As Motos de Milan Kundera

Parece que as motos não são importantes no universo literário de Kundera. Ou será que são?


© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: Um Motoqueiro Existencialista

AS MOTOS DE MILAN KUNDERA
Fábio Magnani
[publicado originalmente em maio de 2019]

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O escritor Milan Kundera é o Randy Mamola do mundo literário. Isso porque, embora nenhum dos dois tenha conquistado títulos famosos, nem o Nobel de literatura nem o Grand Prix de motociclismo, eles estão entre os favoritos do público. O principal tema do Kundera é um tema grandioso: o indivíduo existencialista preso dentro de um regime autoritário, seja cultural, seja político.

De começo até parece que as motos não são importantes no universo literário de Kundera. Ou será que são?

A imagem de uma moto ultrapassando uma carruagem está estampada bem na capa da edição espanhola de “A Lentidão” (1995). Já na edição brasileira aparece só a carruagem, e nenhuma das duas aparece nem na edição inglesa nem na francesa.

Ao viajar para além dessas capas, para dentro dos livros, buscando encontrar motos e bicicletas, encontramo-nas em quatro de suas estórias: “A Valsa dos Adeuses” (1972), “O Livro do Riso e do Esquecimento” (1979), “A Insustentável Leveza do Ser” (1984) e essa tal “A Lentidão” (1995). Os significados dessas motos nos seus livros são multifacetados, mas de certa forma ligados a elementos-chave das obras do Kundera: tempo, memória e autoritarismo.

Milan Kundera nasceu em 1929 na Checoslováquia. Em 1975 mudou-se para a França. Um de seus principais temas é o seu país de origem, constituído em 1918 das cinzas do Império Austro-Húngaro, invadido pelos nazistas em 1939, e depois involuntariamente preso ao domínio soviético até a Revolução de Veludo em 1989. Um momento interessante foi em 1968, quando a Checoslováquia conseguiu passar oito meses de liberdade logo após a eleição de um primeiro-secretário que era reformista. Este evento, conhecido como a Primavera de Praga, foi repentinamente terminado com a invasão do exército soviético em agosto de 1968, devolvendo a Checoslováquia ao autoritarismo.

O tema sociopolítico recorrente de Kundera é o próprio autoritarismo, que surge tanto de um governo poderoso quanto das pessoas comuns que o apoiam. É claro que o governo autoritário intimida seu povo silenciando, exilando e encarcerando. Mas ninguém pode manter um governo autoritário sozinho, sem o apoio do povo. Nos romances de Kundera, os apoiadores são movidos pelo ressentimento, inveja e tristeza. Em vez de tentar melhorar a si mesmos, eles preferem destruir o que é bom nas pessoas livres e criativas. As obras de Kundera questionam essas origens do autoritarismo.

Milan Kundera também é fascinado pela experiência do indivíduo sob esse governo autoritário. O exílio é dos seus assuntos favoritos: exílio físico para aqueles expulsos de seus países, exílio cultural para aqueles que não podem falar. Relacionamentos pessoais, particularmente eróticos e românticos, refletem as relações políticas entre os indivíduos, alternando entre alegria e tristeza, memória e esquecimento.

Milan Kundera é, no entanto, talvez mais um filósofo do que propriamente um romancista. Seus temas são mais importantes que seus personagens. Às vezes ele simplesmente esquece um personagem, muda sua personalidade ou cria um personagem novo do nada, tudo a serviço do desenvolvimento do tema. Com as motos que aparecem em seus romances acontece o mesmo. Elas têm várias personalidades, cada uma a serviço de uma intenção literária específica.

Por exemplo, se os personagens são secundários aos temas sociopolíticos de Kundera, as motos são terciárias em seus primeiros romances. “A Valsa dos Adeuses” (1972) traz uma enfermeira bonita que se encontra romanticamente dividida entre um trompetista famoso, que dirige uma limusine branca, e um operário humilde, que anda de moto. A moto, nesse livro, é então usada apenas para representar as diferentes posições sociais dos dois rivais.

Em “O livro do Riso e do Esquecimento” (1979), outro veículo de duas rodas – agora uma bicicleta, não uma moto – também serve a uma função representativa. No romance, Kundera mostra uma sociedade tentando esquecer seu passado, uma sociedade cheia de autoritarismo e de mediocridade. Em uma cena rara de otimismo, uma bicicleta aparece associada à subversão, à esperança e ao prazer físico. Nessa cena, um grupo de amigos está assistindo um escritor famoso sendo entrevistado na televisão. A certa altura, o escritor fala sobre a transição de um mundo autoritário para um outro mundo melhor:

“Não se esqueça”, disse o escritor, com o rosto cada vez mais agitado, “foi em Rourou que eu primeiro andei de bicicleta. Sim, eu falo sobre isso em detalhes no meu livro. E todos vocês sabem o que a bicicleta significa no meu trabalho. É um símbolo. Para mim, a bicicleta é o primeiro passo tomado pela humanidade para fora do mundo patriarcal, em direção ao mundo civilizado. O primeiro flerte com a civilização. Como o flerte de uma virgem antes do seu primeiro beijo. Ainda é virgem, mas já é pecado”.

Sim, a virgem ainda está presa, mas ela já antecipa o amor. É assim que a sociedade começa a se transformar: com alegria, paixão, prazer e liberdade. A cena continua, mas agora uma das amigas, Joujou, relaciona a metáfora do escritor com sua realidade.

“É verdade”, disse Joujou. “Tanaka, uma menina com quem eu trabalhava, teve seu primeiro orgasmo pedalando uma bicicleta quando ela ainda era virgem”

Tanaka, ainda virgem, ainda presa aos laços de uma ordem autoritária que a priva de sentir prazer com o seu próprio corpo, tem um orgasmo mesmo assim. A bicicleta se torna um veículo para a liberdade pessoal, pois a garota subverte a ordem ao ter um orgasmo enquanto pedala.

A moto aparece quatro vezes em “A Insustentável Leveza do Ser” (1984), um romance que apresenta quatro personagens. Os dois homens, Tomas e Franz, um médico mulherengo e o outro um professor idealista, não são importantes do ponto de vista das duas rodas. A única aparição de uma moto relacionada a Tomas ocorre depois que ele morre e seu filho usa uma moto para ir ao funeral. Não há grande significado nisso.

Em vez disso, as cenas significativas envolvendo motos dizem respeito às duas personagens femininas. Tereza, esposa de Tomas, é fortemente ligada ao relacionamento deles, o que causa muita dor por ele ser infiel. Ela encontra certa liberdade ao se tornar uma fotógrafa documentarista, especialmente durante a invasão soviética após a Primavera de Praga. Tereza alcança fama tirando fotos dos tanques que chegam. Na primeira cena do livro em que aparece uma moto, Tereza está fotografando a chegada dos tanques soviéticos. Naquele momento, os soldados soviéticos ainda não sabem se podem disparar contra os cidadãos de Praga, de modo que os jovens checos começam a provocar os soldados.

Muitas dessas fotos foram publicadas pela imprensa ocidental: nelas se viam tanques, punhos ameaçadores, prédios destruídos, mortos cobertos com uma bandeira tricolor ensanguentada, jovens de moto que a toda velocidade circulavam em torno dos tanques agitando bandeiras tchecas na ponta de longas varas, e meninas muito jovens com minissaias incrivelmente curtas, que provocavam os infelizes soldados russos, sexualmente famintos, beijando às suas vistas transeuntes desconhecidos.

As motos que cercam os tanques soviéticos em alta velocidade com bandeiras checas são um símbolo potente de resistência e provocação política.

Na cena seguinte, associada à outra personagem feminina, Sabina, a moto também provoca, mas agora em um nível individual. Como uma artista, Sabina usa sua criatividade para se libertar primeiro dos laços familiares e depois das correntes do autoritarismo. Mas daí ela começa a questionar a própria legitimidade e autenticidade dos que lutam contra o regime autoritário, suspeitando que eles são motivados pelo orgulho e pela vaidade. Ela teme que a música esteja sendo usada para criar uma felicidade artificial.

Descobriu que a transformação da música em barulho é um processo planetário que faz a humanidade entrar na fase histórica da feiúra total. A feiúra no sentido absoluto começou a manifestar-se pela onipresença da feiúra acústica: os automóveis, as motos, as guitarras elétricas, as britadeiras, os alto-falantes, as sirenes.

Nesta cena, as motos são vistas como ruidosas, como parte da feiúra do mundo.

Sabina, uma artista visual, considera o ruído urbano uma afronta. Vamos ver, por outro lado, como um músico poderia reagir. Duas músicas brasileiras levam esse reflexo sobre o barulho das motos um pouco além. A letra de um blues chamado “Música Urbana 2”, do Legião Urbana, uma banda existencialista de pop-rock venerada dos anos 80, fala sobre o cenário urbano: antenas de TV, mendigos, viciados, o vento, favelas, coberturas, crianças nas escolas, policiais e assim por diante. Todos eles fazem música urbana. Na música, Renato Russo (o compositor, vocalista e líder da banda de rock) canta:

“Motocicletas querendo atenção às três da manhã – é só música urbana”

Aqui, como no romance de Kundera, as motos perturbam. Mas Renato Russo reflete sobre a causa dessa feiúra: as motos querem atenção! Isso é mais ou menos o que Kundera tenta desenvolver quando diz que a causa para as pessoas apoiarem o regime autoritário é a falta de afeto. Ninguém os ama, ninguém os admira, ninguém os acha inteligentes. É por isso que eles tentam atrapalhar a vida das pessoas criativas: as perseguindo. E é por isso que as motos atrapalham o sono da cidade às três da manhã – por querer atenção, por querer afeto.

“A Tua Presença Morena”, do Caetano Veloso, enfatiza o poder dos indivíduos para aquietar o ruído urbano. Na letra, Caetano nos conta como a presença de uma mulher comanda, subjuga, espalha e paralisa a realidade. Em um verso, ele canta:

“A tua presença silencia os automóveis e as motocicletas”

A presença da mulher forte nos tira da consciência o barulho das motos, assim a música inspira uma esperança de mudança. Amor, alegria, inteligência, beleza e força podem nos livrar do barulho.

Ironicamente, em “A Insustentável Leveza do Ser”, Sabina, que quer escapar desse barulho, o faz em uma moto. Para fugir da música militar simplista usada pelos comunistas, ela pega a estrada:

Na época em que, estudante, Sabina trabalhava no Canteiro da Juventude e sentia na alma o veneno das alegres marchas que jorravam sem interrupção dos altos falantes, saiu para passear de moto num domingo. Percorreu quilômetros de florestas e parou numa pequena cidade desconhecida perdida no meio das colinas.

Neste caso, a moto se torna uma companheira de fuga. Ainda não é um veículo para a transformação para longe da sociedade autoritária como a bicicleta de “O Livro do Riso e do Esquecimento”, mas fornece pelo menos um alívio momentâneo.

Os significados contraditórios da moto – como barulho e fuga, como provocação política e liberdade pessoal – alcançam seu ápice em “A Lentidão”, o primeiro livro que Kundera escreveu originalmente em francês. Na primeira página, um homem está dirigindo um carro enquanto pensa em motos acelerando:

O homem curvado em sua motocicleta só pode se concentrar naquele exato momento de seu voo; agarra-se a um fragmento retirado tanto do passado quanto do futuro; é arrancado da continuidade do tempo; está fora do tempo; em outras palavras, está num estado de êxtase; em tal estado, não sabe nada da sua idade, nada de sua mulher, nada de seus filhos, nada de suas preocupações e, portanto, não tem medo, pois a fonte do medo está no futuro e quem se liberta do futuro nada tem a temer.A velocidade é a forma de êxtase que a revolução técnica concedeu de presente ao homem. Ao contrário do motoqueiro, quem corre à pé está sempre presente em seu corpo, forçado a pensar em suas bolhas, em seu fôlego; quando corre, sente seu peso, sua idade, consciente mais do que nunca de si mesmo e do tempo de sua vida. Tudo muda quando o homem delega a uma máquina a faculdade de ser veloz: a partir de então, seu próprio corpo fica fora do jogo e ele se entrega a uma velocidade que é incorpórea, imaterial, velocidade pura, velocidade em si mesma, velocidade êxtase.

O livro critica essa necessidade da velocidade, essa necessidade do êxtase, essa necessidade de esquecer.

O romance é parcialmente baseado em “Por Uma Noite” (1812), de Dominique Vivant Denon. Nesta estória erótica, uma mulher casada convida um rapaz para passar a noite em sua alcova bem no castelo onde ela mora com o marido. Na manhã seguinte, o jovem está cheio de vida e satisfação. Ele não quer esquecer a noite; ele quer lembrar. Em outras palavras, o oposto de usar o êxtase da velocidade para esquecer.

“A Lentidão” ocorre no mesmo castelo de “Por Uma Noite”, mas nos dias atuais. No final do romance, Vincent, um motoqueiro intelectual, quer provocar, quer chocar, as pessoas daquele castelo: acadêmicos, políticos e pensadores. Para fazer isso, ele seduz uma linda garota e a convence a fazer sexo anal selvagem na frente dos que estão no castelo. Eles ficam nus na piscina, mas, quando ele tenta penetrá-la por trás, não consegue ter uma ereção. Em vez disso, eles simulam o sexo, fingindo se envolverem no sexo anal encenado apenas para escandalizar. Mais tarde, a experiência lhe causa grande sofrimento, por isso ele tenta esquecer.

O desprezo que o outro lhe dirigiu faz Vincent mergulhar de novo em sua angústia. Sente-se subitamente fraco. Sabe que não contará a ninguém a história da suruba. Não terá forças para mentir. Está muito triste para mentir. Só tem uma vontade: esquecer depressa essa noite, toda essa noite fracassada, apagá-la, anulá-la – nesse momento, sente uma sede insaciável de velocidade. Com um passo determinado, apressa-se em direção à sua moto, enche-se de amor por sua moto, por sua moto na qual se esquecerá tudo, na qual se esquecerá de si mesmo.

Simultaneamente, o jovem da estória do século dezenove de “Por Uma Noite” reaparece. Ele acabara de fazer sexo com a mulher casada a noite toda. Ele estava satisfeito e não sentia necessidade de se mostrar para ninguém. Um observador, o próprio Kundera, logo depois de ver Vincent andando de moto para esquecer a penetração anal fracassada, observa o jovem cavalheiro indo para uma carruagem:

Espere um segundo. Quero contemplar mais um pouco meu cavalheiro, que se dirige lentamente para a carruagem. Quero saborear o ritmo de seus passos: quanto mais avança, mais lentos eles são. Nessa lentidão, creio reconhecer uma marca de felicidade. O cocheiro o cumprimenta; ele pára, leva os dedos ao nariz, depois sobe, senta-se, acomoda-se num canto, as pernas agradavelmente esticadas, a carruagem balança, logo irá cochilar, depois acordará e, durante todo esse tempo, procurará ficar o mais próximo possível daquela noite que, inexoravelmente, irá se misturar com a luz. Sem amanhã. Sem público.

Aqui está claro que o cavalheiro não estava fazendo sexo apenas pelo momento do êxtase. Ele se lembrava de toda a noite. Ele não queria esquecer. Ele queria que o perfume da mulher ficasse em seus dedos para sempre. Ele queria lembrar a noite para sempre, sempre em sua memória. Com sua interjeição, “espere um segundo”, Kundera parece elevar a lentidão, a memória e o passado – a carruagem -, sobre a velocidade, o esquecimento e o presente – a moto.

Para terminar, as motos de Milan Kundera, assim como seus personagens, são multifacetadas. Elas são humildes, porque são veículos da classe trabalhadora. Elas são libertadoras. Elas podem nos trazer prazer e alegria, e é isso que no final subverterá o autoritarismo do governo e a mediocridade das pessoas. Elas são provocadoras quando atormentam os soldados soviéticos. Elas são barulhentas quando representam o mundo onde ninguém mais quer dialogar. Elas são companheiras nos momentos em que perdemos a força para lutar e precisamos de uma fuga temporária. Elas nos levam ao êxtase, embora um êxtase limitado, uma fuga da realidade que é igualmente temporária.

Em suma, Milan Kundera é um mentiroso. Ele usa as motos para desenvolver seus personagens e, em seguida, ele usa seus personagens para desenvolver seus temas. Ele está disposto a distorcer as motos e os personagens para beneficiar sua ficção. Ele cria fantasias só para falar sobre o que realmente importa para ele.

Será que ele pode ser perdoado por suas mentiras? Acho que sim, porque ele representa as fantasias que todos nós habitamos, incluindo os acadêmicos que usam motos como pretexto para homenagear seus escritores favoritos, cidadãos que mencionam regimes autoritários do passado só para denunciar atuais palhaços vestidos como presidentes, e até um indivíduo falando de estórias fictícias apenas para seduzir uma bela mulher-tigresa com lábios carnudos convidativos.

As motos do universo literário de Milan Kundera são, em certo sentido, bem mais reais que qualquer outra moto. Isso porque são apresentadas como entidades cheias de mobilidade existencial e de significados contraditórios. Exatamente como é a própria realidade.

Agradecimentos

Obrigado a Steven Alford e Suzanne Ferriss pela ajuda na preparação deste texto.

Trabalhos Citados

Kundera, Milan. “A Insustentável Leveza do Ser”, 1984.
—. “A Lentidão”, 1995.
—. “O Livro do Riso e do Esquecimento”, 1979.
—. “A Valsa dos Adeuses”, 1972.
Russo, Renato. “Música Urbana 2.” Dois. EMI, 1986.
Veloso, Caetano. “A Tua Presença Morena.” Qualquer Coisa. Philips, 1975.
Veloso, Caetano. “Tigresa.” Bicho. Philips, 1977.
Denon, Dominique Vivant. “Por Uma Noite”, 1812.

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