Livro: De Motoca na Estrada
Fábio Magnani
[publicado originalmente em junho de 2010]
A estrada entre La Serena e Copiapó é curta, mais ou menos 350 km. Olhando no mapa, tinha tudo para ser um dia comum. Nosso foco era chegar em Copiapó para procurar um passeio até Ojos del Salado, o vulcão mais alto do mundo.
Como a manhã em La Serena estava com névoa, saímos vestidos com toda nossa roupa habitual: bota impermeável, luva longa, calça e jaqueta de cordura. Para não arriscar, fomos ainda com segunda pele e bala clava. Percorremos uns 50 km acompanhando o Pacífico, que estava cinza e sombrio. À direita, uma pequena cordilheira nos acompanhava. É o tipo de dia na estrada que nos faz pensativos.
Em Los Hornos, a estrada faz uma curva para a direita para subir serpenteando uma pequena serra de 500 m de altura. Lá em cima a neblina desapareceu repentinamente, como se fosse a cortina de um cinema. Estávamos no deserto. Por ali ainda havia arbustos ressequidos espalhados e o solo era formado de muitas rochas fraturadas, mas era o deserto mesmo assim.
Algumas dezenas de quilômetros mais adiante, agora a 800 m de altitude, vimos a inesperada e tão esperada placa dizendo que estávamos oficialmente no Atacama. Foi uma baita surpresa que ela estivesse por ali, pois dependendo de onde você procure o Atacama começa em um lugar ou em outro.
Os últimos 15 meses passaram em minha cabeça como que no proverbial filme de sua vida. Mais de um ano de preparação, 20 dias vivendo na estrada e exatamente (!) 7.000 km rodados em cima de nossas motos. Todo mundo que já teve um grande objetivo alcançado sabe como a gente se sente em um momento como esse. É quase impossível conter a alegria, que se derrama na forma de abraços, gritos e risadas. Muitas risadas.
Mas, acima de tudo, você se sente leve. Depois que passa a grande excitação física, vem a tranqüilidade. Você fica ali parado, olhando para todos os lados com a maior calma do mundo. A cada inspiração parece que o ar está te fazendo levitar. Uma única frase fica saindo bem baixinho de seus lábios: “Eu consegui”, “Eu consegui”, “Eu consegui”. Não era só estar ali que importava, mas também ter chegado do meu jeito. A viagem é mais importante que o destino, sempre.
Mesmo subindo de novo na moto, você continua levitando. Sua moto deixa de ser uma máquina que toca o chão. Agora é como o tapete mágico de Aladin, que serpenteia o deserto quase o tocando aqui e ali.
Quando alguém me perguntar de novo “Por que o Atacama? Por que de moto?”, eu vou saber exatamente o porquê. Posso não saber explicar direito, mas sei o porquê.
Com o visual do deserto nos acompanhando, rumamos os próximos 250 km até Copiapó. Era um desses dias em que você aproveita cada centímetro da viagem, como que se sentindo em estado de graça. Quase chegando na cidade há uma grande descida em linha reta. O terreno em volta é todo cinzento, lembrando uma possível origem vulcânica.
O dia todo esteve frio, mesmo com o sol completamente aberto. Só mais para o final da tarde é que começa a esquentar um pouco. Não esperávamos neblina tão perto do deserto, nem frio durante o dia.
Copiapó é uma cidade muito legal. Fica encravada no meio do nada, com o deserto de um lado e os Andes do outro. Vive da mineração. Entre os seus grandes marcos históricos, foi em Copiapó que instalaram a primeira ferrovia da América do Sul, em 1850. É um pouco difícil entender como pode haver um lugar tão arrumadinho cercado de absolutamente nada. Viver por ali deve ser diferente do que estamos acostumados. Acho que todos se conhecem.
Demos sorte de chegarmos no dia de um comício para as eleições presidenciais. A praça da cidade estava cheia de bandeiras e o pessoal estava todo animado. Outra coisa que gostei muito foi do contraste entre os jovens ouvindo música eletrônica muito alta nas lanchonetes americanizadas e os adultos jogando xadrez na praça. Assim como em La Paz – na Argentina -, é desse tipo de coisa que sinto falta no Brasil: cinemas junto com bibliotecas e xadrez nas praças. Outro aspecto legal nesses países vizinhos é a gente alegre andando nas ruas à noite, depois do serviço. Todos nas praças, bares e restaurantes. Mas isso nós temos em Recife também, pelo menos quando andamos pelas ruas de nossas favelas. Todos ficam conversando nas ruas, desde os velhos sorridentes até as crianças eletrizadas pelas brincadeiras.
Cada vez entendemos menos a língua do pessoal. Alguns, mais acostumados com turistas, ainda são sorridentes. Mas já começamos a sentir o pessoal mais fechado e introspectivo. Não passam nenhum tipo de antipatia. Acho que é só um jeito diferente de viver. Talvez quem vive no deserto não tenha tanta necessidade de conversar com os outros. Na minha psicoantropopsicologia barata, acho que no silêncio do deserto, sem distrações, eles têm mais oportunidade de conversar consigo mesmos. Parece ser algo fácil, conviver com você mesmo, mas acho que não é. Se fosse, não ficaríamos criando tantas distrações em nossas vidas: livros, TV, papo-furado, pequenas preocupações e stress. Isso mesmo, eu acho que não somos vítimas do stress, só o críamos para nos distrair de que não somos mais completos. Gosto de pensar que quem anda de moto sabe do que eu estou falando, sabe como é ficar sozinho lá dentro do capacete. Talvez viver no deserto seja como estar dentro do seu capacete o tempo todo.
Seja o que for, no final daquele dia eu fui dormir um pouco mais leve.
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Apresentação. A Viagem ao Atacama foi realizada em torno de janeiro de 2010. Durante 38 dias, quatro amigos – Fábio, Renata, Wagner e Geraldinho – percorreram cerca de 15.000 km em suas motos. Com saída e chegada em Pernambuco, passaram por grande parte do Brasil e conheceram a Argentina e o Chile. A história toda começa em meados de 2008 – lá no início da preparação -, mas não tem tempo para acabar, pois os reflexos continuam aparecendo a cada dia que passa. Planejamento, amizade, trabalho em time, resolução de conflitos, natureza, estrada, crescimento pessoal, aprendizado e amor pelas motocicletas. A viagem é contada em três grandes séries: Planejamento (textos escritos antes da partida), Diário da Viagem (relatos publicados durante a viagem) e Crônicas do Atacama (pós-escritos, da qual faz parte este texto). Nunca é demais dizer que esta seção não tem fim programado. Se gostar, volte de vez em quando para ver as novidades.