Civilizações Diferentes

© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: De Motoca na Estrada

CIVILIZAÇÕES DIFERENTES
Fábio Magnani
[publicado originalmente em julho de 2010]

Quando eu estava em Iquique cuidando das motos enquanto o Wagner e o Geraldinho iam à igreja, um rapaz veio conversar. Entre um monte de dicas, ele me falou para tomar cuidado com a saída de San Pedro de Atacama. A questão é que a aduana fica em San Pedro, e não na fronteira entre o Chile e a Argentina. Se você passar direto, vai ter que andar até a fronteira para descobrir que precisa voltar. São mais de 300 km, ida e volta, sem nenhum posto de gasolina. Fácil para fazer de carro, mas com o tanque pequeno de uma moto andando a 4.000m de altitude, é arriscado.

Mas não passamos riscos porque tínhamos tido a dica.

Logo que saímos de San Pedro já começou uma grande subida, até 4.000m de altitude. Nessas Crônicas do Atacama venho usando a palavra “lindo” o tempo todo. Mas aquele lugar ali é realmente lindo. Lá em cima há um deserto rochoso multicolorido: amarelo, vermelho, marrom. Em alguns lugares há pequenos lagos salgados, que trazem um pouco de verde ao visual. Sem contar o céu perfeito. É como se uma criança tivesse pintado aquele lugar em cima dos Andes, com as cores mais vivas e bonitas da sua caixa de lápis-de-cera.

Faz muito frio também. Paramos para colocar bala-clava, segunda-pele e tudo o mais a que tínhamos direito. Já estávamos mais acostumados com a falta de ar. Embora cansássemos facilmente com algum esforço maior, não nos sentíamos mais com dor-de-cabeça ou qualquer desconforto maior.

O caminho entre San Pedro e a fronteira é cheio de curvas planas. Embora tivéssemos passado por vários trechos desertos no caminho, aquele ali dava a impressão – talvez pela altitude – de ser o lugar mais isolado de todos. Uma experiência que vou guardar para sempre.

Na fronteira, os militares argentinos – ao contrário das outras fronteiras pelas quais havíamos passado – nos trataram de forma bastante seca e superior. Mas nada que nos importasse. Nós estávamos livres, eles estavam ali presos.

Depois da fronteira, uma chuva começou a se formar. Como estávamos andando a grande altitude, as nuvens ficavam bem baixas. Raios caiam de todos os lados. Nem pensar em parar naquele lugar, pois seríamos pára-raios ambulantes. Agora, mesmo que quiséssemos sair mais rápido daquela situação, não era possível. Com a falta de ar, minha moto parecia uma 125cc, não andando a mais de 110 km/h no plano.

No caminho também há alguns salares muito bonitos. Não tiramos fotos com as motos lá porque depois não poderíamos lavá-las.

Chegou um momento em que as nuvens ficaram tão baixas que começamos a andar por entre elas. Não dava para parar por causa dos raios, o frio ou a preocupação com o cair da noite. De repente, no meio daquelas nuvens, começou uma descida vertiginosa em S´s desafiadores. De todas as serras que passamos, aquela descida foi a mais impressionante.

Quanto mais descíamos, mais esquentava, mais nossas motos voltavam a ficar potentes e mais chuva tomávamos. Depois de termos ficado tantos dias no deserto, era bem estranho ver tanta vegetação em torno da estrada.

Como já estava chegando o final da tarde, paramos em Jujuy para procurar um hotel. O parque da cidade estava cheio de jovens alegres, sorridentes e com roupas coloridas. Do mesmo jeito que tínhamos estranhado o verde, ver pessoas extrovertidas também era diferente. A nossa subida de Valparaíso para Arica, no Atacama, tinha sido gradual. Então não tínhamos notado quanto as pessoas iam ficando cada vez mais introvertidas no deserto. Mas do Chile para a Argentina essa diferença cultural era instantânea. Quando se compara com o norte do Chile, a Argentina é muito parecida com o Brasil. Não entendo nada disso, mas acho que o povo que vive no Atacama faz parte de uma civilização diferente da nossa. Nem melhor, nem pior. Diferente.

O meu foco também começou a mudar a partir daquele dia. O Atacama e os Andes tinham ficado para trás. Agora tínhamos um pouco mais de 5.000 km para andar até chegar em casa. A saudade começou a apertar. Tínhamos pensado em fazer alguns passeios por volta de Salta. Mas acabamos trocando tudo por um grande estirão maior próximo dia: 900 km até Corrientes. Andar 900 km em um dia é coisa mais ou menos simples, mas depois de tantos dias na estrada, é preciso ter alguma motivação maior. Ainda bem que tínhamos, voltar para casa.

(continua)

– – –

Apresentação. A Viagem ao Atacama foi realizada em torno de janeiro de 2010. Durante 38 dias, quatro amigos – Fábio, Renata, Wagner e Geraldinho – percorreram cerca de 15.000 km em suas motos. Com saída e chegada em Pernambuco, passaram por grande parte do Brasil e conheceram a Argentina e o Chile. A história toda começa em meados de 2008 – lá no início da preparação -, mas não tem tempo para acabar, pois os reflexos continuam aparecendo a cada dia que passa. Planejamento, amizade, trabalho em time, resolução de conflitos, natureza, estrada, crescimento pessoal, aprendizado e amor pelas motocicletas. A viagem é contada em três grandes séries: Planejamento (textos escritos antes da partida), Diário da Viagem (relatos publicados durante a viagem) e Crônicas do Atacama (pós-escritos, da qual faz parte este texto). Nunca é demais dizer que esta seção não tem fim programado. Se gostar, volte de vez em quando para ver as novidades.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *