A Moto do Futuro

© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: Conversas Técnicas Sobre Motos

A MOTO DO FUTURO
Fábio Magnani
[publicado originalmente em maio de 2013]

A Arx 3 (Solifague Design) certamente não é a moto do futuro. Como também não são todas as outras motos atualmente no mercado. A moto do futuro será leve, eficiente, limpa, prática, ergonômica, segura, veloz, ágil, barata, maneira e inteligente.

Moto é coisa de macho. Coisa para quem tem voz grossa, barba cerrada, barriga de cerveja, pêlo no peito e braço forte. Moto é coisa para quem gosta de sujar a mão de graxa, uma máquina que faz barulho, que gasta bastante combustível e que trabalha bem quente. Moto é para quem, ao caminho do shopping, quer ter a certeza que poderia simplesmente virar na próxima curva e rumar para o Alaska. Moto é para quem gosta de desafiar a morte.

Pelo menos foi isso que eu ouvi a vida toda. E o duro é que verdade, pelo menos em parte, pois as motos de hoje em dia são sujas, beberronas, mortais, pesadas, cansativas, inseguras, poluentes e inconvenientes. E olhe que eu me enquadro quase que perfeitamente no perfil neandertal do primeiro parágrafo. Mas não sou um egoísta. Não quero que as motos continuem sendo do jeito que aprendi que deveriam ser. Ao contrário, quero que as motos sejam legais para todo mundo.

Já pensou em uma moto que fosse leve para guardar em casa, eficiente para gastar bem pouca energia, customizável para ficar a sua cara, ágil para rodar no tráfego das cidades, compacta para levar no transporte público, fácil de equilibrar mesmo quando rodando bem devagar, que te alertasse da probabilidade de um acidente, que avisasse qual o melhor caminho e onde há estacionamento, que fosse fácil de consertar, e bem simples para fazer upgrade? As motos do futuro serão assim. Coisa de macho prático, inteligente, independente, que tem estilo próprio, amor pelo seu suado dinheiro, que se preocupa com o meio ambiente, e, principalmente, que quer continuar vivo ainda por um bom tempo.

O FRACASSO

Há muitos problemas, problemas seríssimos, com as motos que estão no mercado. Os mais evidentes são os acidentes, a ineficiência energética e a poluição. Para se ter uma ideia da gravidade, cerca de 10.000 motoqueiros morrem por ano só no Brasil. Essas mortes em acidentes são causadas pela imperícia dos carangueiros, pelas vias mal conservadas, pela imprudência dos motoqueiros, pelo uso do álcool, e acima de tudo, pelo atraso tecnológico.

O principal atraso tecnológico não está, ao contrário do que as revistas tentam nos fazer crer, na ausência, em alguns modelos, de freios ABS. O maior problema está na ausência de sensores de localização e de sistemas de comunicação entre veículos (Internet of Things e Vehicle to Vehicle Communication). Esses sensores e comunicadores é que diminuirão sensivelmente os acidentes. O interessante, no entanto, é que as fábricas conseguem convencer a todos de que a colisão entre veículos não pode ser evitada com avanços tecnológicos, como se essas colisões fossem sempre causa da imperícia ou imprudência dos condutores. Não é verdade! A ausência desses sensores/comunicadores é uma grande falha de projeto de engenharia. Uma falha que, quando resolvida, salvará muitas vidas. Mas para isso é preciso parar de dizer que os motoqueiros sempre são culpados de tudo e responsabilizar as fábricas pelo projeto mal feito. Assim como os aviões, que para serem seguros precisam de radar e controle de tráfego, as motos também precisam de sensores e comunicadores para lidar com o tráfego ao seu redor.

A tecnologia atrasada não está só nas motos, já que há uma contribuição dos chamados “equipamentos de segurança”, que são pesados, quentes, atrapalham os sentidos, e diminuem a mobilidade. Isso porque partem de um princípio errado. Sua concepção é baseada na proteção do motoqueiro caso ocorra um acidente, mas parece que não pensaram que o “equipamento de segurança” pode ser a própria causa do tal acidente. Por exemplo, os capacetes reduzem a audição e a visão; as roupas de couro são muito quentes, o que causa cansaço e consequentemente desatenção; e as proteções de pernas e braços diminuem a agilidade. É preciso repensar o significado da palavra segurança. Afinal, segurança deveria significar a eliminação do acidente, e não apenas fazer a queda fofinha.

O outro grande problema com as motos é a sua baixa eficiência energética. Cuidado que agora você vai cair da cadeira, mas apenas 2% da energia do combustível é usada para transportar o motoqueiro de um lugar para outro. O resto é usado para fins inúteis. Um absurdo. O primeiro vilão dessa ineficiência é o motor de combustão interna, que converte no máximo 25% da energia do combustível em movimento, fazendo com que 75% da energia que compramos vá embora na forma de calor. Para piorar, como o motor é pesado, parte da energia mecânica que ele fornece é usada para mover a ele mesmo – coisa bem pouco inteligente. Da energia que sobra, um pouco é usado para deformar o pneu e para balançar a moto sobre a suspensão, mas quase tudo é usado para vencer a resistência do ar.

Pronto, lá se foi 98% da energia que estava no combustível – usada agora para aquecer o nosso mundo, que já está bem quente, fazer um ventinho meia-boca que não serve nem para refrescar, azucrinar os passantes com o barulho do motor, e ainda levar a própria moto para passear. Que beleza.

Se não bastasse a ineficiência, o motor de combustão interna ainda emite poluentes (e.g., monóxido de carbono, óxidos de nitrogênio, ozônio, particulados, vapores de combustível e hidrocarbonetos não queimados) e gases de efeito estufa (principalmente o gás carbônico). Todo mundo sabe que essa emissão é maléfica à saúde, causando um bom número das chamadas mortes silenciosas, que não estão naquelas estatísticas de mortes por acidente que falei antes. Isso sem contar as mudanças climáticas, que trazem prejuízos a todos.

E os problemas não param por aí. Além de matar, queimar muito combustível, e poluir, as motos têm vários outros inconvenientes. São muito pesadas para empurrar nas calçadas e para levar nos ônibus. Têm uma ergonomia horrível, tanto para fazer manobras em pequenos espaços, quanto para montar e desmontar. Fazem muito barulho, enferrujam fácil, dão trabalho para lubrificar a corrente, e ainda queimam e sujam quem está por perto. Só quem acha que as motos atuais são modernas são as revistas especializadas que só querem agradar as anunciantes, as fábricas que ganham bilhões de dólares por ano, quem não tem que rodar na cidade o dia todo, ou quem não se preocupa com o próximo. As motos atuais não são modernas. São um fracasso.

O PRESENTE

Dá para ver então que estamos muito distantes das motos que realmente precisamos, queremos e merecemos. Particularmente, eu acredito que as motos urbanas do futuro virão de uma convergência tecnológica das motos elétricas, das bicicletas elétricas, da robótica, e do controle de tráfego; somados com a telefonia celular, o GPS, o sensoriamento local, e a internet. O legal é que essas últimas tecnologias já convergiram nos celulares modernos.

Os celulares foram pensados como sistemas de comunicação, mas hoje em dia também têm sensores de vídeo, de localização e de movimento. Por isso é claro que serão parte integral da motocicleta do futuro. Por exemplo, já existem celulares que registram toda movimentação de uma moto durante a corrida, bastando o motoqueiro levá-lo no bolso. Penso que os celulares serão mais importantes ainda para pedestres e ciclistas, que usarão aparelhos que enviarão sinais para diminuir automaticamente a velocidade dos carros mais próximos. Mas antes a nossa rede de telefonia precisa funcionar.

Um grande engano é olhar para as motos de competição do MotoGP, ou para as bicicletas do Tour de France, e achar que o futuro das motos urbanas virá de lá. Não virá. As motos de corrida são extremamente ineficientes, além de serem projetadas para rodar em pistas livres, dessas que só existem nas propagandas da televisão. Já as bicicletas de estrada foram feitas com o único objetivo do ciclista provar que pode superar o limite da dor e do sofrimento. Sorte que há outras tecnologias que têm pelo menos traços que nos permitem ter esperança do futuro.

As motos que mais me convencem como base para as motos urbanas são as supermotard, que são projetadas tanto para curvas fechadas no asfalto quanto para obstáculos na terra batida; e as trial, pensadas para superar obstáculos em velocidades muito baixas. Essas qualidades são exatamente as que precisamos para andar nas ruas congestionadas, nas vias sem pavimentação, para subir nas escadas, e para chegar aos metrôs. Mas não são motos perfeitas, pois são muito pesadas para o que queremos, usam motores de combustão interna, têm aerodinâmica fraca, e ergonomia horrível para o dia a dia. As bicicletas freestyle, por outro lado, têm a mesma ciclística das moto trial, e ainda são leves e não poluem – mas também não têm motor. Temos que buscar algo aí no meio.

Muita gente fala das motos e das bicicletas elétricas como outra possível base para as motos do futuro – e eu concordo. Agora, deve haver alguma razão para a propulsão elétrica ter sido muito usada no início do século XX e depois ter sido abandonada. Os problemas com a propulsão elétrica são o peso da bateria, a lentidão para carregar, a revolução necessária na infraestrutura de distribuição elétrica para suprir os postos, e a necessidade de um crescimento muito grande na geração de eletricidade, já que essa energia tem que vir de algum lugar. Sem contar que a geração deve ser a partir de fontes renováveis, se não haverá apenas um deslocamento da poluição das ruas para a poluição das chaminés nas termoelétricas.

Quanto ao equilíbrio em baixas velocidades, que é muito importante para o uso urbano, principalmente para pessoas idosas ou com dificuldade de locomoção, há duas tecnologias interessantes. Uma é a do segway, aquele carrinho que os guardas de shopping usam, e que são baseados em um sistema eletrônico de controle. A outra tecnologia é da C-1, uma moto da Lit Motors que usa o efeito giroscópico de um volante em alta velocidade para manter a moto em pé. Essa tecnologia é bem nova ainda, precisando de testes e desenvolvimento. Já o segway tem uma tecnologia madura, mas não deu certo como veículo de mobilidade individual porque a legislação de trânsito nunca regulamentou o uso desse veículo para vias públicas. Esse é um grande desafio para qualquer novo veículo: vencer a burocracia e a legislação, que muitas vezes trabalham para manter as coisas como são. Além disso, é sempre bom tomar cuidado com as novas tecnologias, pois muitas vezes simplesmente não dão certo. No entanto, é importante continuar sempre tentando, e não acreditar piamente nas campanhas ridicularizantes feitas por quem defende o status quo. Eles não querem o novo. Em geral querem apenas continuar lucrando com o velho.

Outra tecnologia que me chama atenção é das bicicletas recumbentes, aquelas nas quais se pedala reclinado. São extremamente eficientes do ponto de vista aerodinâmico, alcançando 133 km/h só com a força das pernas do bicicleteiro. Mas são super inconvenientes para andar na cidade em baixas velocidades, além da carenagem fechada ser quente e perigosa no caso de queda. Quer dizer, é um veículo bom em alta velocidade, mas ruim em baixa. Esse será o maior desafio do ponto de vista da engenharia mecânica: produzir um mecanismo que mude rapidamente a posição de pilotagem, do estilo trial quando a moto estiver devagar, para recumbente quando a moto estiver rápida.

A maior parte dos acidentes não ocorre por causa de alguma deficiência mecânica, mas sim por algum problema de tráfego. Em outras palavras, as motos se acidentam porque batem nos outros veículos, nos obstáculos ou no chão. Por isso, são necessárias tecnologias que avisem quando houver probabilidade de acidente. Essas tecnologias englobam sensores locais, GPS, comunicação entre veículos e um cérebro eletrônico que ajude tomar decisões – todos integrados em um celular que envia mensagens para a viseira do capacete. Esses sensores e emissores irão chamar o resgate em caso de acidente, vão rastrear a moto no caso de roubo e, principalmente, vão diminuir drasticamente os acidentes. Por exemplo, digamos que em uma rua transitem um caminhão, seguido de um carro, e depois por uma moto. O caminhão despeja um pouco de óleo diesel na rua. O sensor do carro, ao passar pelo óleo, percebe uma ligeira perda de tração nas rodas, e manda um sinal de pista escorregadia para os veículos vizinhos. O computador da moto recebe a mensagem do carro e, com o seu GPS, calcula que vai passar por aquele local. Imediatamente, a moto envia uma mensagem para quem vem atrás, avisando que vai desacelerar, diminui a sua velocidade, e ilumina o display dentro do capacete do motoqueiro, comunicando porque tomou aquela decisão. E o mesmo pode ser usado para alertar sobre um ônibus que vem na transversal, sobre um pedestre que vai cruzar a rua, ou sobre um carro quebrado logo depois da próxima curva. São essas tecnologias que vão diminuir os acidentes, muito mais do que essas campanhas da TV que se limitam a colocar a culpa nos motoqueiros.

Agora, todas essas tecnologias são interessantes quando vistas sozinhas, mas deu para perceber que sempre têm algum inconveniente. Há vários desafios: a posição do piloto tem que mudar rapidamente, de uma posição de manobra para outra mais aerodinâmica; a resistência aerodinâmica tem que ser diminuída, mas sem aumentar o peso, trazer mais riscos, ou causar desconforto; os pneus têm que ser ao mesmo tempo eficientes, resistentes, elásticos, duráveis, e ter boa pegada; os sistemas de controle automático têm que ser extremamente seguros, pois estarão lidando com vidas; também, esses sistemas devem servir apenas como segurança, não para tolher a autonomia, a liberdade, a privacidade e a individualidade das pessoas – muito embora, se bem feitos, permitirão velocidades bem maiores do que hoje em dia; além disso, os sistemas de controle de tráfego não devem ser centralizados, tratando as pessoas como androides sem vontade, mas sim operar como o sistema de distribuição de e-mails pela internet, que é caótico, descentralizado, anárquico, e que por isso mesmo funciona muito bem; as baterias precisam durar mais, carregar mais rápido, e diminuir muito de peso; a eletricidade precisa ser gerada em maior quantidade e ser distribuída a todos os postos de recarga.

O fundamental de tudo isso é que, ao desenvolver toda essa tecnologia da moto urbana do futuro, há dois pontos de referência que nunca podem deixar o nosso olhar. O primeiro é a bicicleta, que sempre será um exemplo de eficiência e elegância tecnológica. O segundo é o ser humano. As motos têm que ser projetadas para todos: jovens e idosos, homens e mulheres, pessoas atléticas e com dificuldade de locomoção.

O FUTURO

As motos urbanas do futuro não farão viagens do Brasil para o Alaska, e também não vão levar cargas pesadas – por isso serão leves e eficientes. Para essas outras necessidades serão projetados outros veículos, pois cada solução de engenharia deve ser otimizada para a sua função específica. Mas é óbvio que a tecnologia desenvolvida para um caso será transferida para o outro, inclusive para as bicicletas de propulsão humana, que sempre continuarão existindo; e para as cadeiras de roda, que atualmente têm mais problemas de projeto do que as motos.

Resumindo, a moto urbana do futuro será elétrica, usará fontes renováveis de energia, será leve, prática para guardar em casa e levar no metrô, permitirá rápida troca de posição, para ser boa tanto em manobras quanto em velocidade, terá um design personalizável, e terá um porção de sensores que avisarão sobre a possibilidade de acidentes iminentes.

Claro que os acidentes continuarão existindo, mesmo que em pequena quantidade. Por isso também são necessários avanços nos equipamentos de segurança. Provavelmente bolhas infláveis que envolverão todo o corpo do motoqueiro no caso de um acidente. Só que essa nova roupa tem que ser bem diferente dos equipamentos de hoje em dia: tem que ser leve, barata, maneira, fresca, e não tirar a agilidade do motoqueiro. Lembrando sempre que os equipamentos feitos para países frios não nos têm serventia. Mais uma grande oportunidade para os designers tupiniquins.

O CAMINHO DA REVOLUÇÃO

A revolução das motos urbanas não virá das fábricas que estão por aí. Para elas, o que vem sendo oferecido no mercado é o supra sumo da tecnologia – então dá para ver que elas não sabem de nada, não é? Não devemos confiar nas fábricas que estão no controle. Precisamos de jovens inovadores, que projetem motos elétricas superleves, celulares com todos esses sensores, tecnologias competitivas para a geração elétrica a partir de fontes renováveis, um sistema revolucionário de distribuição de energia elétrica, e softwares inteligentes para o gerenciamento do tráfego.

As limitações vão muito além da tecnologia. Há também restrições burocráticas, legais, econômicas e culturais para o desenvolvimento das motos do futuro. Precisamos de jovens advogados e políticos que lutem por leis de trânsito mais dinâmicas, tanto para a rápida aceitação dos novos veículos quanto para a criminalização dos veículos atuais; jovens contadores e despachantes que conheçam muito bem o caminho das pedras para a homologação e o patenteamento de novos produtos; jovens economistas que consigam financiamento para o desenvolvimento tecnológico; velhos engenheiros que saiam das fábricas convencionais para criar suas próprias fábricas, acelerando todo esse processo; jovens médicos e psicólogos que conheçam a fundo o comportamento psicomotor dos motoqueiros; jovens produtores culturais que escancarem que precisamos de um novo modelo industrial baseado nos jovens, pois o atual é falido, sujo e mortal; jovens sociólogos que compreendam a importância da mobilidade individual na manutenção da democracia; e jovens empreendedores que consigam liderar toda essa moçada do bem.

A moto urbana do futuro não está nos laboratórios das fábricas. Está nos corações e mentes dos jovens, que não aguentam mais tanto desperdício, sujeira, barulho, exploração, burrice e mortes.

Com todas essas transformações, as motos deixarão de ser um símbolo do subdesenvolvimento, da poluição e da violência. Tomarão finalmente o seu lugar histórico, como representantes da tecnologia limpa, da mobilidade individual inteligente, e da alegria de viver.

REFERÊNCIAS VISUAIS

Supermotard

Trial

Freestyle

Posição aerodinâmica

Propulsão Elétrica

C-1 Lit Motorcycle e Segway

Sensores, emissores, interligação ao controle de tráfego e comunicação com outros veículos

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