CE), andar à noite (Areias-PB). Outros grandes desafios para mim foram pedir informações na estrada (Serra Negra-PE) e conviver com pessoas com as quais só tinha contato pela internet (Areias-PB e Taquaritinga-PE). Isso pode parecer trivial, mas não é para uma pessoa que tinha passado 10 anos apenas com a companhia de livros.

A gente aprende um pouco por experiência própria, um pouco com livros e um pouco com amigos. Os livros são bons porque são escritos pelos melhores, mas o problema é que estão muito distantes. Acabei quase não fazendo amigos motociclistas aqui em Recife. Então quase toda a experiência de amigos que tenho vem do FOL. Mecânica, pilotagem, companheirismo, literalmente tudo de lá. Mas está aí. Todos os passos de treinamento prontos.

O que viria a se chamar “A Grande Viagem” era uma viagem pelo sertão nordestino até o interior de São Paulo, voltando pelo litoral. Queria conhecer a Chapada Diamantina-BA, Serra da Canastra-MG, nascente e foz do São Francisco. Embora eu tenha nascido no interior de São Paulo, tinha vivido os últimos 20 anos em cidades praianas (10 anos em Florianópolis-SC e 10 anos em Recife-PE), então não tinha muito interesse em conhecer o litoral. Queria mesmo era conhecer o sertão. Inicialmente pensei em incluir também a Chapada dos Veadeiros-GO, mas nos últimos dias acabei desistindo desta mudança.

Comprei todos os equipamentos, peças e ferramentas. Em um ano eu já tinha andado 20.485 km de moto. A viagem estava programada para o dia 27/12/2007. Seriam 7.000 km.

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