Livro: De Motoca na Estrada
Fábio Magnani
[publicado originalmente em junho de 2010]
Sou um homem de pouca fé. Não acredito em duendes, Papai Noel, Coelhinho da Páscoa, anjos, santos, sorte, azar, castigo ou recompensa. Não acredito que exista um deus – ou qualquer nome que se queira dar a essa entidade – que se preocupe com o que estamos fazendo ou que possa interferir em nossas vidas, para o bem ou para o mal. Não acredito em vida após a morte, inferno, purgatório ou paraíso. Não acredito em destino. Não acredito em energias milagrosas, auras, previsão do futuro, proteção por meio de talismãs ou orações.
Acredito em poucas coisas. Acredito que tudo que acontece com a gente é fruto do trabalho e do acaso. Acredito na ciência, mesmo sabendo que é imperfeita e limitada – duas das várias razões que lhe dão credibilidade. Acredito em princípios, valores, na vontade de viver e no prazer de aprender. Acredito que existam parâmetros absolutos para perceber o que é belo, harmonioso e evolutivo.
Tenho uma única oração, que faço todos os dias quando estou viajando de moto: “Fábio, que você saiba aproveitar todos os momentos deste dia. Agora acelera!”
Esse conjunto de coisas que acredito – tirando a ciência, que é uma ferramenta – chamo de espiritualidade. Essa dimensão de nossas vidas lida com questões importantes. Por que insisto em me levantar todos os dias? Por que me sinto pleno em cima da minha moto quando o sol está nascendo? Por que tenho a mais completa certeza de que não devo fazer o mal ao próximo?
Quando eu era adolescente, um amigo me mandou uma carta dizendo que tinha encontrado um autor que o fazia se lembrar de mim. Naquela época não havia ainda internet, mas não foi difícil encontrar um livro daquele escritor, Richard Bach. Acabei virando fã dele nos próximos anos, mesmo que tivesse que ler escondido. Isso por duas razões: primeiro porque, já nos primeiros anos da universidade de engenharia, pegava mal ler textos humanistas; segundo porque o cara falava um monte de besteiras. Almas gêmeas, reencarnação e magia eram temas freqüentes nos seus escritos.
Mas lá no meio das besteiras, havia um monte de lições de como podemos aprender a reconhecer nossos reais valores, a encontrar nosso eu verdadeiro, de como somos responsáveis pelo o que acontece com a gente e de como transformar cada momento de nossa vida em uma intensa caminhada espiritual.
Além disso, Richard Bach escrevia muito sobre aviões. Um dos seus livros, Biplano, conta a história de como levou um avião antigo da costa leste à costa oeste americana. A forma como ele unia a sua relação com a máquina, com o a geografia, com as pessoas e com seus valores, é extremamente inspiradora. Vários de seus escritos tratam disso. Eu gostava porque era exatamente aquilo que eu sentia quando andava de bicicleta pelas estradas da Ilha de Santa Catarina, ou percorria riachos pedregosos sozinho em busca de suas fontes, ou quando perambulava pelas rodoviárias do mundo observando as pessoas que iam e viam.
Com o tempo – talvez para o grande desprezo do meu amigo que escrevera a carta recomendando o livro -, fui deixando esses valores de lado. Outras dimensões de minha vida começaram a chamar mais a minha atenção. Pressão por me formar, terminar o doutorado, ser contratado por uma universidade, manter um currículo, transmitir com qualidade conhecimentos técnicos e científicos, manter uma família e criar uma carreira. Aspectos importantíssimos para um ser humano. Mas não suficientes.
Quando voltei a andar de moto, há alguns anos atrás, comecei gradualmente a lembrar de como essas questões espirituais eram importantes. Como se estivessem escondidas em algum lugar, mas que por alguma razão o motoqueirismo agora forçasse a transpirar.
Quando você está em cima da sua moto em uma curva perfeita, com o vento perfeito, com a velocidade perfeita e com a iluminação perfeita, é como se o tempo parasse e você se sentisse completo. Esse tipo de sensação faz com que você comece a pensar de porque a vida toda não pode ser assim: plena.
Ainda bem que com o tempo você começa a perceber que pode ser sim. Você consegue reproduzir esses momentos de plenitude quando dá o bom-dia para a sua mulher, quando percebe que sua filha deu mais um passo rumo a uma vida de realizações reais, quando espia seu filho olhando maravilhado para um pássaro que milagrosamente passa pela janela, quando sente o sorriso de um estudante que compreendeu mais algum detalhe, quando lê um bilhete de alguém agradecendo pela inspiração que você lhe transmitiu.
Os escritos de Richard Bach – sobre usar a aviação como caminho para a espiritualidade – me guiam na compreensão do papel que o motoqueirismo tem para mim. Além disso, reler e tocar de novo os livros de Richard Bach me fazem lembrar de uma época em que eu valorizava as coisas de forma um pouco diferente.
A Viagem ao Atacama foi uma viagem espiritual. Uma pena que eu não possa descrever realmente o que senti, percebi ou vivi durante toda a viagem. Mas a imensidão do deserto, a altura das montanhas, o olhar das crianças nos bancos traseiros dos carros, os mínimos barulhos da minha moto, as lembranças do passado, a clareza com que passei a ver a minha vida, a sensação de velocidade e de mobilidade, tudo conspirou para que eu tenha voltado um pouquinho mais sintonizado com o que realmente importa.
Talvez as pessoas mais evoluídas espiritualmente consigam progredir apenas com a meditação. Eu ainda preciso estar em cima da minha moto.
(continua)
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Apresentação. A Viagem ao Atacama foi realizada em torno de janeiro de 2010. Durante 38 dias, quatro amigos – Fábio, Renata, Wagner e Geraldinho – percorreram cerca de 15.000 km em suas motos. Com saída e chegada em Pernambuco, passaram por grande parte do Brasil e conheceram a Argentina e o Chile. A história toda começa em meados de 2008 – lá no início da preparação -, mas não tem tempo para acabar, pois os reflexos continuam aparecendo a cada dia que passa. Planejamento, amizade, trabalho em time, resolução de conflitos, natureza, estrada, crescimento pessoal, aprendizado e amor pelas motocicletas. A viagem é contada em três grandes séries: Planejamento (textos escritos antes da partida), Diário da Viagem (relatos publicados durante a viagem) e Crônicas do Atacama (pós-escritos, da qual faz parte este texto). Nunca é demais dizer que esta seção não tem fim programado. Se gostar, volte de vez em quando para ver as novidades.